O PROCESSO DE TRANSPLANTAÇÃO DO YOGA SUL-ASIÁTICO A MÍTICA BRASILEIRA
Introdução
Esse é um ensaio (quase como uma jam session de jazz) dos mitos de Oxum e Iemanjá com o de Shiva e Durga/Parvati na busca da tentativa de compreender (um pouco mais) o processo de transplantação do Yoga sul-asiático a cartografia brasileira. O Yoga nasce plural e de nascimento incerto, mas vai se configurando, modernamente (a partir do século XX), como "filho" da cultura Védica sul-asiática. Mas, já se é bastante documentado, o Yoga não é um, mas vários: há yoga jainista, budista, sikkhi, védico e hoje, também, baiano (SINGLETON 2008).
Podemos compreender melhor a pluralidade mítica do Yoga por forças nômades, mais do que sedentárias. Até mesmo quando estudamos um "yogar" budista ou védico, por exemplo, estes se abrem numa paleta rica de cores; yogues budistas podem ser da tradição Zen, mas também Tântrico. Entre os yogues védicos, convivem os Nagas e os Nathas. E, dentro do Yoga Natha (de tradição védica), a sua origem é fruto de dois yogues budistas com fortes influências muçulmanas (sobretudo da linhagem mística sufi). O Yoga tem "rizoma" que se espalha, muito mais do que "raízes profundas" que se deixam identificar: a origem mítica do Yoga é de uma virgem andrógina que dá o seu filho para outras criarem (SIMÕES 2015).
Durante o período de colonização britânica no continente asiático, por volta de 1600, com a chegada da Cia. das Índias Orientais, os yogues e seus Yogas vão se modificando no encontro com as contradições que o colonizador apresenta ao colonizado. E, com isso, os seus mitos também precisam ser reorganizados para continuarem sendo "eficazes" aos coletivos que se metamorfoseiam em torno deles. As mais conhecidas (e já bastante discutidas) é a ressignificação simbólica da conhecida "fisiologia sutil do Yoga" (chackras, nadis, prana, p.e.) com a fisiologia biomédica": o encontro das águas do opressor e do oprimido na transformação e criação dos mitos modernos yoguicos. É desta reformulação simbólica que a linguagem estrutural do yoga passa a pensar glândulas endócrinas como chackras, sistema nervoso (simpático e parassimpático) como nadis e prana como oxigênio, "libido" e/ou até fáscias musculares (SIMÕES 2017).
Entrementes, há uma lacuna a ser ainda discutida na academia (e nas áreas psi) que é a (re)estruturação mítica yoguica vem produzindo aos que se dedicam a estudar, pratica e viver (como Práxis ou Ética) o Yoga não-nativo sul-asiático ou mesmo "ocidental" (leia-se eurocristão-orientalista). Me refiro aqui, a todos os que colonizaram o Yoga e erigiram para si (mas imaginando universais) um Yoga-Ideal, tanto quanto um Ideal de Yogue. Mas nos focaremos aqui, numa personagem, muito mais interessante, talvez, que é o yogue brasileiro, este duplamente colonizado. Ele foi (está sendo) mitificado num yogar transplantado da Índia pelo europeu e passou a buscar (obsessivamente) se transformar no Ideal de Yogue que o colonizador sul-asiático inventou sobre os Yogas sul-asiáticos colonizados por eurocristãos. Não parece só confuso, é realmente.
Acontece que yogue brasileiro ainda não se deu conta que não é (e nunca será) um yogue sul-asiático e, muito menos, um europeu, pois constituídos por outros mitos que nos estruturam diferentemente - parece óbvio, lendo isso agora, mas acredite, na alma mestiça e culpada do brasileiro classe média que pratica yoga, não é. Realizra uma série de posturas com nomes em sânscrito nos horários prescritos e em alinhamento planetário da astrologia védica e, muito bem informado sobre os mitos sul-asiáticos (traduzidos por alemães românticos, franceses ateus e/ou ingleses protestantes) que nos tornamos como eles. É impressionante, mas continuaremos sendo latino-americanos mesmo mudando nossos nomes de João para Krishna e calçando Birkenstock. Muito pelo contrário, assim, nos transformaremos em yogues sul-americanos, mas nos organizando (yoguicamente) por mediações dos nossos próprios mitos fundantes de uma brasilidade metafísica inconstante e canibal, ou seja, que nos formaram como indivíduos. Estamos condenados a sermos nós mesmos, mesmo fantasiados de brâmanes.
