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Beto Simões


Introdução

O Diabo é uma mulher de pau-duro? Nossa, seria prudente começar assim um texto psicanalítico? Mas não fui eu que coloquei ele no meio do discurso, mas o Pai do assunto, o próprio artesão do obscuro inconsciente - terras lisas das ideias e seus afectos do corpo. Como todo xamã, faz um pacto com o cramulhão e outros encantados da floresta de símbolos, des.cobrindo o futuro de uma ilusão em que deuses (todes homens e barbudos) monoteístas carregam, acompanhando de seus anjos castos e santos celibatários. Assim como Fausto, Riobaldo, Bentinho e tantos outros homens desapoderados na presença de mulheres potentes, vão buscar em seus pintos (e na confirmação de outres meninos molengas/neuróticos) a própria representação da impotência humana. 


É o diabo cristão, o Dionísio grego e o Shiva indiano, aqueles que se negam a pedir desculpas pela vergonha que os outros se encontram neles, mas sobretudo, seres andróginos que não se deixam definir; por isso, cantam, encantam, abrem caminhos, dançam, bebem, fumam e transam corpos sem medo, remorso ou culpa: o Diabo é tudo, menos neurótico.


Na Idade Média, desejos considerados pecaminosos eram atribuídos ao demônio, mas desde o advento da Psicanálise percebemos que o demônio não é um outro que toma o corpo do sujeito, mas o próprio sujeito. Eliminamos esta projeção ao aceitarmos a ideia de inconsciente e do descentramento do próprio desejo.

Não é que os demônios, as bacantes, tântrikas e endiabradas sejam imorais, nada disso, apenas operam pela imanência ou metafísicas canibais compondo linhas-de-fuga criadoras e singulares por devires-minoritários. Todo santo é branco, puro, higiênico, consciente, lógico, racional, centrado, sereno e em "harmonia perene", i.e., são apenas ideias ideais do que nunca existiu. Todo Zé-Pelintra e Maria-Padilha são arquétipos meio gente e meio bicho, mais próximos de Shiva do que Visnu: evocações das encruzas-clínicas aldeadas, caiçaras, ribeirinhas e quilombolas.


Diadorim, Electra e Anna Ó se encontram num Grande sertão: veredas, vingando a morte dos assassinos do pai, que elas tanto amavam. Sempre achei curioso que o assassínio "inconsciente" psicanalítico tem uma medida diferente da morte-matada "consciente". Explico de outra maneira, a "carga de hostilidade" de Electra parece "mais perigosa" do que o ódio "inconsciente" de Édipo. Ambos são personagens ativos na morte das figuras paternas, mas Electra é retratada (pelas lentes neuróticas e infantis) com mais ódio do que Édipo. Mas foi ele que, além do pai, matou os soldados, o cocheiro, um profeta cego e, se alcança o que servo do pai que fugiu, teria cravado uma pedra no seu crânio sem pestanejar. Contudo, é Electra a protagonista "violenta e sem escrúpulos", e ele (o menino atordoado Édipo), o que sente culpa - coitado, não sabia o que fazia. Isso é porque ela premeditou a morte (e a "ereção") do seu "receptáculo" fálico, e o menino matou "sem querer"? 


Sim, entendo completamente as diferenças entre os dois casos (Édipo e Electra) e as vias psicanalíticas que os mitos carregam para a clínica. Apenas pontuo que, levando em consideração o aspecto "ódio", Édipo é campeão disparado. As mulheres, ao contrário, seriam mais estratégicas, muito mais inteligentes e num grau bem mais apurado de execução e planejamento, além de mais interessante do que os homens míticos. Se os mitos serviram de modelos para diferenciar as vias formativas da psiquê entre meninos e meninas, o masculino é percebido bem mais caótico, atribulado e errático. O que tornaria lícito pensar que o senso-comum se engana (ou só justifica a estrutura machista em que vivemos) quando julga o masculino como racional, reto e "cerebral", e o feminino como sentimental, sinuoso e "coração mole". Pelo dito acima, os papéis se inverteriam - sobretudo se não fosse Hesíodo e Homero quem escrevessem os mitos fundantes de uma sociedade com o espírito imperialista que se difundiria como modelo para o mundo vindouro eurocristianizado. 


Talvez, pelas meninas não terem "nada a perder", saiam para a vida com certa lucidez que, numa sociedade falocêntrica, misógina e patriarcal (leia-se, onde meninos aprendem a se iludir "potentes" - e precisam sustentar Isso de ), eles estarão sempre fantasiando/delirando o que nunca foram (ou serão: donos da bolas da vida). 


Por isso, talvez, o ódio em Édipo se mantenha inconsciente por tanto tempo (aos mais distraídos/neuróticos, a vida inteira) do "poder inato" que imaginam carregar (e defender); e elas, conscientes do delírio deles e o falo de uma ideia, vivam a incompletude da vida (em que todos nós estamos - homens e mulheres) por jeitos mais potentes ou, simplesmente, femininos, gestando novos modos estéticos e éticos de estar-sendo.


O Falo que elas não possuem, mas que eles imaginam que sim

Somos pulsões ambulantes, afectos e ideias buscando frestas de expressão nas artesanias de vidas-vividas. Quando nossas ficções não conseguirem mais dar conta de todas as angústias, medos e "verdades" que se impõem, gestamos sintomas pervertidos, psicóticos e neuróticos que vão dar na clínica. E, na clínica, o que irão aparecer (pelo menos é o que nos dizem) são "apenas" afectos descolados de suas ideias originais, bloqueadas pelo recalque das leis sociais, políticas, religiosas e culturais. 


Todo afecto que abre linha-de-fuga das terras demoníacas/caóticas do inconsciente é sexual que, sem ideia do que faz ali no consciente, busca um objeto para lhe dar sentido de causa. Seja qual for o objeto conectado com o afecto descolado da sua ideia recalcada, nunca nos sentiremos completos, pois a ideia original ficou na casa do diabo, gerando angústia na morada do Senhor. É aí que xamãs, psicanalistas e bruxas são acionados para, buscando aliados (talking cure, chistes, interpretações oníricas, "deitadas de cabeça", atenção flutuante, atos falhos, etc.) se esforçarão (num jogo duplo: analisando-analista) em restaurar essa ideia endiabrada deslocada de seu lugar de "origem". 


