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Atualizado: 26 de out.

O PROCESSO DE TRANSPLANTAÇÃO DO YOGA SUL-ASIÁTICO A MÍTICA BRASILEIRA




Introdução

Esse é um ensaio (quase como uma jam session de jazz) dos mitos de Oxum e Iemanjá com o de Shiva e Durga/Parvati na busca da tentativa de compreender (um pouco mais) o processo de transplantação do Yoga sul-asiático a cartografia brasileira. O Yoga nasce plural e de nascimento incerto, mas vai se configurando, modernamente (a partir do século XX), como "filho" da cultura Védica sul-asiática. Mas, já se é bastante documentado, o Yoga não é um, mas vários: há yoga jainista, budista, sikkhi, védico e hoje, também, baiano (SINGLETON 2008). 


Podemos compreender melhor a pluralidade mítica do Yoga por forças nômades, mais do que sedentárias. Até mesmo quando estudamos um "yogar" budista ou védico, por exemplo, estes se abrem numa paleta rica de cores; yogues budistas podem ser da tradição Zen, mas também Tântrico. Entre os yogues védicos, convivem os Nagas e os Nathas. E, dentro do Yoga Natha (de tradição védica), a sua origem é fruto de dois yogues budistas com fortes influências muçulmanas (sobretudo da linhagem mística sufi). O Yoga tem "rizoma" que se espalha, muito mais do que "raízes profundas" que se deixam identificar: a origem mítica do Yoga é de uma virgem andrógina que dá o seu filho para outras criarem (SIMÕES 2015).


Durante o período de colonização britânica no continente asiático, por volta de 1600, com a chegada da Cia. das Índias Orientais, os yogues e seus Yogas vão se modificando no encontro com as contradições que o colonizador apresenta ao colonizado. E, com isso, os seus mitos também precisam ser reorganizados para continuarem sendo "eficazes" aos coletivos que se metamorfoseiam em torno deles. As mais conhecidas (e já bastante discutidas) é a ressignificação simbólica da conhecida "fisiologia sutil do Yoga" (chackras, nadis, prana, p.e.) com a fisiologia biomédica": o encontro das águas do opressor e do oprimido na transformação e criação dos mitos modernos yoguicos. É desta reformulação simbólica que a linguagem estrutural do yoga passa a pensar glândulas endócrinas como chackras, sistema nervoso (simpático e parassimpático) como nadis e prana como oxigênio, "libido" e/ou até fáscias musculares (SIMÕES 2017).


Entrementes, há uma lacuna a ser ainda discutida na academia (e nas áreas psi) que é a (re)estruturação mítica yoguica vem produzindo aos que se dedicam a estudar, pratica e viver (como Práxis ou Ética) o Yoga não-nativo sul-asiático ou mesmo "ocidental" (leia-se eurocristão-orientalista). Me refiro aqui, a todos os que colonizaram o Yoga e erigiram para si (mas imaginando universais) um Yoga-Ideal, tanto quanto um Ideal de Yogue. Mas nos focaremos aqui, numa personagem, muito mais interessante, talvez, que é o yogue brasileiro, este duplamente colonizado. Ele foi (está sendo) mitificado num yogar transplantado da Índia pelo europeu e passou a buscar (obsessivamente) se transformar no Ideal de Yogue que o colonizador sul-asiático inventou sobre os Yogas sul-asiáticos colonizados por eurocristãos. Não parece só confuso, é realmente. 


Acontece que yogue brasileiro ainda não se deu conta que não é (e nunca será) um yogue sul-asiático e, muito menos, um europeu, pois constituídos por outros mitos que nos estruturam diferentemente - parece óbvio, lendo isso agora, mas acredite, na alma mestiça e culpada do brasileiro classe média que pratica yoga, não é. Realizra uma série de posturas com nomes em sânscrito nos horários prescritos e em alinhamento planetário da astrologia védica e, muito bem informado sobre os mitos sul-asiáticos (traduzidos por alemães românticos, franceses ateus e/ou ingleses protestantes) que nos tornamos como eles. É impressionante, mas continuaremos sendo latino-americanos mesmo mudando nossos nomes de João para Krishna e calçando Birkenstock. Muito pelo contrário, assim, nos transformaremos em yogues sul-americanos, mas nos organizando (yoguicamente) por mediações dos nossos próprios mitos fundantes de uma brasilidade metafísica inconstante e canibal, ou seja, que nos formaram como indivíduos. Estamos condenados a sermos nós mesmos, mesmo fantasiados de brâmanes.


O Yoga e a Maternidade Transferida 

O Yoga não tem pai, pois filhe de uma divindade andrógina, Shiva. A Mãe/Pai do Yoga é, ambivalentemente, um homem de seios fartos e uma mulher de pau-duro. Assim, os yogas são gestados por uma "concepção virginal", como entre a comunidade matrilinear dos Trobriands, investigada pelos antropólogos Malinowski e Edmund Leach.


Em outras palavras, o não-saber expresso sobre o campo da reprodução biológica seria, de fato, um saber metaforicamente declarado sobre o campo da reprodução social e sobre a linhagem. É o social que assume o lugar do referente desta “fala” nativa, e não o biológico como poderia parecer (Leach 1966;1968 apud SEGATO 2006). 


Portanto, em sociedades de linhagem matrilinear (como dos povos originários sul-asiáticos, criadores do mito de Shiva/Yoga), é pelo "desconhecimento" ou "ignorância" do pai, que a comunidade ocupa a função paterna na criação das crianças, na inserção das Leis. Em outras palavras, não havendo o pai-biológico a ser invejado ou temido como em sociedades civilizadas, é o coletivo selvagem que inserem seus signos e significantes. No caso do Yoga, como seu genitor é andrógino, nos parece lícito supor, que os yogas são criados à "imagem e semelhança" do próprio campo social onde os Yogas crescem e se desenvolvem, gerando, como já afirmamos, infinitos yogas-erês sem a figura da paternidade como a conhecemos no modelo da "sagrada família", papai-mamãe-filhinho. O complexo de Édipo é vivido de outros modos que não o da tradição greco-romana, no qual nós, latino-americanos, não somos descendentes diretos, mas criados por "amas-secas"-eurocristianizadas.


Esse modelo mítico que Shiva/Yoga carrega se encontra com outro modelo político, econômico e religioso, deste modo, novas narrativas míticas se confluem com a chegada da cultura Védica. 


A comunidade védica, orbita em torno de um modelo patriarcal que organiza a sociedade (os corpos e as almas) em casta, isto é, é impossível a mobilidade social - mas Shiva é um pouco Zé Pelintra e, malandramente, encontra seu jeito. Ao longo dos séculos, a cultura védica, suas castas e mitos vão subjugando os povos originários da região, os Advasis, que passam a ser considerados "selvagens" e relegados, pelo clero bramânico, a posição de subalternos ou sem-castas. Agora, Shiva/Yoga, criado pelo socius matrilinear advasi, passa a ter Pai e Mãe, pois Shiva se masculiniza e se casa com Durga/Parvati: duas figuras que se contrapõem, sendo Durga uma divindade feminina védica violenta e Parvati, sua versão "dona-de-casa". 


Mas, repito, nenhuma delas se torna a "mãe-biológica" do Yoga, que continua sendo cuidado, agora, não mais pela sociedade (como na cultura matrilinear dos advasi), mas por duas mães védicas ou maternidade transferida.  


O conceito de maternidade transferida foi desenvolvido pela socióloga brasileira Suely Gomes Costa, que afirma estar presente em modelos sociais coloniais; é o que popularmente conhecemos no Brasil, por "amas-de-leite", depois "amas-secas" e, mais recentemente, "babás" (Gomes Costa 2002, p.305 apud SEGATTO 2006). A autora defende que a passagem da "ama-de-leite preta" para a "ama-seca branca", é fruto de uma demanda da classe média urbana, sobretudo a partir do século XIX, onde há uma mudança no discurso "mítico-científico" perpetrado por uma medicina higienista em países colonizados por eurocristãos: "(...) a pessoa da ama-de-leite tornou-se a mais terrível e alarmante transmissora de doenças", afirma a autora, relatando a influência do racismo na ciência biomédica, como descreve abaixo, a partir de artigos de jornais e acadêmicos da época (Sandre-Pereira apud SEGATTO 2006):


A prática da maternidade transferida e o tipo de relações nela certamente originadas, tanto a partir da perspectiva daqueles favorecidos pelo serviço como daquelas que o prestaram ao longo de quinhentos anos de história ininterrupta têm rastro nas Letras, mas se encontra ausente das análises e das reflexões. A baixíssima atenção a ela dispensada na literatura especializada produzida no Brasil destoa com a enorme abrangência e profundidade histórica desta prática e o seu forçoso impacto na psique nacional. 