O Yoga e a Maternidade Transferida
O Yoga não tem pai, pois filhe de uma divindade andrógina, Shiva. A Mãe/Pai do Yoga é, ambivalentemente, um homem de seios fartos e uma mulher de pau-duro. Assim, os yogas são gestados por uma "concepção virginal", como entre a comunidade matrilinear dos Trobriands, investigada pelos antropólogos Malinowski e Edmund Leach.
Em outras palavras, o não-saber expresso sobre o campo da reprodução biológica seria, de fato, um saber metaforicamente declarado sobre o campo da reprodução social e sobre a linhagem. É o social que assume o lugar do referente desta “fala” nativa, e não o biológico como poderia parecer (Leach 1966;1968 apud SEGATO 2006).
Portanto, em sociedades de linhagem matrilinear (como dos povos originários sul-asiáticos, criadores do mito de Shiva/Yoga), é pelo "desconhecimento" ou "ignorância" do pai, que a comunidade ocupa a função paterna na criação das crianças, na inserção das Leis. Em outras palavras, não havendo o pai-biológico a ser invejado ou temido como em sociedades civilizadas, é o coletivo selvagem que inserem seus signos e significantes. No caso do Yoga, como seu genitor é andrógino, nos parece lícito supor, que os yogas são criados à "imagem e semelhança" do próprio campo social onde os Yogas crescem e se desenvolvem, gerando, como já afirmamos, infinitos yogas-erês sem a figura da paternidade como a conhecemos no modelo da "sagrada família", papai-mamãe-filhinho. O complexo de Édipo é vivido de outros modos que não o da tradição greco-romana, no qual nós, latino-americanos, não somos descendentes diretos, mas criados por "amas-secas"-eurocristianizadas.
Esse modelo mítico que Shiva/Yoga carrega se encontra com outro modelo político, econômico e religioso, deste modo, novas narrativas míticas se confluem com a chegada da cultura Védica.
A comunidade védica, orbita em torno de um modelo patriarcal que organiza a sociedade (os corpos e as almas) em casta, isto é, é impossível a mobilidade social - mas Shiva é um pouco Zé Pelintra e, malandramente, encontra seu jeito. Ao longo dos séculos, a cultura védica, suas castas e mitos vão subjugando os povos originários da região, os Advasis, que passam a ser considerados "selvagens" e relegados, pelo clero bramânico, a posição de subalternos ou sem-castas. Agora, Shiva/Yoga, criado pelo socius matrilinear advasi, passa a ter Pai e Mãe, pois Shiva se masculiniza e se casa com Durga/Parvati: duas figuras que se contrapõem, sendo Durga uma divindade feminina védica violenta e Parvati, sua versão "dona-de-casa".
Mas, repito, nenhuma delas se torna a "mãe-biológica" do Yoga, que continua sendo cuidado, agora, não mais pela sociedade (como na cultura matrilinear dos advasi), mas por duas mães védicas ou maternidade transferida.