O que fará sentido para a ficção da analisanda/o voltar a fazer (um novo) sentido (para ele/a e seu coletivo de corpos e mentes)?. Quem sabe não fala; por isso, cabe ao psicanalista, a analisanda/o e seus aliados clínicos buscarem os melhores caminhos que se revelam pelo inconsciente (de cada um) em sintonia. Em suma, a solução não existe a priori para ninguém, mas será (se tudo for suficientemente bem) construída num longo e doloroso processo ou travessia. Todo sintoma, assim, se transforma em uma doença sexual que se movimenta por tesões/pulsões. 


Anna Ó duborógodó

Quase todos os sintomas de Anna Ó foram originados, ou pela repreensão do pai (ele grita com ela que a chama, e ela não ouve) ou do irmão (ele a sacode com força quando dispersa). Desta forma, os dois falos/homens/poder (os que podem tudo) da casa são gatilhos para os sintomas histéricos dela (a que não pode nada). Ela também mimetizava alguns ataques de nervoso (histéricos?) do pai em seu próprio corpo, como se fosse ele? 


Sim, uma mulher tem sempre seu pai dentro de si. Sempre que escuto uma paciente, ocorre-me a idéia [sic] de que é habitada pelo pai. Seguramente essa identificação não é válida para todas as mulheres, mas quando ela se confirma, e se você for um bom observador, você descobre facilmente o pai nas expressões distraídas do rosto de sua paciente, nas rugas de sua testa, na rudeza de suas mãos, na forma de seu nariz e, sobretudo, em sua maneira espontânea de se comportar e andar. Não é incomum uma mulher adotar inconscientemente o mesmo meneio de cabeça e a mesma postura do pai. Incontestavelmente, o pai fantasiado ocupa um lugar central na vida de uma mulher. 


Aqui o complexo de Electra pode ser compreendido melhor. Talvez, por não ter conseguido (por uma família insuficientemente boa, e não só a mãe, pois aqui recaímos, novamente, ao motivo dos sintomas da mulher-filha, na mulher-mãe) realizar um corte de quem cuida de Ana, que a impossibilita de organizar seu Eu-Anna-Mulher numa estrutura social, política e cultural europeia do início do século XX. De tal modo, que Anna Ó parece mais predisposta ao surgimento de uma "segunda consciência" ou quadros psicóticos. A ideia reprimida, se desligando do seu afecto original, se conecta a outra ideia/objeto consciente, gestando delírios e mais sofrimento.


Mas os sintomas curados em Anna Ó, no entanto, não paravam de se deslocar para outras áreas corporais/conscienciais, criando assim, como dissemos, essa "segunda consciência" ou surtos psicóticos, como a visão de cobras e serpentes. Com o tempo, Anna Ó transfere ao Dr.Breuer o seu grito pela potência negada que ela tenta construir, anunciando a gestação de um filho (falo?) do seu médico. É interessante como, em geral, a leitura apressada deste fato (a transferência na clínica psicanalítica), pode parecer uma regressão da sua cura, mas é uma evolução, pois toda a repressão que ela sofre/aguenta (como representação de sua vida) vai abrindo frestas na barreira de recalque rumo à superfície (emerge da terceira margem do rio roseano ou inconsciente) e aparece como sintomas dissociativos, como neste exemplo (dentre outros). É parte da cura!


Mas tudo se agrava com a morte do seu pai/falo, que ela cuidava com tanto afinco e afeto. Sobretudo, neste período, é quando se agravam as dores abdominais e a vinda do filho do Dr Breuer; afinal, se o falo do meu pai morreu, do meu irmão é interdito, da minha mãe não existe (que ódio, me fez/cuidou/educou castrada como ela), que venha o falo/poder do medicine-man que me cuida, igualmente ou com até mais interesse sobre tudo o que eu desejoi. A gravidez imaginária (ou suposta?) era uma prova concreta do amor de transferência


A Mulher (quem não sabe) Analisada por Homens (que pensam saber)

Nos meninos, o complexo de castração os empurram a abandonar os seus desejos edipianos e se identificarem com o pai (o falo da casa/mundo) e desejarem se casar com uma mulher parecida com mãe interdita deles. Assim, nem tudo está perdido a eles, pois ainda tenho o meu falo (mesmo que pequeno - ainda, imaginam) que vai (ou pode?) crescer em poder e potência. E, por que com as meninas não poderia acontecer a mesmíssima situação? Ou seja, se perceberem castradas (iguais aos meninos) pelo pai e saírem para o mundo desejando uma mulher igual às suas mães? Por que é preciso criar um malabarismo teórico mal explicado (para não afirmar machista e misógino) para encaixar o que querem as mulheres no arcabouço da psicanálise freudiana? A resposta é tosca (o que não desmerece em nada o esforço do pai da psicanálise): pois Freud encasquetou que a heterossexualidade é um "dogma natural" para perpetuação das espécies. 


Deste modo, tendo a heteronormatividade como o modelo "certo" de se viver, as meninas, ao contrário dos meninos, para completar com um mínimo de sanidade psíquica, precisa, segundo Freud: (1) se tornar celibatária e esquecer completamente qualquer desejo de ter poder/falo/pênis; ou (2) buscar um substituto (ou consolo) do pênis/falo/poder que não tem (2.1) num marido semelhante ao pai ou, talvez, por perceber que nem o pai ou o marido possuem, (2.2) no desejo de maternal de gerar um filho, que será enfim, o seu falo/poder/pênis só seu para cuidar, amar e desejar. 