O brasileiro das famílias mais abastadas, precisou aprender a foracluir/rejeitar (eu diria até, odiar) sua mãe transferida (a ama-de-leite) de "longa duração histórica", pelo medo de receber os signos dos selvagens que o amamentou, levou para passear no parque e ninou até adormecer quando este estava com medo. Algo muito similar ocorre na passagem do Yoga sul-asiático autóctone matrilinear dos advasis/selvagens para o Yoga inserido pela cultura védica. Não por coincidência, quando o Yoga alcançou (por volta dos anos 1950-60) a cultura brasileira, se populariza (ainda hoje se mantém assim) entre os corpos brancos e de "alta-casta", uma busca espiritual e bem-estar em práticas absolutamente distante de suas origens, como que rejeitando as mães-pretas que os criaram: eles querem ser qualquer coisa, exceto um brasileiro filhe da macumba, do pajé e do padre. 


Oxum, Iemanjá, Durga e Parvati

E que tipo de sintomas psíquicos esse processo civilizatório cruel pode ter causado na alma do yogue brasileiro e do Yoga védico que herdamos aqui? Talvez o de repetir o que precisou rejeitar, sua mãe não-biológica: o Yoga védico o yogue brasileiro foram criados por "amas-de-leite", mas precisam rejeitá-las como medo/ódio de estarem contaminados. Isso pode explicar por que os yogues brasileiros tenham transformado suas práticas em verdadeiros treinamentos de "alta performance", competindo entre si por aplicativos que medem seus rendimentos yoguicos.


O mito de origem Yorubá narra a história da separação das águas, onde Iemanjá (água salgada) e Oxum (água doce) disputam quem ocupa o status mais alto no panteão mítico desse povo. A cultura Yourubá veio junto no corpo/alma de africanos em diáspora e escravizados pelos colonizadores brancos, mas foram se miscigenando aos povos originários do Brasil e dos colonizadores também. No entanto, o eurocristão colonizador sempre se imaginou (delírios e fantasias psicóticos, daqueles que não souberam se distanciar das próprias mães?) superior - moral e cognitivamente - dos corpos "desalmados" (diabólicos, selvagens) que colonizavam. Essa compreensão difusa (sadomasoquista, talvez?) se aproxima da linguagem mítica dos brâmanes sobre os advasis, o povo originário e criador do Yoga sul-asiático.


Na descrição mitológica do panteão de divindades, Yemanja é o que os membros do culto chamam de “a mãe legítima” dos orixás, fazendo aqui coincidir o aspecto de mãe biológica, que deu à luz os deuses filhos que formam o panteão, com a mãe jurídica. Com efeito, diferentemente do caso antes referido da paternidade trobriandesa, superpõem-se aqui a genetrix e a mater juridica, e o nome comum de “mãe legítima” é aplicado ao papel coincidente das duas funções. Ainda uma segunda – embora, em realidade terceira, por ser as outras duas, nesta perspectiva, uma só – forma de maternidade existe no contexto do culto, cujos membros claramente separam esta maternidade “legítima” daquela exercida pelo que chamam “a mãe de criação”, representada por Oxum. A miúdo, neste ambiente, como já disse, a conversação ordinária toca o assunto da diferença entre criar filhos e pari-los (SEGATO 2006). 


A autora defende que pode ter nascido daqui, o famoso complexo de vira-lata (ou sentimento de mestiço) brasileiro, pois, além de ter que passar a cuidar dos filhos de outras famílias e/ou foracluir a Mãe, produziu no brasileiro o desejo em rejeitar tudo o que remete ao que ele já foi ou é, do mesmo modo que foi feito com ele. Por isso, argumenta, o brasileiro nascido das "altas castas", ama tanto a vida de "liberdade" do estadunidense e rejeita o SUS brasileiro, acha "chique" os cafés parisienses e "brega" os botecos cariocas, idolatra o Yoga indiano brâmane-"védico" e desdenha do yogue baiano que rebola ao som do Axé (SIMÕES 2018).


O Yoga védico, assim como o Yoga brasileiro da Vila Madalena/SP ou de Ipanema/RJ, finge não ser mais criado pela sociedade matrilinear do seu pai andrógino que tanto os envergonham. Ele (esse Yoga/Yogue moderno) busca autoconhecimento em qualquer outro lugar que não seja a sua própria "família", rejeita, assim, a sua "ama-de-leite-preta"/Durga-Oxum, símbolo de suas raízes "selvagens, nômades e indóceis", e tenta - de todos os modos e forças - se aproximar da sua "mãe-biológica"/Parvati-Iemanjá que nunca estabeleceu qualquer vínculo com ele, aumentando o sentimento de não-pertença a lugar algum, de isolamento e vazio. Com um Eu/Ego enfraquecido, passa a ser ensinado a cultuar o não-desejo, ou seja, se autocastrar, como valor moral. Com isso, cresce gozando com a Linga dos outros, pois foracluído a figura paterna (andrógina de Shiva, de origem subalterna, mestiça) e sendo ensinado a odiar a sua "mãe-criadeira"/Oxum, pois signo de contaminação e impureza que tanto o envergonha e culpa ter "seu leite correndo seu sangue", que delira "azul" ou pertencente a nobreza/alta-casta, que nunca será. 


O yogue brasileiro (sobretudo o formado pela elite racista brasileira, filhe da Casa-Grande, mas "cria" da Senzala) possui uma tendência a direcionar a sua libido/tesão (força criadora) a si-mesmo (fortalecendo uma postura narcisista) e, ao mesmo tempo, rejeitando toda a sua herança materna, pois se sente desconectado do (seu) mundo (realidade ou samsara), passando a delirar/fantasiar Moksha ou a Plenitude Eterna e Samadhi ou uma Experiência Transcendente que o liberte de todo o mal, pecado e sofrimento que (acredita, pois uma narrativa mítica colonizada nele) carregar por rejeitar tudo o que é (inconsciente?). 


Ele vive, assim, uma enorme contradição: como conhecer a mim mesmo (o grande objetivo de qualquer yogue/meditador sério), negando a sua infância e criação? (GNERRE 2010).


Shiva, o Deus-Cunhado

O Yoga Moderno é uma criança subalterna criada por uma “ama-de-leite” da alta-casta. É que Shiva, de inimigo para a cultura védica (pois divindade dos "subalternos, impuros e selvagens" advasis), se transforma em cunhado quando se junta com Parvati, essa mulher de “boa índole” e criada pela tradicional família sul-asiática - onde já se viu, ela pegou para criar um filhe (Yoga) que não nasceu de seu "nobre e puro ventre". Era mais fácil não aceitar o Yoga na corte, mas sempre ele se mostrou tão popular entre “o povão”, que não tinha como renegá-lo. Assim, o clero védico pensou que, sendo amamentado pelo leite brâmane, poderiam purificar/educar esse corpo selvagem, "herança de lado paterno".

A colonização e a maternidade aqui se confundem, onde o seio colonizado do yoga-branco-elitizado-oriental-eurocristão se oferece como objeto de aluguel. É uma maternidade mercenária, com um impacto definitivo na psique do Yoga (e yogue-brasileiro) Moderno, onde o leite brâmane (ou as práticas yoguicas de verniz "alta-casta") purificaria a herança do sangue/sêmen subalterno (do Yoga/Shiva "filhe-chocadeira" e da alma vira-lata do yogue brasileiro pequeno-burguês).