O conceito de maternidade transferida foi desenvolvido pela socióloga brasileira Suely Gomes Costa, que afirma estar presente em modelos sociais coloniais; é o que popularmente conhecemos no Brasil, por "amas-de-leite", depois "amas-secas" e, mais recentemente, "babás" (Gomes Costa 2002, p.305 apud SEGATTO 2006). A autora defende que a passagem da "ama-de-leite preta" para a "ama-seca branca", é fruto de uma demanda da classe média urbana, sobretudo a partir do século XIX, onde há uma mudança no discurso "mítico-científico" perpetrado por uma medicina higienista em países colonizados por eurocristãos: "(...) a pessoa da ama-de-leite tornou-se a mais terrível e alarmante transmissora de doenças", afirma a autora, relatando a influência do racismo na ciência biomédica, como descreve abaixo, a partir de artigos de jornais e acadêmicos da época (Sandre-Pereira apud SEGATTO 2006):
A prática da maternidade transferida e o tipo de relações nela certamente originadas, tanto a partir da perspectiva daqueles favorecidos pelo serviço como daquelas que o prestaram ao longo de quinhentos anos de história ininterrupta têm rastro nas Letras, mas se encontra ausente das análises e das reflexões. A baixíssima atenção a ela dispensada na literatura especializada produzida no Brasil destoa com a enorme abrangência e profundidade histórica desta prática e o seu forçoso impacto na psique nacional.
O brasileiro das famílias mais abastadas, precisou aprender a foracluir/rejeitar (eu diria até, odiar) sua mãe transferida (a ama-de-leite) de "longa duração histórica", pelo medo de receber os signos dos selvagens que o amamentou, levou para passear no parque e ninou até adormecer quando este estava com medo. Algo muito similar ocorre na passagem do Yoga sul-asiático autóctone matrilinear dos advasis/selvagens para o Yoga inserido pela cultura védica. Não por coincidência, quando o Yoga alcançou (por volta dos anos 1950-60) a cultura brasileira, se populariza (ainda hoje se mantém assim) entre os corpos brancos e de "alta-casta", uma busca espiritual e bem-estar em práticas absolutamente distante de suas origens, como que rejeitando as mães-pretas que os criaram: eles querem ser qualquer coisa, exceto um brasileiro filhe da macumba, do pajé e do padre.
Oxum, Iemanjá, Durga e Parvati
E que tipo de sintomas psíquicos esse processo civilizatório cruel pode ter causado na alma do yogue brasileiro e do Yoga védico que herdamos aqui? Talvez o de repetir o que precisou rejeitar, sua mãe não-biológica: o Yoga védico o yogue brasileiro foram criados por "amas-de-leite", mas precisam rejeitá-las como medo/ódio de estarem contaminados. Isso pode explicar por que os yogues brasileiros tenham transformado suas práticas em verdadeiros treinamentos de "alta performance", competindo entre si por aplicativos que medem seus rendimentos yoguicos.
O mito de origem Yorubá narra a história da separação das águas, onde Iemanjá (água salgada) e Oxum (água doce) disputam quem ocupa o status mais alto no panteão mítico desse povo. A cultura Yourubá veio junto no corpo/alma de africanos em diáspora e escravizados pelos colonizadores brancos, mas foram se miscigenando aos povos originários do Brasil e dos colonizadores também. No entanto, o eurocristão colonizador sempre se imaginou (delírios e fantasias psicóticos, daqueles que não souberam se distanciar das próprias mães?) superior - moral e cognitivamente - dos corpos "desalmados" (diabólicos, selvagens) que colonizavam. Essa compreensão difusa (sadomasoquista, talvez?) se aproxima da linguagem mítica dos brâmanes sobre os advasis, o povo originário e criador do Yoga sul-asiático.
Na descrição mitológica do panteão de divindades, Yemanja é o que os membros do culto chamam de “a mãe legítima” dos orixás, fazendo aqui coincidir o aspecto de mãe biológica, que deu à luz os deuses filhos que formam o panteão, com a mãe jurídica. Com efeito, diferentemente do caso antes referido da paternidade trobriandesa, superpõem-se aqui a genetrix e a mater juridica, e o nome comum de “mãe legítima” é aplicado ao papel coincidente das duas funções. Ainda uma segunda – embora, em realidade terceira, por ser as outras duas, nesta perspectiva, uma só – forma de maternidade existe no contexto do culto, cujos membros claramente separam esta maternidade “legítima” daquela exercida pelo que chamam “a mãe de criação”, representada por Oxum. A miúdo, neste ambiente, como já disse, a conversação ordinária toca o assunto da diferença entre criar filhos e pari-los (SEGATO 2006).