Por outro lado, poderíamos supor que, ao contrário dos meninos (que ainda guardam a esperança de um dia ter), as meninas descobrem (tem consciência do Real) que ninguém nunca terá (de forma plena) o falo nesta vida. Que este poder/falo pode ser experimentando em algumas ocasiões, não pelo gênero ou mesmo criação familiar (mesmo sabendo que isso pese muito), mas por bons ou maus encontros que irão produzir ora momentos de alegria/potência/plenitude (encontros que componham conosco), ora tristeza/impotência/incompletude (encontros que nos decomponham) perante a outres corpos econtraremos. 


No caso da Anna Ó, isso foi retratado no anúncio da vinda do filho do Dr.Breuer, logo após a morte do pai dela. Mas seria isso uma inveja do pênis/falo/poder que os homens possuem (socialmente) e Anna Ó desejava, mas não poderia nunca desfrutar ou um grito por liberação de uma feminilidade não-castrada que ela insiste em informar aos desatentos homens que a tentam ajudar? Me explico melhor, mulheres que criam para si uma terceira, quarta, quinta ou mil platôs de possibilidades de viver, que não seja apenas o celibato e/ou um desejo de se casar e ter filhos apenas, estão doentes ou abrindo frestas reais de cura? 

Nunca é demais relembrar que a própria filha de Freud criou uma linha-de-fuga a castração em que as meninas sofrem, só para ela, se apaixonando por uma mulher (Dorothy Tiffany) e nunca tendo filhos genéticos, mas participando na criação ativa dos filhos de sua companheira e nos estudos sobre crianças e psicanálise.


O Falo para a menina, não é o pênis [não são tolas/narcísicas como os meninos para se fantasiarem tal absurdo], mas a imagem de si [mesmas]. Em síntese, a mulher ideal freudiana abandona a sua posição "fálica" e adota uma postura submissa (castrada), apenas para seduzir os homens, na esperança deles lhe transferirem algo que também não possuem - mas ela não sabe ainda, ou só finge, como Capitu? 


A Formação da Mulher em Electra

O Complexo de Electra anuncia mulheres que, ao contrário dos homens, não fantasiam a castração, mas a experimentam em realidade. Talvez por isso, a psicanálise tenha nascido do corpo delas, e não deles. Foi, inclusive, a "cura pela fala" ou associação livre das palavras e a histeria ou "doença do útero" (hystera, lit. Útero em grego) são todas referências femininas. Só depois, Dora iria auxiliar outros homens a escreverem sobre o assunto com um pouco mais de propriedade, apesar deles ainda estarem mais entretidos em como hipnotizá-las.


Cala a boca e deixa eu falar em paz! E foi assim que Anna Ó, sem paciência alguma, inicia sua aliança aos estudos psicanalíticos há uns 100 anos. No Complexo de Electra insuficientemente resolvido, numa sociedade misógina (isso precisa estar evidente), cresce nas meninas uma carga de hostilidade contra o mundo que as oprimem, mas que por elas não terem condições de elaborar isso suficientemente bem ainda, acabam descontando (e isso é uma estratégia de docilização dos corpos femininos) na referência feminina mais próxima delas, "a mãe", abrindo uma ambivalência de amor-e-ódio - que também ocorre nos meninos, mas por motivos diferentes e já discutidos em outros módulos.


Ela sofre, sente-se lesada em seu amor-próprio e reivindica, exige mesmo, o que lhe cabe: “Quero esse Falo que me tomaram e o terei nem que tenha que arrancá-lo do menino!”, ela exclama. 


O pênis não a interessa, e, às vezes, inclusive a repugna; o que a interessa e apaixona é o poder que ela lhe atribui e que a deixa com inveja.  

Talvez a pergunta que possa surgir, sobretudo em corpos masculinos, é porque o falo é tão importante para eles, afinal? Pois é o símbolo (é um signo que significa) de poder, de potência, de conseguir e ter (certa) liberdade de desejar o que se deseja, enfim. O que, num ordenador de realidade construído por homens, se torna exclusivo aos possuidores de Pênis, mas que poderia ser o Seio, o Clitóris ou a Vulva, variando a organização dos corpos sociais. Se, vivêssemos outro ordenador de realidade dominado por mulheres, será que seríamos subalternos a elas? Pensamento clássico de um red-pill ressentido que só consegue enxergar a si-mesmo invertido: por que não poderia ser comunitário ou invés de imperativo? 


Não sabemos com certeza, apenas que não seria como hoje, e isso já deveria nos encher de tesão por sentir, viver novos modos outres de vida e sentido: Ética.


É muito raso pensar que Electra seja um mito fundador de uma "expressão da natureza"; não é natural, mesmo porque, essa discussão entre natureza e cultura ruiu desde Roy Wagner (2017) em A Invenção da Cultura; e o próprio Freud deixa evidente que somos bissexuais por natureza, e só depois "escolhemos" para onde nossos desejos (inconscientes) buscarão direcionar nossa libido. O que é "natural" é o desejo pela "Mãe" (seja meninos de rosa ou meninas de azul): os meninos rivalizando com o "Pai" e as meninas… bem, as meninas ignoram ele até o momento em que se percebem castradas sem fantasiar que poderão, um dia, competir com eles depois (de igual-para-igual)


Os meninos, esses tolos enganados desde cedo, passam a vida delirando que um dia alcançarão o tal Falo-Divino imaginário que prometeram a eles - até darem na clínica, e compreenderem (o que as mulheres já sabem desde meninas) que somos todes castrados.


Diadorim, a esfinge que homem algum conseguiu decifrar

Diadorim/Reinaldo, personagem de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas é uma mulher que, para conseguir explorar o sertão/vida e vingar a morte do pai (que não morreu assassinado pelo amante da mãe), se transforma em jagunço para matar e morrer em honra do seu pai/falo. No caminho, Riobaldo se apaixona por Diadorim/Reinaldo, essa esfinge que, ao contrário do herói grego Édipo, o nosso Riobaldo não consegue decifrar e se angústia muito a história inteira da sua vida. Mas ao contar a sua narrativa "pelo fundo de um ouvinte silencioso", vai recontando (e aprendendo) o seu próprio viver:


O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que vem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo.