O Yoga Moderno tem alugado o corpo de professores-de-yoga brancas e orientalizadas como uma espécie de "babá da mãe-biológica" desconhecida desse Yoga que nasce de Shiva, divindade que é pai e mãe ao mesmo tempo, mas que põe uma mulher "cuidadeira" para cuidar de seu filhe (Yoga), antes criado pela comunidade. E, como sabemos, isso pode trazer consequências psíquicas a esse Yoga/YogueBR (e as suas “babás” também), como o sentimento de apropriação deste infante-Yoga-edipiano que se sente unido a "ama-de-leite" como sua propriedade, mas precisa rejeitá-la/foracluí-la mais tarde (ou sempre), obrigando subir pelo elevador-de-serviço a sua própria mãe.


Pelo lado da "mãe-babá-orientalizada/professor-de-Yoga" brasileira, por mais amor que sinta pela criança-Yoga (que pegou para cuidar do sul-asiático), sempre saberá que não chegou a completar um vínculo verdadeiro, pois sabe que ganha seu sustento “cuidando do filho de outra família”. Enquanto o sul-asiático diz aos amigos: “ela é quase de casa”, a yogue-orientalizada faz seu prato de samosas e vai almoçar no quartinho de empregadas, como a herança brasileira sempre nos ensinou.


Se criou, a partir daqui, para "manter as aparências", uma ideologia no Yoga Moderno brasileiro pautada na "universalidade" e pertença a uma cultura de não-violência, Gratiluz, cordialidade e resignação para esconder a brutalidade da hegemonia burguesa/védica em todo o espectro das sociedades capitalistas (coloniais e védicas), unificando aspirações e escondendo a mãe-biológica (e a babá) como não capaz de criar seu próprio filhe-Yoga (FREIRE COSTA 1984). 


O Yoga, portanto, é transferindo para o colo de mães-criadeiras (brancas-orientalistas e/ou brâmanes-purificadas) no intuito de tornar o Yoga "civilizadamente neurótico", em falta e castrado. Mas a origem do Yoga é matriarcal - Shiva gesta o Yoga, mas quem amamenta e cuida sempre foi a sociedade em que ele vive, pois sua origem é matrilinear e não patriarcal e colonial. Por isso, deve ser criado dançando solto nas matas, não em condomínios fechados como se fantasia e delira hoje em dia. 


Um Yoga e um Yogue brasileiro que se descolonize e encare sua difícil (mas necessária) travessia psicanalítica que, como bem sabemos, não pode (é impossível, na verdade) ser realizada isolada da sociedade em práticas solitárias assistindo tutoriais no YouTube ou se devotando a outros yogues igualmente aprisionados a narrativas míticas pessoais, mas que se deliram universais. 


Considerações Finais

Mudam-se os corpos, ficam-se os mitos. Mas se as ideias, advindas da mente, são corporais, a transformação de corpos é a condição primeira para influir comportamentos outros e suas compreensões interpretativas. As linhas de força que atravessam corpos e excitando sociedades, são as chaves para reinventação de novos mitos desfundadores de ideais.


É sempre bastante intrigante como operamos corpos em Yoga, mas parece que nos relacionamos tão somente por seus conceitos clichês. Todo mundo sabe o que são chackras, as posturas (asanas) e o "sagrado" mantra Om, mas - talvez a maioria - só de ouvir falar, ou pior, de um esforço tacanho de tentar experimentar o que outros corpos sentiram sem seus próprios blocos de sensações. Mas o que é um ASANA mesmo? A postura do corpo ajeitado por métricas e ângulos pré-concebidos? Quais yogues no Brasil se debruçaram a desvendar sobre a "consistência" do pranayama yoguico e não a sua fisiologia pulmonar?


O asana (não a postura que você tenta imitar numa "aula prática" pelo Zoom) em sua singularidade corporal é derivativa de "borrões" que emergem por limites indiscerníveis e, ao mesmo tempo, inseparáveis de modulações conceituais. Aqui se opera uma linguagem mítica que faz de um Yoga ou outro, ter ou não eficácia mágica lastreada por corpos encontrando corpos: o corpo como linguagem que nem sempre se apresenta tão clara na fala, mas traduzido na pele


É nesta zona borrada onde o acontecimento ASANA promove a sua QUEDA para a compreensão do que estamos sendo. Um Asana aliado à BANDHAS (fechamento de aberturas corporais), DRISHTIS (fixação do olhar) e KUMBHAKA (contenção dos "ventos" no corpo), se transforma em MUDRA, esse gesto simbólico corporal que "contém" mais PRANA do que só uma postura/asana isolado. Perceba que, para alguém não-iniciado na mitologia yoguica moderna e dos mitos que compõem os Yogas, tudo o que escrevi acima não faz tanto sentido assim. E é por isso mesmo que estes se sentem assim; é pela ignorância (avidya é o signo mítico yoguico para o estado descrito) que os líderes carismáticos yoguicos modernos (e todos os padres) operam seus aparelhos-de-captura no subcampo do Yoga Moderno. Se descolonizar com o Yoga aliado a Psicanálise ainda é uma máquina-de-guerra rarissimamente utilizada, pois a maioria dominante, ou ignora completamente essas relações, ou insistem em se deixar levar pelos arquétipos e outros delírios metafísicos aienantes.


Aproximar os mitos sul-asiáticos aos sul-americanos é conectar epistemes do sul e nos afastar (yogues brasileiros e estudiosos do campo da psi e espiritualidade) dos yogas epistemologizados do norte que insistem em continuar nos colonizando a ser como eles. Há um hiato de estudos ainda a ser aberto e novos pactos-de-aliança a serem firmados entre os xamãs shivaístas subalternos e o psicanalista-yogue/pajé brasileiro. Busquei aqui, mesmo tímido e vacilante, ensaiar novos encontros na reativação de feitiçarias que visem sustentar o céu por mais tempo e revelar potências ainda porvir.


Referências Bibliográficas

FREIRE COSTA, J. (1984) Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Graal. 

GNERRE, M.L.A. (2010) Identidades e paradoxos dos yoga no Brasil: Caminho espiritual, prática de relaxamento ou atividade física? Fronteiras: 12(21): 247-270.

SEGATO, R.L. (2006) O ÉDIPO BRASILEIRO: A DUPLA NEGAÇÃO DE GÊNERO E RAÇA. Universidade de Brasília: Série Antropologia.

SIMÕES, R.S. (2015) O papel dos kleśas no contexto moderno do ioga no Brasil: Uma investigação sobre os possíveis deslocamentos da causa do mal e da produção de novos bens de salvação por meio da fisiologia biomédica ocidental. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

SIMÕES, R.S. (2017) O Ioga e os seus Novos Bens de Salvação: Relaxamento Espiritual e Homeostase Divina. Numen: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 109-136.

SIMÕES, R.S. (2018) Early Latin American Esoteric Yoga as a New Spirituality in the First Half of the Twentieth Century. International Journal of Latin American Religions, 2:290–314

SINGLETON, M. (2008) The classical reveries of Modern Yoga: Patañjali and Constructive Orientalism. In: SINGLETON, M. & BYRNE, J. (orgs.). Yoga in the Modern World, Contemporary Perspectives. London: Routlege, p.77-99. 


 

Foto do escritorPhD. Roberto Simões

IMPLICAÇÕES EDIPIANAS AO CULTO DIONÍSICO PROIBIDO



É como se fossem duas pessoas 

aprendendo uma língua. 

A diferença é que é a mesma, 

na bem da verdade, 

acho que somos muitos. 

(Freud, 2015, O Pequeno Hans, p.142)



Introdução

Nascemos descolados de corpo e cultura. Mas não é possível se tornar humano assim, por isso a necessidade de criar rostidades, de um aparente "Eu-imutável" ou in-divíduo para alguns e inconstante selvagem para outros de povos contra-o-Estado permanente. Destarte, seja qual for a contexto sociocultural e político, no sentimos dois, um "corpo-Natural" e uma "alma/mente/Eu-Cultural". O Natural aqui como selvagem, indócil, um "Isso desejante descontrolado" que necessita de outro "Algo" organizante de seus impulsos


Está inscrito em nós, colonizados por eurocristãos, a ideia que, liberto das Leis - como expôs Hobbes, em Leviatã - será "uma guerra de todos contra todos": o Caos, signo mítico dionísico-shiva-exú. Mesmo que, consciente e "racionalmente", se argumente contra, cremos na direção "evolutiva" a um processo inexorável de uma certa civilidade


Vamos nos deslocando por um circuito de afectos bem reduzido contemporaneamente: o medo e a esperança em sociedades do cansaço. O medo de um Mal que pode nos arrastar a qualquer momento para Hades; e a esperança de um Bem que virá nos arrebatar para o Olimpo. O complexo de Édipo, cerne do processo psicanalítico, constitui uma estética da existência. É preciso de num eterno estar à espreita de como somos estruturados psicossomática e socialmente, para não cair na moral inebriante do certo e o errado, o bem e o mal, como o jovem rei Penteu em Tebas - avô de Lábdaco, ambos despedaçados pelas bacantes dionísicas. Há uma construção social da realidade subjetiva, mas também da corporalidade desejante (Safatle, 2015), pois aqueles que negam suas pulsões orgiásticas, sofrem consequências da repressiva dionísica.