A autora defende que pode ter nascido daqui, o famoso complexo de vira-lata (ou sentimento de mestiço) brasileiro, pois, além de ter que passar a cuidar dos filhos de outras famílias e/ou foracluir a Mãe, produziu no brasileiro o desejo em rejeitar tudo o que remete ao que ele já foi ou é, do mesmo modo que foi feito com ele. Por isso, argumenta, o brasileiro nascido das "altas castas", ama tanto a vida de "liberdade" do estadunidense e rejeita o SUS brasileiro, acha "chique" os cafés parisienses e "brega" os botecos cariocas, idolatra o Yoga indiano brâmane-"védico" e desdenha do yogue baiano que rebola ao som do Axé (SIMÕES 2018).
O Yoga védico, assim como o Yoga brasileiro da Vila Madalena/SP ou de Ipanema/RJ, finge não ser mais criado pela sociedade matrilinear do seu pai andrógino que tanto os envergonham. Ele (esse Yoga/Yogue moderno) busca autoconhecimento em qualquer outro lugar que não seja a sua própria "família", rejeita, assim, a sua "ama-de-leite-preta"/Durga-Oxum, símbolo de suas raízes "selvagens, nômades e indóceis", e tenta - de todos os modos e forças - se aproximar da sua "mãe-biológica"/Parvati-Iemanjá que nunca estabeleceu qualquer vínculo com ele, aumentando o sentimento de não-pertença a lugar algum, de isolamento e vazio. Com um Eu/Ego enfraquecido, passa a ser ensinado a cultuar o não-desejo, ou seja, se autocastrar, como valor moral. Com isso, cresce gozando com a Linga dos outros, pois foracluído a figura paterna (andrógina de Shiva, de origem subalterna, mestiça) e sendo ensinado a odiar a sua "mãe-criadeira"/Oxum, pois signo de contaminação e impureza que tanto o envergonha e culpa ter "seu leite correndo seu sangue", que delira "azul" ou pertencente a nobreza/alta-casta, que nunca será.
O yogue brasileiro (sobretudo o formado pela elite racista brasileira, filhe da Casa-Grande, mas "cria" da Senzala) possui uma tendência a direcionar a sua libido/tesão (força criadora) a si-mesmo (fortalecendo uma postura narcisista) e, ao mesmo tempo, rejeitando toda a sua herança materna, pois se sente desconectado do (seu) mundo (realidade ou samsara), passando a delirar/fantasiar Moksha ou a Plenitude Eterna e Samadhi ou uma Experiência Transcendente que o liberte de todo o mal, pecado e sofrimento que (acredita, pois uma narrativa mítica colonizada nele) carregar por rejeitar tudo o que é (inconsciente?).
Ele vive, assim, uma enorme contradição: como conhecer a mim mesmo (o grande objetivo de qualquer yogue/meditador sério), negando a sua infância e criação? (GNERRE 2010).
Shiva, o Deus-Cunhado
O Yoga Moderno é uma criança subalterna criada por uma “ama-de-leite” da alta-casta. É que Shiva, de inimigo para a cultura védica (pois divindade dos "subalternos, impuros e selvagens" advasis), se transforma em cunhado quando se junta com Parvati, essa mulher de “boa índole” e criada pela tradicional família sul-asiática - onde já se viu, ela pegou para criar um filhe (Yoga) que não nasceu de seu "nobre e puro ventre". Era mais fácil não aceitar o Yoga na corte, mas sempre ele se mostrou tão popular entre “o povão”, que não tinha como renegá-lo. Assim, o clero védico pensou que, sendo amamentado pelo leite brâmane, poderiam purificar/educar esse corpo selvagem, "herança de lado paterno".