Diadorim/Reinaldo, corporifica os limites entre o masculino e o feminino: ela é uma mulher tão faluda-cabra-macho-feminina, que produz desejo em outro jagunço-homem (aquele menino que foi enganado por todos desde a primeira travessia de um rio que temia, se lembra disso em veredas?). Riobaldo, como todes outres jagunços-cabra-machos, são portadores de seus próprios falos imaginários. Enquanto a nossa heroína, ciente desde sempre que é castrada, seduz um homem para se sentir potente/tesuda/"faluda", se falocentriza femininamente para viver a vida como um homem consciente de sua falta, i.e., como uma Mulher de verdade.


Em outras palavras, a menina deixa de considerar o pai desejável em suas fantasias edipianas e incorpora sua pessoa no eu. Assim, impregna-se de atitudes, gestos e até mesmo desejos e valores morais que caracterizam seu pai no real. Ela é “o retrato escarrado do pai”.  


Diadorim/Reinaldo não é só uma guerreira que se veste de homem, ela vive o seu (ou de seu pai idealizado ainda?) falo sem desposar de um marido (seduzindo um homem-pai-falo como se "fosse" seu). Quem se vê impotente na história (com medo da batalha com a jagunçada rival) e faz pacto com o Diabo para ter coragem e se sentir faludo/potente e vencer seu desafio, é o homem Riobaldo que, afundado em angústia, decide se aliar com quem encarna o metade gente e animal indócil: o Diabo. 


Interessante que, em geral, na literatura masculina, quando as mulheres se revoltam, são rapidamente queimadas acusadas de bruxaria e associação ao demônio, mas quando homens o fazem o mesmo, como aqui com Riobaldo ou lá com Fausto de Goethe, há uma "coragem" intrínseca em sei firmar esse pacto diabólico. As mulheres que lutam (ainda hoje e sempre) contra a apropriação de seus corpos e desejos, são sempre bruxas e os homens, provam que têm culhão:


(...) toda a análise da caça às bruxas, a análise da forma como o capitalismo penalizou de maneira atroz, com fogueiras, toda a luta das mulheres para controlarem o corpo, para não serem obrigadas a parir, essa apropriação capitalista do corpo, tudo isso abriu um terreno diferente de luta, e mudou nossa visão sobre o capitalismo, sobre como ele se impõe e se desenvolve, como ele acumula sua riqueza. E, por fim – se é que podemos falar em um fim –, neste ano [2023] fomos testemunhas de uma nova caça às bruxas, o que me parece ser muito importante. (...) No Brasil, por exemplo, a liderança Guarani Sebastiana Gauto, assassinada queimada com seu companheiro Rufino Velasque [ambos rezadores Guarani e Kaiowá, mortos em setembro de 2023, na aldeia Guassuty, em Mato Grosso do Sul]. O extrativismo acompanhado, lado a lado, da chegada de seitas religiosas que são cúmplices da expropriação [de povos indígenas] e cúmplices da acusação de “bruxaria”, sobretudo contra mulheres na comunidade, acusadas de todos os males e mortes. Quando as pessoas adoecem, logo dizem: “São essas bruxas” (Ibid.)      
Ela [a menina comunicada pelo pai] acaba de compreender que nunca o terá e, não obstante, não se resigna. Ao contrário, lança-se agora, com toda a fúria de seu desejo juvenil, nos braços do pai, não mais para lhe arrancar o poder, mas para ser ela mesma a fonte do poder. Sim, ela queria ter o Falo, mas agora quer ir mais longe, quer sê-lo (...) 

O Diabo pode ser uma mulher de pau-duro: já que sou castrada e não posso ser possuída pelo meu pai (a menina pensa), "vou ser então como ele". Mas como ser como eles, em sociedades desiguais, a partir de alianças com o desconhecido ou o Caos infernal que habitam inconscientes. Sem dúvidas que Diadorim/Reinaldo é uma mulher que, ao mesmo tempo, desperta a libido em Riobaldo e uma angústia invertida, ou seja, em ela consegue despertar nele, o desejo nele, do que ELE não pode nunca ser. 
Esse "trem do diabo" confunde nosso herói, o desune ou o descentraliza pela presença do inconsciente; pois o inconsciente que articula toda a subjetividade da pulsão com uma força singular, a partir da incidência (eu diria, encontro) do Outro em nós. O desejo (essa "história infernal") se articula no campo da pulsão que, sem objeto fixo pré-determinado, se unem. Por isso, o Diabo como Electras Diadorins ou Anna's Ó podem se articular como mulheres portadores de seus "próprios falos" e não seduzindo homens para "gozar com o pau deles". Por isso a imagem do Diabo tomando o corpo de toda mulher ousada. E faz todo sentido a um homem crente, que só enxerga nele possuir poder e potência pensar assim; afinal, eles investem tanta energia libidinal para sustentar tal história sobre si-mesmos, que quando uma mulher o enfrenta (e vence), só pode ter sido influenciada pela serpente guardiã da "Árvore do Conhecimento". 
Quando mulheres conquistam tal posição (mesmo que temporária, pois só assim as alegrias ativas operam, de forma descontínua e oscilante - algo que só elas sabem de verdade) assustam esses guris que se acreditam "gurus" - delas e do mundo.

Assim, a partir do modo como o demo aparece em Grande sertão: veredas, pudemos atrelar, aqui, o diabo — enquanto aquele que ‘divide’  à pulsão, como aquilo que descentra o sujeito de seu eu consciente, configurando o sujeito dividido e desconstruindo toda ilusão de unidade e harmonia no humano. Riobaldo ainda compara o diabo à ideia de uma cachoeira, para atestar o caráter sobremaneira paradoxal do demoníaco: “O diabo existe e não existe? ...O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma?”.