(...) o medo como afeto político central é indissociável da compreensão do indivíduo, com seus sistemas de interesses e suas fronteiras a serem continuamente defendidas, como fundamento para os processos de reconhecimento (Id., p.9). 

Tudo se inicia aí, no complexo de Édipo e sua herança familiar anti-bacanal, essa antessala da angústia frente ao desamparo que todos nós enfrentamos em relação ao tesão por nossas Mães proibido. Será sempre o feminino/Mãe forjando a erogenidade que insistem em nos frustrar, enquanto o masculino/Pai, nos castrar. 


Iniciamos aí uma dura e feroz travessia de ambivalência internalizada: até quanto posso ou não sentir a mim em relação aos outros Corpos-Eu's que me habitam?. Serão aqueles, em nossas fantasias e realidades, os responsáveis por nos afastar de tudo o que desejamos? É por causa Dele que Ela não pode (ou quer) ficar comigo! Meus pais são sádicos e perversos comigo? Só pode ser isso!


Essa triangulação edipiana angustiante no faz perceber, aos poucos (se tudo der “certo”, for suficientemente bom), que somos um imenso e infinito Vazio desejante, e aí, a liberdade que tanto nos amedronta se instala soberana e assustadora. É uma contradição que não podemos suportar, pois resistir a realidade e lutar contra Isso, é tanta realidade que é preciso inventar ficções que me curem deles em mim. Mas como criar jeitos novos de existir, recalcando tudo o que desejamos, e ainda ser aceito pelo Pai/A Lei enquanto, no Real, desejamos matá-lo para transar com nossas Mães, e vivermos felizes para sempre


Me pergunto agora: será que pensei isso em voz alta? Culpa/medo e a esperança de ninguém ler meus pensamentos, me fecho (recluso), óbvio, afinal não sou louco! - penso sozinho para logo esquecer (Násio, 2007, p.61). Posso confessar meus anseios e expectativas aos padres, feiticeiras e psicanalistas, dizem por aí.


Essa atitude ambivalente, até mesmo incoerente da criança, vai instalar-se duradouramente na personalidade do sujeito como um modelo de todas as atitudes que ele adotará, adulto, diante daqueles que despertarem nele o desejo de possuir o outro, ser possuído por ele ou destruí-lo (id.).  


É justamente aí, nesta cartografia lisa do Vazio que somos, onde precisaremos nos submeter voluntariamente a quem nos vigiará e punirá de todo e qualquer desvio da Lei que nos castra. Então, toda travessia psicanalítica ou rumo a certa maturidade psicossocial, passa, necessariamente, por nos afirmar em desamparo como linha-de-fuga a uma servidão voluntária (Násio, 2007, p.61; Costa, 2010, p.16; Safatle, 2015).


Você sabe com quem está falando?

No desamparo, sem expectativa, o que nos move é o Desejo sem falta (mas como produção), caso oposto, é à Demanda, essa deusa da falta que precisarei me sacrificar em direção ao Sujeito que devo estar; isto é, o que devo fazer enquanto aguardo desejar o desejo-do-Outro? Mentir sobre mim mesmo, que será reprimido e me assombrará até eu ter resolvido o que fazer com tudo isso, quem sabe o que farei?


Todo neurótico age por demandas, afinal, o que outro vai achar o que eu sou? Será que vai me amar tanto quanto a minha Mãe? Agir por demandas é o próprio agir narcísico, nos relembra o pequeno Hans, esse "pervertidinho", como brincava o próprio Freud. Mas quando ajo pelo meu desejo, devo me responsabilizar por ele e não pelo o que o Outro (esse demônio-rei Penteu que me assombra) entende que eu precise desejar. Cria-se em mim (nós, edipianos) aquela angústia inicial que se repete, repete e repete até se diferenciar. Quem tem coragem em infringir A Lei/Pai por movimentos desejantes singulares? Culpa, medo e esperança de "não cair em tentação" - e fazemos o sinal de cruz em respeito ao Filho-Deus-Pai.


Não sei por quê, mas é isso que eu quero, mas posso desejar? Será que tem alguém vendo e vigiando meus pensamentos? Desejo e Demanda nos movem diferentemente.

Quer se trate da aflição do abandono, da humilhação por maus-tratos ou da sufocação ligada à sedução, estamos sempre na presença da angústia de castração sob a forma mais mórbida, que confina com um terror de castração. Diremos, portanto, que a fobia, a obsessão e a histeria são os diferentes modos de retorno do Édipo traumático à idade adulta (Násio, 2007, p.62).  


Primeiro éramos o Todo, meu corpo despedaçado foi se juntando nas conexões erógenas experimentadas pelos estímulos maternos; como não desejar viver assim a vida toda? Porque alguém, em "sã consciência" me privaria desse gozo? Justo o meu Pai? 

É que os vínculos sociais, para serem estabelecidos, exigem esse primeiro sacrifício. A experiência de um afundamento em mim, necessita um investimento libidinal no Eu que ainda sequer existe na Real. Entendemos, aos poucos, que há infinitos outros Corpos-Eu-sendo na medida exata da morte de "sentimentos oceânicos", quando emergimos da Terceira Margem do Rio Materno. É muita angústia, por isso inventamos vértices da realidade (ou Perspectivismos) próprios, para nos reconhecer como um Eu-finito que anseia imortalidades.


Todo projeto de vida é aquele que conseguimos suportar; assim, a insatisfação dos bem-sucedidos é pior do que a de todos os frustrados mal-encaixados. Sendo Eu um nada, carregamos conosco o potencial de ser qualquer coisa; mas o mundo em que crescemos já nos chega prontamente inacabado e recheado por regras de convívio já muito bem estabelecidas; não há muita margem para disputar novas perspectivas e cartografias existenciais. É preciso passar pelo segundo sacrifício, resistir ao mergulho narcísico suicidário embebido apenas de Si-mesmo. Como introjetar as "regras do jogo social" e ainda assim, elaborar estratégias de uma vida libidinal singular? Somos uma intrincada construção social da realidade eternamente sendo num começo-meio-começo, como diria Nêgo Bispo (DOS SANTOS, 2015). 


Ha algo em mim que é indeterminado e continua florescendo. Serão anos de aprendizagem no cuidado de si para (se conseguirmos), enfim, nos reconduzir ao rizoma de indeterminação do que conseguiremos ser do que a vida fez de nós.


Quando o Édipo transa com Jocasta?

Letreiros iniciais desconexos que variam entre linhas horizontais e verticais, é tudo simétrico, organizado, mas ainda assim as letras não se encaixam, se distorcem no primeiro momento. A trama inicia no deserto do Arizona - o Grande Sertão: Veredas deles, com Riobaldo e Diadorim, essa ambivalência que nos confunde tanto: afinal, podemos nos apaixonar por esse homem tão materno? 


A primeira cena mostra uma cidade plana, plena e delimitada pelas montanhas no fundo; tudo muito bem organizado, mas a trilha musical de suspense se mantém, anunciando uma tensão assustadora: algo não “bate” muito bem. Cidade vazia, sem ninguém passando ou carro virando, prédio branco e inóspito, limpo, um profundo nada. Tudo, ao mesmo tempo, fascinante e aterrorizante. Ele precisa, antes, pagar as dívidas do pai para assumir a relação com ela. A câmera fecha numa mosca na comida que ela nem tocou, me lembra Kafka (Hitchcock, 1997). É assim que se abre a história de um homem que não aprendeu a construir Eu, e se transformou em psicótico.