A colonização e a maternidade aqui se confundem, onde o seio colonizado do yoga-branco-elitizado-oriental-eurocristão se oferece como objeto de aluguel. É uma maternidade mercenária, com um impacto definitivo na psique do Yoga (e yogue-brasileiro) Moderno, onde o leite brâmane (ou as práticas yoguicas de verniz "alta-casta") purificaria a herança do sangue/sêmen subalterno (do Yoga/Shiva "filhe-chocadeira" e da alma vira-lata do yogue brasileiro pequeno-burguês).
O Yoga Moderno tem alugado o corpo de professores-de-yoga brancas e orientalizadas como uma espécie de "babá da mãe-biológica" desconhecida desse Yoga que nasce de Shiva, divindade que é pai e mãe ao mesmo tempo, mas que põe uma mulher "cuidadeira" para cuidar de seu filhe (Yoga), antes criado pela comunidade. E, como sabemos, isso pode trazer consequências psíquicas a esse Yoga/YogueBR (e as suas “babás” também), como o sentimento de apropriação deste infante-Yoga-edipiano que se sente unido a "ama-de-leite" como sua propriedade, mas precisa rejeitá-la/foracluí-la mais tarde (ou sempre), obrigando subir pelo elevador-de-serviço a sua própria mãe.
Pelo lado da "mãe-babá-orientalizada/professor-de-Yoga" brasileira, por mais amor que sinta pela criança-Yoga (que pegou para cuidar do sul-asiático), sempre saberá que não chegou a completar um vínculo verdadeiro, pois sabe que ganha seu sustento “cuidando do filho de outra família”. Enquanto o sul-asiático diz aos amigos: “ela é quase de casa”, a yogue-orientalizada faz seu prato de samosas e vai almoçar no quartinho de empregadas, como a herança brasileira sempre nos ensinou.
Se criou, a partir daqui, para "manter as aparências", uma ideologia no Yoga Moderno brasileiro pautada na "universalidade" e pertença a uma cultura de não-violência, Gratiluz, cordialidade e resignação para esconder a brutalidade da hegemonia burguesa/védica em todo o espectro das sociedades capitalistas (coloniais e védicas), unificando aspirações e escondendo a mãe-biológica (e a babá) como não capaz de criar seu próprio filhe-Yoga (FREIRE COSTA 1984).
O Yoga, portanto, é transferindo para o colo de mães-criadeiras (brancas-orientalistas e/ou brâmanes-purificadas) no intuito de tornar o Yoga "civilizadamente neurótico", em falta e castrado. Mas a origem do Yoga é matriarcal - Shiva gesta o Yoga, mas quem amamenta e cuida sempre foi a sociedade em que ele vive, pois sua origem é matrilinear e não patriarcal e colonial. Por isso, deve ser criado dançando solto nas matas, não em condomínios fechados como se fantasia e delira hoje em dia.
Um Yoga e um Yogue brasileiro que se descolonize e encare sua difícil (mas necessária) travessia psicanalítica que, como bem sabemos, não pode (é impossível, na verdade) ser realizada isolada da sociedade em práticas solitárias assistindo tutoriais no YouTube ou se devotando a outros yogues igualmente aprisionados a narrativas míticas pessoais, mas que se deliram universais.
Considerações Finais
Mudam-se os corpos, ficam-se os mitos. Mas se as ideias, advindas da mente, são corporais, a transformação de corpos é a condição primeira para influir comportamentos outros e suas compreensões interpretativas. As linhas de força que atravessam corpos e excitando sociedades, são as chaves para reinventação de novos mitos desfundadores de ideais.