O papel da mulher, como um potencial Diabo com um Falo que nos habita - seja para os homens em Riobaldo ou mulheres em Anna Ó (ambos inseguros de si-mesmos e do que podem desejar) - nos convidam a refletir que tudo o que é da ordem do inconsciente (esse inferno caótico que insiste em nos visitar) é o "Isso" ainda não-realizado ou nos indeterminam. O mesmo "sintoma" que Diadorim e Anna Ó provocam nos homens do nosso enredo até aqui: essa Outra que nos incomoda com seus enigmáticos desejos: O que as mulheres querem? Quem é Diadorim/Reinaldo? Dr.Breuer teve ou não um affair com Anna Ó? - melhor mesmo que sejam histéricas ou psicóticas, vai que contem a verdade para todos?


A menina: Já que é assim, já que você me priva de sua força e não me deixa ser sua musa, então vou me apoderar de você e ser como você, o que me diz disso? Melhor que você! Sim, vou devorá-lo inteirinho e me parecer com você a ponto de andar como você, ter o nariz como o seu, a intensidade do seu olhar, o brilho da sua inteligência ou o ardor da sua ambição. Então serei tão forte quanto você, e, você verá, muito mais forte! 


Amar e transmitir a vida, definitivamente, é a missão mais digna que a natureza atribui à mulher.


Ela então faz um pacto com o Diabo/Coisa-Ruim e se transforma (quando, suficientemente, bem-sucedida) numa mulher faluda - que não é, em absoluto, uma mulher masculinizada ou o protótipo ideal dos homens red-pills e seus Círculos do Sagrado Masculino, mas tudo o que ela desejarem ser. 

Estas, assim, nos remetem (a todes) ao inferno do qual (também) somos (homens) constituídos (mas sem acesso, pois inconscientes ou só mais tolos mesmo). Por isso, talvez, a força diabólica do pulsional (e sedutora, como toda mulher com desejo sem falta, mas como produção possuem) e a pergunta sem resposta dos ex-jagunços/homens - que sempre se imaginou portador de um falo - quando se percebem desfálicos


O amor pode vir do demo? Poderá?! Pode vir de um-que-não-existe? Mas o senhor calado convenha. Peço não ter resposta; que, se não, minha confusão aumenta.


Possíveis Elementos para uma Prática Clínica

E Anna Ó? Mesmo muito educada, mantinha-se (ou por causa disso) no padrão da "feminilidade normal" da época (ainda vigente?), i.e., casar e ter filhos para a reprodução e cuidar de seus próprios falos/filhos; e, muito importante, que aprendam (ou reprimam com vergonha, culpa e medo) a se contentar, apenas, em gozos vaginais - nunca clitorianos! Afinal (diz os padres e freiras fazendo o sinal-da-cruz), para que uma mulher precisaria desse prazer a mais? Vai que elas encontrem ali (em seus próprios corpos), suas próprias potências sem a necessidade dos homens a consolarem como acontece entre comunidades não-totêmicas, bastante comum nas sociedades ameríndias originais de outrora?. Que os deuses dos monoteísmos nos livrem disso, bradam os tementes e casadas com o Pai-Nosso que estais no Céu!

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Há uma relação evidente entre os sintomas angustiantes que Anna Ó sentia enquanto a doença de seu pai/falo piorava, entretanto, os doutores alertaram em dado momento: "Elas estava enlouquecendo":


(...) alucinações angustiantes em que seus cabelos, cordões e coisas similares apareciam como serpentes negras. Sempre dizia a si mesma, então, que não fosse tão tola, que eram seus cabelos etc. Em momentos de plena lucidez, queixava-se da profunda escuridão de sua cabeça, de como não podia pensar, tornava-se cega e surda, possuía dois Eus, o verdadeiro e um mau que a impelia a coisas más etc. [grifo nosso}

Os quadros psicóticos, como já estudamos, tece relação nas conexões maternas não tão bem rompidas, o que ocasionaria uma formação do Eu "deficitária" ou hipotrófica. Quando nossa personagem alucinava, se comportava malcriada, arrancava os botões de cobertas e jogava almofadas nas pessoas, como num histerismo clássico. Entrementes, muitos mitos representam cobras e serpentes como animais ambíguos de vida-morte, cura-doença - sendo, p.e., o símbolo das medicinas, assim como significantes da própria sabedoria em si. 


As "serpentes", portanto, em muitas culturas, carregam consigo uma dupla consciência, como o que ocorre acontecia com Anna Ó. Estava ela pedindo ajuda e, ao mesmo tempo, sendo "autoajudada" também com suas "visões duplas" e "segunda-consciência" da vida angustiante em que vivia, tanto que orienta os médicos para que deixassem ela falar sem interrupções? Nas tradições nórdicas, as serpentes representam a ressurreição, criação e força vital, claramente, como Anna Ó deveria estar se sentindo após as sessões de "limpeza da chaminé", como ela mesma alcunha o tratamento que ELA cria - e não ELES - e que isso fique de vez esclarecido aqui. 


Por outro lado, na tradição cristã - e isso é relevante agora, pois traz muito do universo masculino eurocristão dos homens que a tratam - as serpentes são a própria encarnação do Diabo explicando a Eva comer o fruto do conhecimento, por exemplo, onde o castigo de ambos (Adão e Eva), foi se tornarem mortais, em outras palavras, me arriscaria a dizer: a se perceberem, enfim, impotentes, em falta, deste modo, representados na mitologia judaico-cristã, expulsos do Paraíso. 


A mulher-Medusa, personagem mítica grega estuprada por um deus, foi condenada pela deusa da sabedoria - guardem bem isso - a transformar todos que olhassem no fundo dos olhos dela, em pedra - portanto, endurecidos, sem se mexer, numa forte e permanente contratura muscular infinita. Essa mulher violentada por um homem-Deus (acho que não há representação mais fálica do que essa) foi condenada não ser vista por mais ninguém - algo digno de nota, é não nos esquecermos que os mitos gregos foram escritos por dois homens, basicamente, Hesíodo e Homero.