Ele é casado ainda, portanto, um homem com três mulheres (esposa, amante e a Mãe), mas se insinua (num chiste) à irmã dela: É tão bonita quanto você?, pergunta. Gostaria de conhecê-la (ri), quem sabe as duas filhas não puxaram a Mãe, pensa inconsciente. A amiga dela toma calmantes que roubou da própria mãe, e oferece a ela: Quer um? A personagem recusa, mas se conhecesse bem a sua própria história a se desenrolar, levaria uma ou dois comprimidos para depois do jantar no Bates Motel, sem dúvidas (Id.).


Um senhor mais velho olha para ela se insinuando: Você se parece com a minha filha, exclama. Na sequência, se lamenta porque a garotinha-do-papai vai se casar em breve e irá se afastar dele. Ele mesmo entrega nas mãos dela, uma grande soma em dinheiro vivo - como se fosse seu próprio falo. Horas depois a personagem dela estará fugindo para entregar o falo/dinheiro-vivo para o seu amante; já que, como adiantamos, o filhinho-da-mamãe, com as suas três amantes, só poderá assumi-la quando pagar as dívidas que herdou do Pai (Id.; Amaral, 2004). 


Ela deseja muito transferir o falo/cash do homem maduro (que já matou a sua mãe, ela imagina) para o seu homem-menino-da-mamãe, deste modo, enfim, matar seu pai, desistir da mãe e da esposa, e se casar com ela - que não vê a hora de ter um falo só para si (Hitchcock, 1997).


O Sacrifício pelo social e nascimento de um Eu

Toda neurose, deste modo, é um desajuste (uma resistência, uma afronta) A LEI (Pai). Eu resisto a me (con)formar com o que todos desejam (ou exigem) de mim, para que eu seja aceito como “indivíduo social” - um modelo ou ideal de Corpo-Eu. Por outro lado, o que serei sem as Leis, sem um Eu, sem meu Pai/Falo? Se eu o matar, minha mãe se suicida e sofrerei; afinal, se todos seguirem seus próprios desejos, não seremos mais um grupo social coeso, não é assim que nos ensinaram?


A depressão, por sua vez, parece um desajuste consigo mesmo (esse Eu), um cansaço, desânimo com o Si-mesmo construído socialmente - foi isso o aconteceu quando transei com a minha mãe, lembra? Caio no precipício que todos nós dançamos inebriados num culto orgiástico ao lado de Shiva, Dionísio e Exu - o avô de Édipo sabe bem o que acontece quando se proíbe o culto a esses deuses do tesão/Desejo como produção.


(...) o Édipo é, portanto, o processo que atua na estruturação de toda a organização psíquica e, nesse sentido, as estruturas clínicas – neurose, perversão e psicose – devem ser consideradas observando-se as relações triangulares de amor, desejo e gozo aí produzidas. Dito de outra maneira, castração e Édipo articulam-se como modos de acesso do sujeito ao seu gozo, ao seu desejo, à sua sexuação (Costa, 2010, p.9). 

Surge uma angústia e sintomas, indicativos conscientes do que se passa num rio subterrâneo de afectos inconscientes, entre as nervuras do real sob a pele. Podemos arrefecer apenas aos sintomas ou aprender a recontar a história sobre nós mesmos, abrindo frestas criativas para novos modos de ser/estar e, quiçá, inventar caminhos a novas Leis aos recém-chegados deste mundo. Estes corpos recém-chegados, como nós, precisarão também internalizar regras sociais e, com isso, renovar angústias e sintomas edipianos inculcados neles, mas agora por nós, seus pais e mães transgeracionais, num começo-meio-começo


Alguns, abrirão novas frestas ao real ainda impossíveis antes de nós. E a vida seguirá seu curso inconstante em metafísicas canibais, se renovando por novas angústias e sintomas. É se submetendo ao Pai e desejando a Mãe que nos (des)organizamos em sociedades tão pluridiversas. Era uma vez um profeta cego e errante vendendo ingressos para o espetáculo Bacantes de Zé Celso no teatro Oficina.


Síntese: Sempre há os desejos aceitos pelo socius em que vivemos - papai-mamãe, patrão, professora, padre… a LEI internalizada; assim como todos os desejos não aceitos pela LEI (e seus representantes). Os não aceitos serão reprimidos, produzindo neuroses, psicoses e perversões em diferentes graus entrecruzados - e seja o que as Moiras tramarem. Mas toda repressão encontra seus meios de retorno e demônios, exigindo sua parte na vida social. Por outro lado, os muito-bem-ajustados, se pensando o máximo, podem se deprimir, justamente, por exageradamente “socializados”, assim, esgotados do Si-Mesmo que construíram para eles se con.formarem


Qual a saída (im)possível? Enfrentar o desamparo em que estamos inseridos, com muita criatividade e um brincar com alma de um palhaço de festa infantil no recontar de nossas próprias histórias. Toda Cultura e Corpos podem falhar em seus (des)ajustes. A Arte existe como meio eficaz a dar vazão ao que não podemos imaginar de olhos abertos, não há coxia, platéia ou bilheteria, só o palco que estreamos sem aviso.


O Desejo que não posso e sua fantasias

O Complexo de Édipo é a elaboração de uma fantasia baseada no desejo, por isso é tão similar a análise, essa eterna reelaboração do Ser alguma coisa. Os meninos aprendendo a perder na disputa com o Pai (que os castram), se sentindo parte do coletivo e das Leis que lhes organizam por dentro e por fora. A disputa pelo amor da Mãe é perdida, enfim, pois o Pai tem um Falo maior que o filho (e a filha nem o tem, a castraram de saída). São todos signos, sem dúvidas, mas demora para se compreender assim: o que significam os símbolos que fantasiamos em fantasmas, demônios e divindades?


A grande renúncia (ou sacrifício) é que devemos ser convencidos a aceitar abandonar o amor da Mãe pelo Pai, reprimindo o parricídio. Mas é que essa hostilidade, não nos abandona nunca, como bem descrito em Totem e Tabu (Freud, 2013). Esse rancor pelas Leis que o Pai representa e precisamos introjetar, e o sacrifício ao Amor da Mãe, retorna projetando tabus que nos lembram da morte e seus espíritos que estarão sempre nos espreitando. Ou é isso, ou a culpa que Édipo carrega pela morte do pai, o suicídio da Mãe e a cegueira autoimposta acompanhada do exílio e marginalidade social. 


Há uma estrutura-estruturante de nosso psicossoma-social que não começa com o nascimento, mas herdamos de nossos antepassados. Deste modo, há uma investigação transgeracional que acompanha qualquer processo psicanalítico. O Eu, é um Nós num intrincado percurso sem-fim - a cobra mordendo o próprio rabo. A nossa história se confundindo com a dos nossos avôs que se em.brinca com a da Mãe, influencia nossos Pais, imaginando Leis e castrações a que todos se impõem pelo o amor e o carinho à humanidade que devemos representar (Násio, 2007, p.62). 


Para conseguirmos ser o que nunca saberemos por completo, nos resta perspectivas, sempre incompletas e inacabadas de nós mesmos. E a cada cont(r)ação de nós mesmos (Corpos-Eu's), revisamos o próprio acúmulo de tempo que somos, num eterno do fazer-desfazendo - é que no final, nos transformamos em Moiras mais uma vez.


Comer esse pai tirânico e poderoso, que constituía um modelo invejado e temido, foi um meio de identificar-se com ele e apropriar-se de sua força. Depois de tê-lo eliminado e de ter satisfeito seu ódio e seu desejo de identificação com ele, voltaram a predominar as moções ternas. Isso se deu na forma de arrependimento e, assim, nasceu uma consciência de culpa. (Costa, 2010, p.17) 

A tragédia de Édipo representa a rebelião de todas as famílias. Quem poderá imaginar que uma revolta do avô ao culto de um Deus bêbado (Dionísio) e sua morte pelas belas e nuas discípulas bacantes, poderiam atormentar seu neto e o desgraçá-lo com desejos incestuosos e parricidas que carregamos ainda hoje? 