É sempre bastante intrigante como operamos corpos em Yoga, mas parece que nos relacionamos tão somente por seus conceitos clichês. Todo mundo sabe o que são chackras, as posturas (asanas) e o "sagrado" mantra Om, mas - talvez a maioria - só de ouvir falar, ou pior, de um esforço tacanho de tentar experimentar o que outros corpos sentiram sem seus próprios blocos de sensações. Mas o que é um ASANA mesmo? A postura do corpo ajeitado por métricas e ângulos pré-concebidos? Quais yogues no Brasil se debruçaram a desvendar sobre a "consistência" do pranayama yoguico e não a sua fisiologia pulmonar?
O asana (não a postura que você tenta imitar numa "aula prática" pelo Zoom) em sua singularidade corporal é derivativa de "borrões" que emergem por limites indiscerníveis e, ao mesmo tempo, inseparáveis de modulações conceituais. Aqui se opera uma linguagem mítica que faz de um Yoga ou outro, ter ou não eficácia mágica lastreada por corpos encontrando corpos: o corpo como linguagem que nem sempre se apresenta tão clara na fala, mas traduzido na pele.
É nesta zona borrada onde o acontecimento ASANA promove a sua QUEDA para a compreensão do que estamos sendo. Um Asana aliado à BANDHAS (fechamento de aberturas corporais), DRISHTIS (fixação do olhar) e KUMBHAKA (contenção dos "ventos" no corpo), se transforma em MUDRA, esse gesto simbólico corporal que "contém" mais PRANA do que só uma postura/asana isolado. Perceba que, para alguém não-iniciado na mitologia yoguica moderna e dos mitos que compõem os Yogas, tudo o que escrevi acima não faz tanto sentido assim. E é por isso mesmo que estes se sentem assim; é pela ignorância (avidya é o signo mítico yoguico para o estado descrito) que os líderes carismáticos yoguicos modernos (e todos os padres) operam seus aparelhos-de-captura no subcampo do Yoga Moderno. Se descolonizar com o Yoga aliado a Psicanálise ainda é uma máquina-de-guerra rarissimamente utilizada, pois a maioria dominante, ou ignora completamente essas relações, ou insistem em se deixar levar pelos arquétipos e outros delírios metafísicos aienantes.
Aproximar os mitos sul-asiáticos aos sul-americanos é conectar epistemes do sul e nos afastar (yogues brasileiros e estudiosos do campo da psi e espiritualidade) dos yogas epistemologizados do norte que insistem em continuar nos colonizando a ser como eles. Há um hiato de estudos ainda a ser aberto e novos pactos-de-aliança a serem firmados entre os xamãs shivaístas subalternos e o psicanalista-yogue/pajé brasileiro. Busquei aqui, mesmo tímido e vacilante, ensaiar novos encontros na reativação de feitiçarias que visem sustentar o céu por mais tempo e revelar potências ainda porvir.
Referências Bibliográficas
FREIRE COSTA, J. (1984) Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Graal.
GNERRE, M.L.A. (2010) Identidades e paradoxos dos yoga no Brasil: Caminho espiritual, prática de relaxamento ou atividade física? Fronteiras: 12(21): 247-270.
SEGATO, R.L. (2006) O ÉDIPO BRASILEIRO: A DUPLA NEGAÇÃO DE GÊNERO E RAÇA. Universidade de Brasília: Série Antropologia.
SIMÕES, R.S. (2015) O papel dos kleśas no contexto moderno do ioga no Brasil: Uma investigação sobre os possíveis deslocamentos da causa do mal e da produção de novos bens de salvação por meio da fisiologia biomédica ocidental. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
SIMÕES, R.S. (2017) O Ioga e os seus Novos Bens de Salvação: Relaxamento Espiritual e Homeostase Divina. Numen: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 109-136.
SIMÕES, R.S. (2018) Early Latin American Esoteric Yoga as a New Spirituality in the First Half of the Twentieth Century. International Journal of Latin American Religions, 2:290–314
SINGLETON, M. (2008) The classical reveries of Modern Yoga: Patañjali and Constructive Orientalism. In: SINGLETON, M. & BYRNE, J. (orgs.). Yoga in the Modern World, Contemporary Perspectives. London: Routlege, p.77-99.