Breuer chegou à conclusão de que a patogênese desse caso deveu-se ao fato de "Anna O." estar, certa madrugada, sozinha, cuidando de seu pai enfermo, devido à ausência temporária da mãe. Estando com o braço direito sobre o espaldar de uma cadeira, teve um devaneio no qual via uma cobra aproximando-se do enfermo. Ela tentou repelir a cobra, porém estava com o braço paralisado.


Anna Ó não transformava ninguém em pedra ao ser vista (ela, como mulher de sua época, não era vista por ninguém, além de futura esposa de outro homem e mãe de seus falinhos), mas fora treinada a se autotransformar em pedra por meio de suas fortes contraturas musculares que lhe causavam uma desorganização funcional da linguagem. O que nos interessa aqui, neste momento, é uma possível causa que pode ter escapado: Olha só, ela falava muitas línguas, lê em diferentes idiomas, deve ser muito culta. Enfim, alguém percebesse isso nela agora e, quem sabe, não relatasse esse "curioso fato para uma mulher da época" num livro que seria lido, estudado e relido infinitas vezes (para percebermos os diferentes vértices dela - Anna Ó) em 2024, vejam só, tanto por franceses que a revisitaram (dando vida a ela) quanto num curso de formação psicanalítica numa ilha brasileira! Quem diria que Anna Ó fosse vista tantas vezes assim?


A evidente psicose que irrompia a cada pausa maior nesse processo de descarga atestava exatamente a extensão em que esses produtos influenciavam os processos psíquicos do estado “normal”


A psicótica não tem bem desenvolvida o seu Super-Eu, devido a um corte mal feito com a mãe, como já dissemos. No caso Anna Ó, a mãe está, praticamente, ausente em todos os relatos de seus médicos, deixando nítido que Anna Ó assumira (pelos extensos cuidados que tomava ao pai doente) o papel da mãe no cuidado dele.


Do ponto de vista clínico, vocês não imaginam a importância do pai fantasiado na vida de uma mulher. Ao escutarem uma mulher sofredora, indaguem-se duas coisas. Em primeiro lugar, como já disse, indaguem-se sobre o laço, frequentemente conflituoso, que ela estabeleceu com o genitor do mesmo sexo, isto é, com sua mãe; depois, indaguem-se qual é o pai que está dentro dela. Sim, uma mulher tem sempre seu pai dentro de si. 


Depois que o pai de Anna Ó morreu, seu falo/poder ou elo forte (e único?) com a sociedade, se rompera quase que definitivamente para ela (o que lhe restava de fios conectivos eram as visitas médicas), abrindo sua “segunda consciência”, o “Eu mau” (e diabólico?), como ela mesma denominava, que irrompiam à noite. Esses encontros com seu Eu-Mau influenciava sua atitude moralista organizada pelas leis autoimpostas que lhe obrigavam a travar uma luta constante entre o que desejava muito (gozar com força infinita, já que não tem a nada a perder, pois castrada) e com tudo o que a impedia de viver estas experiências com veemência (por deus, padres, professores e doutores) por sua simples condição de mulher. 


Considerações (clitorianas) Finais

Ninguém possui um falo de fato, mas todos os homens temem perdê-lo por medo da castração. As mulheres que já nascem castradas, são ensinadas a invejar o falo deles; por isso, aprendem a seduzi-los para se sentirem amadas tanto quanto eles pensam que são, pelo mundo falocêntrico inventado e sustentado por eles mesmos e suas cativas. 


É quase como uma estratégia inconsciente que as mulheres em seus sabás e covens realizam para se manterem vivas, enquanto homens seguem acreditando em suas próprias ficções fálicas. O falo é o retorno de uma sexualidade livre, sem limites, quando éramos crianças bissexuais: experimentando nossas zonas erógenas sem pudor, culpas e medos (de sermos castrados). O processo de castração, assim, reflete a perda da liberdade para uma vida social satisfatória. Quem em nós resiste a todo e qualquer processo civilizatório é o Inconsciente e sua caosmose.


Como símbolo da falta, de perda, um significante da falta por excelência e de qualquer objeto de valor numa dada cultura, o falo pode ser representado de diversas formas: inteligência, o carro do ano, uma bolsa de marca, etc. O falo, deste modo, representa o poder, por isso que numa sociedade patriarcal, são as mulheres que se percebem de fato castradas, quando todes são. 


A mulher, neste mundo masculino, busca permissão em existir como potência, ao mesmo tempo, em que luta por não parecer uma replicação masculina num corpo feminino também as afligem - tanto quanto nos homens que aprenderam a mentir/guardar mais de seus anseios. Talvez aqui resida a estratégia de sedução aos homens por "emprestarem" seus falos ou o símbolo da falta que ninguém, realmente, carrega consigo. É que elas não aprenderam a mentir inconscientes sobre isso.


A menina, ao contrário do menino (que abandona o amor pela mãe e busca se identificar com o pai para conquistar uma mulher semelhante à mãe), a menina continuará amando e se identificando com a mãe. Como vivemos numa sociedade ainda (mesmo que em mudança) patriarcal e misógina, as meninas aprendem cedo que será mais fácil seduzir o ingênuo pai (que acredita ser completo), na esperança (ou estratégia de sobrevivência) para estar mais próximo do falo/poder. Mas elas perceberão - as que se desenvolverem suficientemente bem pelo processo edipiano/electriano - que o pai não pode passar o falo para ela; então (diz Freud), ela vai precisar se casar com alguém similar ao pai (seria Dorothy parecida com Freud?) e tendo um filho com ele (Anna cuidou e participou ativamente na educação e crescimento dos filhos de Dorothy), continua o pai da psicanálise, alcança o falo definitivo da menina/mulher/mãe, completando a sua maturidade.


É, sem dúvidas, bem machista essa interpretação freudiana, mas, como afirmam psicanalistas experientes, isso se confirma na clínica. É que esse ideal pequeno-burguês se tornou o modelo da "sagrada família cristã" e, como sabemos, os ideais eurocristãos foram espalhados para o mundo no processo (ainda vigente) de expansão colonialista em que nós, latino-americanos, estamos (ainda) expostos.