Aqui nos resta a lição que aos loucos e aos que amam, tudo se perdoa, por isso o tema básico aqui é o abandono ou desamparo como estratégia de uma vida que vale a pena ser vivida, pois, quase sempre, de tudo que fugimos, reencontramos no caminho.


Considerações Iniciais

Jocasta quando não se coaduna com Laio, ajuda (de alguma força) Édipo a matar Laio, o Pai, passando a morar empalhada no porão de uma casa velha com o seu filho psicótico: é uma maldição que recai a todos que insistem não obedecer à Lei coletiva e culto aos deuses orgiásticos. 


O Filho agora, sem-Lei/Super-Eu (e sem Eu, um desLeal) se confunde com a Mãe, que não suporta essa vergonha e culpa, se retirando da vida pela porta dos fundos. Por isso que no quarto da Mãe-Édipo, vemos um quadro com uma estrada que não nos leva a lugar algum, pausado ao lado de uma estátua de Hermes no canto, esse mensageiro divino e fofoqueiro que nos conecta com os mortos (Hitchcock, 1997). O quadro e a estatueta, como arte simbólica do ódio e da culpa que somos condenados a carregar: o desejo e a vergonha do parricídio e do incesto na casa de um psicótico.


Somos ambivalentes como filho de Hermes/Mensageiro do Inconsciente, o Grande deus Pã, outro discípulo de Dionísio que, provavelmente, estava entre as bacantes despedaçando Lábdaco (nosso avô-Edipiano). Como então não enlouquecer entre o que desejamos e o que a Lei proíbe, isto é, tudo aquilo que precisamos obedecer para estarmos investido de um Eu e não matarmos nosso Pai e entristecer nossa Mãe? A vida é perigosa, nos alerta mestre Rosa.


A solução talvez, esteja em abraçar o trágico, esse mal-estar civilizatório de saber que não vamos dar certo de jeito maneira, por isso viver sem expectativas nem pelo ideal-do-Eu que nos impõem ou do Eu-ideal que imaginamos. É nos lançar com os braços abertos e corpo nu (sempre com muita prudência) àquilo que não controlamos, essa indeterminação de Si e, quem sabe, manter o fogo ritual dionísico aceso e desejante, protegendo as próximas gerações do medo e da esperança, mas confiando (lit. confides ou com-Fé) no improviso dos corpos em desejo.


Referências Bibliográficas

ALMEIDA ALI, N.S. (2016) Corpo de Diadorim - abjeção, Deus e o Diabo. Ide São Paulo, 39(62): 167-182.

AMARAL, N. (2004). Amor e dinheiro: o falo na clínica da neurose obsessiva. Tempo psicanál, 36: 57-68

COSTA, T. (2010) Édipo. Rio de Janeiro: Zahar Ed.

DOS SANTOS, A.B. (2015) Colonização, Quilombos: modos e significados. Brasília: Unb Editora. 

FREUD, S. (2015) Análise da fobia de um garoto de cinco anos ("O pequeno Hans", 1909). In: Obras Completas Vol.8 (1906-1909).

FREUD, S. (2013) Totem e Tabu. São Paulo: Penguin-Companhia.

HITCHCOCK, A. (1997/1960) Psicose. Dirigido e produzido por Alfred Hitchcock, Estados Unidos: Paramount Pictures, 1960.

MARCHINI, W.L. (2016) Atravessando as margens: Uma leitura do conto “A Terceira Margem do Rio” na Perspectiva do Rito de Passagem. Teoliterária, 6(12): 216-222.

NÁSIO, J.D. (2007) Édipo. Rio de Janeiro: Zahar Ed.

SAFATLE, V. (2015) O circuito dos afetos. São Paulo: 2⁠ª edição revista. Ed. Autêntica.

VIVEIROS DE CASTRO, E. (2004) Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. Revista O que nos faz pensar, 18: 225-254.







Introdução

Howard, a personagem principal da trama, entra em depressão após a morte da filha e passa a escrever cartas para a Morte, o Tempo e o Amor. Seus amigos, preocupados com ele e esse estranho comportamento de se comunicar com o "abstrato", totalmente descolado da realidade, também se revelam temerosos com o futuro deles mesmos, pois Howard é o responsável da empresa em que trabalham. 


Buscando ajudar seu amigo melancólico e resolver as pendências da empresa em que trabalham juntos, pensam transformar o delírio do amigo em realidade, contratando três atores para interpretar (secretamente para Howard) a Morte, o Tempo e o Amor, numa tentativa de responder às cartas dele e resgatá-lo à vida e a retomada, consequente, do seu processo criativo desejante uma vez mais.


Entrementes, o enredo do filme passa a questionar todas as crenças e medos, não só de Howard, mas de cada uma das personagens - tanto os atores contratados para o papel das "abstrações narcísicas", quanto os colegas da personagem principal. 


O filme, assim, perpassa as relações humanas e as construções subjetivas que contamos a nós mesmos cotidianamente; mas sobretudo, os sintomas e doenças que se avolumam sem resolução quando tentamos resolver nossos problemas sozinhos, sem lastro com o real e a nossa comunidade, nos ancorando, por assim dizer, em areia movediça de "pensamentos positivos" e autossugestões que se coadunam tão bem com a lógica neoliberal da meritocracia e na ética do trabalho (Cambaúva & Silva Júnior, 2005; Pacheco Filho, 2005).


Colisão 1

A personagem principal personaliza o clichê do publicitário narcisista que, quanto mais investe no seu Eu, mais se isola do mundo com certezas universais (Zimmerman, 1999, p.157-161). Como apresentado logo na abertura da película, o narcísico Howard, imprime seu discurso autoajuda sobre a Morte, o Tempo e o Amor para os funcionários-devotos da sua empresa ao lado dos sócios, fechando o círculo de consagração social que opera em Howard mais ainda o seu delírio de onipotência. Ao final do discurso de abertura do filme (enquanto Howard tem seu narciso bem), todos o ovacionam e o parabenizam de forma esfuziante, o deslocando (a personagem narcísica principal da obra) quase como um "objeto de adoração" pela "igreja-agência de publicidade", onde Howard é o grande líder carismático a ser alcançado (um Ideal de publicitário, homem e Eu). 


Isso pode ser interpretado como o campo social onde Howard transita é extremamente fértil para a produção patológica do seu narcísico, pois, o isola em seus próprios delírios com pouco ou quase nenhum confronto com a realidade, aprofundando ainda mais seus investimentos libidinais em ideias que não encontram contradição e, por consequência, se produz um Eu descolado do todo.


Encontramos neles [narcísicos patológicos] traços que, isoladamente, podem ser atribuídos à megalomania: uma superestimação do poder de seus desejos e atos psíquicos, a “onipotência dos pensamentos”, uma crença na força mágica das palavras, uma técnica de lidar com o mundo externo, a “magia”, que aparece como aplicação coerente dessas grandiosas premissas. (Freud, 1914/2010, p.10-11) 


O Corpo-Howard se agrava a um nível patológico quando da morte de sua filha por câncer. Ele se contrai ainda mais perante ao mundo que o oprime, deixando de fazer sentido. Agora, quase não saindo de seu vazio apartamento - cartografia-símbolo de seu aprofundamento disruptivo com o "mundo externo a ele mesmo" - aparece meditando sozinho e no escuro da sua sala-living sem Wi-Fi, telefone ou outros móveis. 


Visita, por exemplo, 5 dias da semana a sua empresa (um local de muito movimento criativo e luminosidade), onde passa a manhã inteira montando uma sequência super complexa com dominós coloridos, numa engenhosa construção organizada, mas que não levam a lugar nenhum, se desmancham em segundos. 


É lindo o tempo e amor que dedica à morte que desfila no tombar de peça por peça, num jogo efêmero e desconectado com o dia-a-dia da empresa (está alienado do que faz e o que fazem em torno dele). Como em sua própria vida atual, tudo constrói e desconstrói, afastando-o do encontro com as pessoas - que desmoronam com as peças de dominó. 


Esse seu trabalho diário de edificação frágil em dominós e destruição lenta e hipnotizante de si por si, ocupa mais de três mesas de uma linda e gigante sala de conferências - local onde ele, antes, proferia as suas certezas inabaláveis sobre o universo que hoje morre todos os dias ao lado das palavras de ordem que desapareceram de sua boca e mente.