Então, de novo, não é sobre o pênis, esse prolongamento de carne que os homens carregam, mas a posição das pessoas que possem o símbolo do poder, dos que, minimamente, conseguem exercem mais e com maior potência seus desejos abertos na comunidade em que vivem. As mulheres (algumas, teria a prudência de ressaltar) se ressentem da mãe por "serem assim", castradas "de nascença" e passam essa herança transgeracional adiante para as próximas meninas da fila. 


(...) se você for um bom observador, você descobre facilmente o pai nas expressões distraídas do rosto de sua paciente, nas rugas de sua testa, na rudeza de suas mãos, na forma de seu nariz e, sobretudo, em sua maneira espontânea de se comportar e andar. Não é incomum uma mulher adotar inconscientemente o mesmo meneio de cabeça e a mesma postura do pai. Incontestavelmente, o pai fantasiado ocupa um lugar central na vida de uma mulher. 

Entrementes, se uma das resoluções freudiana para o Complexo de Electra é a menina/mulher se identificar com o masculino do falo paterno, Diadorim não adere à maternidade ou aos “traços de feminilidade” que o patriarcado fantasia (e se esforça tanto para modelar em todas as meninas) e, ainda assim, seduzindo homens a desejá-la (mesmo como "Reinaldo"), causa uma confusão tremenda no corpo de Riobaldo (e muites homens) - esse macho, como todes des-fálicos, mas que ainda buscam sustentar o protótipo do macho-jagunço ideal - triste fim de Policarpo Quaresma, fuzilado pelo Falo-Presidente por traição (à causa masculina?).


Todes as mulheres, no fim, se transformam na própria encarnação dos super-eus; cada filha é a mais terrível rival masculina, com diversificados traços femininos da Mãe e endiabrados reflexos fálicos inscritos em seus corpos, eis aqui o devir-mulher em seu mais lindo esplendor. Por fim, o falo é uma grande ilusão (um Maha-Maya) e só na fantasia de homens e mulheres neurótico/as e na imaginação de crianças, que a mulher é "sexo frágil" e castrada.


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Yoga não é e nunca foi neutro, social e politicamente, mas "solidário". Com isso pretendo expressar o caráter yoguico (independente de linhagem ou geografia por onde ele esteja atravessando) é sobre se posicionar no mundo e não se retirar dele e viver liberto de todo e qualquer sofrimento, numa espécie de gozo infinito.


Sair da roda de samsara, alcançar a imortalidade (ou se transformar num deus.a), é muito mais sobre deixar de ignorar quem se está sendo, do que buscar quem realmente É, como se houvesse um Si-mesmo apriorístico lhe esperando em algum outro lugar (interno ou externo) alienado do Corpo.


Entenda, ninguém é livre enquanto a opressão existir; nenhum yogue é autossuficiente o bastante para não estar imerso numa realidade social. Apenas gurus delirantes em suas onipotências poderiam bradar ser um guia-do-espírito enquanto ignoram corpos em movimento, pois convivem com fantasmas.


Nenhum yogue, portanto, em kaivalya (lit.solitude) produz qualquer roça para a sua subsistência ou sai para caçar e/ou coletar frutas e sementes.

Ele, ao contrário, caminha até uma cidade onde haja um templo ou festival sagrado acontecendo (ou para ocorrer) e, em troca de suas bençãos e ensinamentos, se abastece do real entre pessoas comuns (como ele, se este for honesto o suficiente). Ele, depois, retorna para uma caverna (que não é dele em absoluto, é só mais uma cartografia nomádica por onde outros passarão e passaram) ou segue seu sampradaya, essa coletividade yoguica errante, mas agora abastecido de alimento, ideias e, por que não, dinheiro na sua capanguinha.


Há uma operação social antiga entre a comunidade leiga e a espiritual. Uma precisa da outra para acontecer, para existir. É comunalismo em dialética: uma em simbiose com a outra.


O que se transformou hoje é a captura desse mercado espiritual (que sempre existiu) pelas grandes indústrias do bem-estar neoliberais que, se aproveitando (na verdade, elas passaram também a produzir demanda: de profissionais especialistas em yoga e de consumidores de yogas profiláticos) de yogamentos calmantes para pessoas cansadas, operam arrefecendo sintomas: estresse, ansiedade e tristeza.


Como consequência, há uma menor transformação da realidade social promovida por yogues, como antes ocorria em yogamentos pré-capitalistas. É que, modernamente (tanto lá quanto pelas bandas de cá), os yogas se privatizaram, pertencem a este ou aquele monopólio empresarial (religioso ou "neurocientífico", não importa mais). Yogues e Yogas quando alienados de seus papéis sociais e políticos, se esquecem de si-mesmos, vendendo terapias, pedagogias e moralismos.


Estão todos em falta (como sempre estaremos), mas com a esperança de alcançarem um dia (quem sabe agora vai) plenitudes comercializadas no mercado de bens simbólicos). 

Autoconhecimento acontece no comunal, por isso yogues e seus yogas e yogares, capturados por aparelhos capitalísticos ou dogmáticos, se tornam alienantes, alienados e cínicos ou só oportunistas mesmo.



Quando um Sidarta Gautama, vivendo yoguicamente, inventa o Budismo, transforma a vida oprimida de muitos indianos, dando confiança de uma vida melhor. No momento que um Goraksa pensa seu yogamento Natha, abre um novo mundo a indianos que nunca o viveriam, se não atravessados por vértices (antes impossíveis) de romper estratos de uma sociedade sem mobilidade social, pois em castas.


Yoga é e sempre foi solidário e não solitário. Olha aí a pandemia do COVID e o aumento exponencial de novos instayogues. Com seus prós e contras, a questão está na busca por novos modos de existir aliados ao Yoga. Se foi bom ou ruim, se você gosta ou não dos yogas que estão aí, não muda nada, pois sempre fomos plurais. São as contradições da vida-vivida na realidade que interessa aos marcados pela terra no Yoga' e não cabe aqui apontar qual yogar é "certo ou errado", pois Yogas habitam no campo dos afectos, estão afastados da moral.