Colisão 2

É interessante notar que enquanto assistimos ao filme, com uma atenção "psicanalítica", mas também consultando sites populares que comentam sobre a obra cinematográfica, estes meios mais populares de divulgação e comentários, estão “apaixonados” e compadecidos com a personagem principal narcisista. É lícito pensar, ser exatamente assim que o narcísico mais apreciaria estar, ou seja, o palco das atenções e preocupações de todos (seus colegas no filme, os espectadores no cinema e os demais desavisados influenciadores digitais e, até a mídia especializada mais popular, por assim dizer: idolatrando o delírio do louco que se acha não compreendido pelo mundo. Seria assim, porque, todos sendo narcísicos, acionamos mecanismos de defesa a não o odiar, pois ele nos espelha? Estaríamos nos afastando, de alguma forma, da nossa realidade também quando não enxergamos em Howard alguém que só pensa nele mesmo? 


Com certeza não é coincidência vermos Howard como se não precisasse de ninguém para sair dessa situação caótica em que está perdido e nadando ao esmo. Entrementes, em quase todas as cenas, ele aparece vestido com uma espécie de colete salva-vidas laranja. Ele está, inconsciente ou não, pedindo ajuda enquanto a rejeita com todas as suas forças. É como gritasse socorro enquanto se afoga furando todos os botes infláveis que jogam ao mar na direção dele. E todos percebem isso, oferecem apoio, oportunidades infinitas para ele sair dali, mas Howard insiste em se afogar gritando por socorro de forma surda, mas puxando todos com ele. 


A desconexão com a realidade faz o narcísico patológico só enxergar a ele mesmo, abraçando sua culpa e ódio; parece haver um ganho emocional/afetivo aqui, pois os seus problemas (o luto pela morte da filha há anos e como todos se compadecem com seu sofrer) ser o único objeto a direcionar a sua libido. Entretanto, quando comparado à dor e sofrimento dos seus colegas, as dele, não são maiores ou "melhores"; pelo contrário, seus colegas enfrentam problemas, talvez, até mais urgentes e presentes do que o sofrimento do narcísico patológico principal. 


Uma de suas colegas, por exemplo, não consegue engravidar pela idade, outro está morrendo de câncer e o terceiro, segue com profunda dificuldade de se aproximar da própria filha. E, mesmo assim, se preocupam mais com Howard do que eles mesmos - é o inverso do que Howard faz, não consegue estabelecer conexão com ninguém mais além dele mesmo. 


Não é ter ódio do narcísico patológico do filme, mas retorná-lo ao seu devido lugar (ao lado, nem acima ou abaixo do real, mas dentro/ por entre novamente), pois não é o único que sofre no planeta e nem seu padecer é superior ao de qualquer outro ser humano "comum" e ordinário que, como ele, estão precisando de ajuda também. 


Colisão 3

Os amigos buscam uma última saída para solucionar o investimento megalomaníaco do narcísico no próprio Eu e sua vida no ideal, que elabora e guarda consigo. E a linha-de-fuga que descobrem para tentar fazer passar alguma coisa, além dele mesmo, neste corpo anestesiado e com uma psiquê alienada, convidando a dialética de "Hegel" para dançar. Digo isso, pois Hegel é o nome do teatro (essa cartografia do impossível acontecer), onde três atores serão convencidos a representar a Morte, o Tempo e o Amor, respectivamente, as abstrações em que Howard insiste em escrever buscando respostas ao "Universo". 


A proposta é que 3 atores representem a fantasia do narcísico que vem dialogando por cartas com temas abstratos (Morte, Amor e Tempo), e consigam responder às suas perguntas e angústias. A menção a Hegel é deveras interessante, pois nos remete à dialética ou "caminho entre as ideias" que este filósofo desenvolveu. Numa dialética hegeliana, esse recurso filosófico em que Freud se inspira para formular a livre associação de ideias para a Psicanálise, consiste em contrapor a uma ideia, produzir, assim, uma contradição, movimentando o problema inicial em direção à vida que pulsa, ou seja, ao invés de ficarmos sedentários por certezas e universais delirantes (como se comporta Howard), somos obrigados a construir sínteses e solucionar o problema inicial que, antes do diálogo, nos paralisava.


(...) alguém que sofre de dor orgânica e más sensações abandona o interesse pelas coisas do mundo externo, na medida em que não dizem respeito ao seu sofrimento. Uma observação mais precisa mostra que ele também retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos, que cessa de amar enquanto sofre. A banalidade desse fato não pode nos dissuadir de lhe dar uma tradução em termos da teoria da libido. Diríamos então que o doente retira seus investimentos libidinais de volta para o Eu, enviando-os novamente para fora depois de curar-se. “No buraco de seu molar”, diz Wilhelm Busch do poeta que sofre dor de dente, “se concentra a sua alma.” (Freud, 1914/2010, p.16)


Há, no narcísico patológico (ou sedentário de ideias novas sobre si-no-mundo, pois enclausurado) um analfabetismo de se comunicar com a realidade ou uma lenta e baixa produção desejante que o estaciona num hiato sem sentido. Sem diálogo, portanto, "as palavras certas" deixam de se deslocar "da cabeça ao coração", como explicita um de seus colegas conversando com os atores dentro do "Teatro Hegel". 


Estes atores hegelianos serão contratados, como dissemos, para representar a morte, o tempo e o amor. A ideia surge de um dos colegas de Howard que tem sua mãe com esquizofrenia; e nas tentativas fracassadas de dialogar com ela, percebe que é impossível trazer sua mãe da perspectiva de mundo em que ela vive, mas é possível entrar na realidade dela, onde ambos se entendem e voltam a vida "real deles", onde ambos inventam meios de coexistir e voltar a se comunicar "normalmente". Se eles desejam resgatar o narcísico-amigo, vestido com seu colete laranja salva-vidas, é necessário entrar no mundo que ele criou para suportar a dor que carrega pela culpa e o ódio por si-mesmo, e puxá-lo, aos poucos, de volta ao real compartilhado.


Ainda no espaço do teatro hegeliano, temos a "pausa dramática", bem ao estilo de Tchekhov, onde a fala e a compreensão acontece no silêncio, sem pronunciar uma palavra sequer. Este silêncio que fala muito, associado à dialética hegeliana e a associação livre das ideias na psicanálise, parecem contemplar uma cartografia nova com o potencial de abrir frestas do narcísico ao real mais uma vez, sensibilizar seu Corpo, fazendo-o retomar ao processo criativo da sua vida pelo amor.


Colisão 4

Os amigos do melancólico Howard tecem ligação evidente com a Morte (o doente terminal), o Tempo (a mulher que deseja fazer inseminação artificial pela idade) e o Amor (o colega com problemas com a filha), evidenciando que cada um de nós tem um narcisismo ainda a ser trabalhado, pensado, revisitado e a tecer relações sociais mais intensivas com humanos e não-humanos. 


Vejamos o caso de nossa personagem narcísica principal que recusa ajuda (conexão social) quase o filme inteiro, mas todos os dias pedala até um parque público (cheio de gente), onde fica horas observando cães brincando (os melhores amigos do homem), enquanto, sentado e sozinho, satisfaz seus desejos "proibidos" de ter amigos mais uma vez e brincar com eles? Ao lado da simbologia do colete salva-vidas, que já elencamos, seria este mais um sinal inconsciente de pedido de ajuda? Julgamos ser lícito considerar que sim. 


Ele parece preferir abraçar a morte a desapegar da sua dor e raiva. Inclusive a atriz que representa a Morte no filme, se mostra sempre tão narcísica (ou mais) quanto o próprio Howard. Há uma cena, por exemplo, em que a atriz-Amor se recusa a continuar a farsa de enganar o Narcísico, eis que a Atriz-Morte se voluntaria prontamente para tomar o papel do Amor também para si. É uma representação simbólica interessante, mas que não se concretiza: Amor e Morte numa mesma personagem ou a morte representando o amor para o narcísico patológico. 


No entanto, não é nem com o Amor ou o Tempo que o Narcísico se abre pela primeira vez, mas quando a atriz-Morte o convence a ir ao grupo de apoio para conversar - lugar no qual ele frequentava sempre, mas só observando os diálogos acontecendo de longe, afastado, por detrás de uma janela, na rua fria, molhada e escura. A Morte o convence a matar esse Eu-Narcísico conversando?


Se o amor não voltar, eu assumo o papel dela”, diz a morte numa cena. 

O encontro com o ator-Tempo é interessante: "É um moleque arrogante e cheio de atitude", reclama o Narcísico enfurecido com o encontro temporal. A atriz-Amor é a mais resistente em continuar jogando (playing, termo em inglês que significa, ao mesmo tempo, atuando - como um ator - e jogando - como um atleta) com o Narcísico. Ela (o Amor) não gosta do Narcísico; já o ator-Tempo parece indiferente a ele, até entediado com a personagem narcísica patológica. Este, o ator-Tempo é um malandro, sorrateiro e pouco confiável - combina algo num bairro marginal, mas não cumpre exatamente o que prometeu. É a morte mesmo que estabelece uma relação mais duradoura com o Narcísico o filme inteiro, sendo a mais velha também - a atriz que interpreta a atriz-Morte, é a mais madura dos outros três atores, Amor e Tempo.   


É que a atriz que representa o Amor está sempre muito ocupada (ela está ensaiando 3 peças ao mesmo tempo, no filme, por exemplo) e, numa das cenas, ela sai do Teatro Hegel com uma ponte de fundo na fotografia da cena filmada. Atrás da atriz-Amor e a personagem-Narcísica, enquanto dialogam, a ponte do Brooklyn em Nova Iorque, emoldura a fala dos dois. Seria o amor, então, a ponte que conecta o desinvestimento no Eu e o retorno, enfim, a realidade para a cura narcísica? 


O Amor também se mostra o mais resistente em entrar em cena, ou seja, ela (a atriz-Amor) se recusa e se indigna em assumir o papel de enganar a personagem principal. A Morte não, parece estar desejando atuar na sua performance e se envaidece quando elogiada que atuou bem. O Tempo parece estar sempre de mau-humor, indignado com o Narcísico e sua impaciência e impotência - o tempo está sempre em movimento com um skate, em quase todas as cenas.


Há uma atração em amar, mas o Narcísico do filme sentiu medo ao se perceber amando de novo, conectado, depois culpa, como não merecedor desse sentimento, talvez. É o Amor que o aconselha a redirecionar toda a sua agressividade e sinceridade, de volta para vida. Ao se sentir amando, veja que contradição e ambivalência interessante, o Narcísico odeia mais a ele mesmo e o mundo que insiste em retornar. É só aí que o Amor entra em cena novamente. 


Mas é que o Narcísico acredita que o Tempo roubou o Amor dele, no momento em que a Morte carrega a sua filha nos braços pela doença?


Colisão 5

Há uma passagem do filme que a Morte encontra a personagem Narcísica no metro - em inglês, subway, lit. Via ou caminho subterrâneo, ou cartografia localizada abaixo da superfície, no escuro de um "buraco". Eles retomam o diálogo de outras cenas, mas agora parecem transformados (pelo tempo que não está em cena?). Finalmente o Narcísico se rende, parece já bem resignado e cansado de sua não-posição ou imposição, e aceita a sua presença - da Morte ali embaixo junto a ele. 


Na sequência da mesma cena, quando ele já não acreditava mais ser possível sentir o amor, volta à superfície (as ruas da cidade ensolarada de Nova Iorque) e reencontra a atriz-Amor - logo ali, na saída do subway. Agora, onde tudo está mais claro e brilhante - na superfície ou consciente? - pela primeira vez, o Narcísico (que sempre sabe tudo, tem respostas para qualquer coisa, saindo-se com um chiste, uma ironia ou sarcasmo que o rebaixa e a todos em volta), fica sem resposta, se calando a uma pergunta do Amor, que o dispõe em silêncio. O Amor sai de cena e, como um corte lacaniano ou numa pausa dramática (e infinita) de uma peça de Tchekhov, o Narcísico tem algo para pensar que não seja ele mesmo. 


Todos os Narcísicos patológicos se sentem culpados por algo impossível de ser resolvido? O processo terapêutico do narcísico melancólico (seria isso um pleonasmo?) passa pela aceitação da morte que ele parece estar tão apegado, alienado completamente do amor, do tempo e a vida que escorre em direção à morte. Ele, no filme, se sente culpado (e com ódio) por não morrer no lugar do objeto amado? E sempre que sente passar em seu corpo o oposto disso (de poder amar a vida mesmo sem o objeto), se culpa ainda mais. É deveras interessante esse imbróglio.


É que nada está morto se olhar direito, afirma a Morte ao Narcísico - a mais narcísica de todas as personagens. Nem o Tempo, nem o Amor ou mesmo o próprio Narcísico na película, investe tanto no próprio Eu e no afastamento da realidade que a Morte, transparece


Um Narcísico, além de se desculpar, praticamente, o enredo inteiro (o que o transforma no "mocinho" a uma plateia desatenta e desejante de um "espelho") para não olhar para as suas frágeis relações humanas que não consegue estabelecer. Por isso, talvez, a carga de ódio é enorme que carrega nas suas costas curvadas e olhar para baixo. Em suma, precisa voltar a se sentir estranho de novo para se (re)encontrar mais uma vez com um Eu que já não mais existe.


Cena Final

Aprendemos que os impulsos instintuais da libido sofrem o destino da repressão patogênica, quando entram em conflito com as ideias morais e culturais do indivíduo. (Freud, 1914/2010, p.26)

 

Talvez aqui esteja o cerne do Narcisismo patogênico da personagem na obra de ficção, aqui apresentada. O mais espontâneo espectador da obra, poderia julgar ser a morte da sua filha; mas discordaria, afirmando que este evento pode ter sido o gatilho, mas ele parece sofrer mais por se sentir injustiçado pelo "universo" e suas abstrações morais que inventou: amor, tempo e morte. A personagem é tão apegada as suas certezas "perenes" dos conceitos que cria e acredita, que se torna uma espécie de convertido religioso em sua própria "igreja-Eu" e preceitos do certo e o errado.


Ele, como todo narcísico (em potencial de patologização, termo que não existe, mas ainda assim cabe aqui) investe tanto na sua certeza paranoica e delirante (e consagrada pela plateia alienada que o aplaude a cada palestra motivacional no sense, reforçando suas metafísicas e "superfilosofia") que, quando confrontando com a realidade que "não o aplaude" e o despreza, com seus "arquétipos transcendentais" do amor, tempo e morte, que rompe (ele, lit. briga e discute com o Universo/Deus que ele mesmo criou) com o real que insiste em continuar a viver, apesar dele (o Narcísico) não concordar com ela (a Vida/Realidade ou Imanência). Toda a libido (vontade de potência e vida) sofre uma repressão que o narcísico do filme não aguenta, pois "entram em conflito com as ideias morais e culturais do indivíduo".


Na cena final, a ponte - este elemento de cena artístico - retorna, e com ela, o Amor, o Tempo e a Morte observando (do alto agora, mas ainda neste mundo e não no "céu", "estrela" ou "nuvem"), o Narcísico "curado", passeando por debaixo deles na busca de novas conexões com a vida-vivida. É quase um aviso, de que estamos aqui, sempre ao seu lado, com todas as abstrações morais delirantes que possamos acreditar (ou não) pairando, sempre, para além do bem e do mal.


Referências Bibliográficas

CAMBAÚVA, LG. & da SILVA JR, MC. 2005. Depressão e Neoliberalismo: Constituição da Saúde Mental na Atualidade. PSICOLOGIA, CIÊNCIA E PROFISSÃO. 25 (4): 525-535.

FREUD, S. 1914/2010. Introdução ao Narcisismo. In: Obras completas, volume 12: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. SP: Cia das Letras. p.9-37

PACHECO FILHO, R.A. 2005. O capitalismo neoliberal e seu sujeito. Mental. 2(4): 153-171

ZIMMERMAN, DE. 1999. Posições: A Posição Narcisista. In: Fundamentos Psicanalíticos. p.153-162.



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