Eu sei o quanto isso ainda é difícil para a grande maioria de yogues ouvir/ler isso, pois (como todos nós) há boletos caindo todo dia 10.

Mas não pensar (e viver) essa realidade, é não ser mais yogue, mas proletários (ou operários) do yoga. E isso não é um xingamento, só uma constatação social. Yogues modernos deixaram (há bastante tempo) seu caráter transformador de realidades (ou samsaras), passando a operar como mantenedor de imaginárias. Vestido com as roupas sacerdotais (e/ou empresariais, já não se diferem mais hoje em dia), não sabem o que é yogar, pois perdido num passado idílico que pensa ser o responsável divino a resgatar num mundo caótico que se borra de medo. Reativar a feitiçaria do yoga é voltar a ser yogue, este filósofo do corpo que utiliza suas práticas como Clínica. 


Haveria uma clínica yoguica? Teriam várias? O que é isso?

Não pretendo esgotar esse assunto aqui, mas lançar uma semente de reflexão. Me acompanhe pelas próximas linhas e pense comigo. A maioria dos yogues se intitulam:


(1) Professores ou Instrutores de yoga, pois ensinam numa pedagogia (em geral, de sua linhagem ou escola em que se formou). Ele (em tese) está habilitado a ensinar, pois possui um método de ensino (em geral, das técnicas, como asanas, pranayamas, meditações, etc.).


Alguns outros yogues se colocam como (2) Yogaterapeutas, aqueles voltados a curar ou prevenir doenças e seus sintomas pela tecnologia yoguica.


E claro, em maior escala, mas ainda mascarado desse papel social, temos os (3) Líderes ou Mentores espirituais que prometem aos seus consumidores, clientes, alunes ou discípulos (pois aqui se confundem as personagens) conduzi-los ao autoconhecimento transcendente - esta geografia metafísica - que todos (os que o consomem) julgam eles já terem alcançado. Estes (mestres-e-discípulos) assim, operam na captura de um sentimento de falta a ser preenchido nesta combinação dialética, gestando - em ambos - uma dívida infinita.



A hipótese de uma (4) Clínica Yoguica, orbitaria no âmbito de não ensinar yoga (isso caberia aos professores) e, muito menos, sanar sintomas ou doenças (função dos terapeutas) ou desvelar metafísicas assombradas por delírios psicóticos do além (cargo sacerdotal e coach's nova-eristas), mas de acolha ao sofrimento do outro, dando espaço para que ele mesmo consiga elaborar sua dor e construir outro significado a ela, numa travessia dialógica em recontar a sua própria história. Estaríamos aqui, elaborando algo inédito aos yogues e seus Yogas (uma possível Clínica do Yoga).


Clínica Yoguica seria uma cartografia da área psi, em que yogues e suas clínicas atuariam desenfeitiçando mayas (ilusões) que contamos (e o social) sobre nós mesmos e a realidade. Yogues em suas clínicas estariam ali (com suas técnicas e saberes) na reelaboração (e quem sabe, reconstrução) de uma linguagem que seu paciente(?) aprenderia sobre si-mesmo. Ao invés de prometer alcançar um Ser, ensinar "praticar yoga" ou arrefecer sintomas de mal-estar em busca de um bem-estar infinito, desfazer imaginários em direção ao real do que conseguimos estar-sendo seria a função destes novos yogues por vir.


Já avistaríamos estas clínicas yoguicas na contemporaneidade do Yoga. Seria esta uma possível linha-de-fuga aos yogues-sacerdotais e suas verdades-perfeitas-em-si-mesmas e dos yogues-MEI e suas positividades-tóxicas-nova-era? Quem sabe?





O principal erro do yogue é acreditar que há um saber escondido dentro dele (ou por deuses) aguardando ser descoberto.


O segundo é não acreditar no seu corpo como fonte de tudo o que imagina, sign.ifica e real.iza. Todo mundo externo nos atravessa, cabendo a nós o traduzi-lo como podemos. Toda uma gama de sensações do nosso corpo se avoluma. O que somos é uma ideia que fazemos dos encontros que realizamos. Yogar, assim, não é um processo de purificação e interpretação do corpo à luz de uma metafísica que nos assombra, mas uma maneira de aprendermos a representar o que nos atravessa.


O terceiro erro é a idealização de um "equilíbrio perfeito" que um yogue “realizado” atinge, de forma constante, perene, eterna e imutável. O Pleno existe sem dúvidas, mas é inconstante; isto é, há que estar à espreita para reequilibrar essa plenitude variável constantemente.


Um quarto erro, decorrência da distração dos 3 anteriores, é ser capturado pela crença que existem yogues-realizados. Mas compreenda, é verdade, que existem humanos que se aliaram a algum yogar, se libertando da alienação ou do ignorar corporal. Estes, inventaram um saber trançado pelo social, mas não podem servir como ideais a seguir. Podem auxiliar como gurus (aqueles guias mais experientes ou "trilheiros ou mateiros dasantiga", mas não líderes (O Clero) a servirem como “réplicas” ou modelos imutáveis (ver erro 3). 


Yogue é um experimentador imerso no cadinho do mundo, e não um projeto de servidão humana; é mais um lavrador de si, colhendo o que frutifica das condições ambientais e psicossomáticas do que só se poderia ser. Você, eu e rabo-do-tatu estamos sozinhes (condenados à liberdade) na compreensão de quem estamos-sendo. Mas (e olha a ambivalência linda e a trágica da vida-vivida), sem os outres, “Você” (esse Eu/Self/Ego/Indivíduo) não existiria. Como assim? Sem as frustrações que a sua mãe (ou quem a representou na infância) produziu (no desmame, etc. - ver Winnicott), ainda não teríamos uma imagem totalmente descolada do corpo materno. Mais simples, eu e você, sem passar pelo sofrimento de se perceber não sendo a própria mãe, não perceberíamos (formaríamos uma subjetividade externa e interna) como fonte de nossos próprios prazeres, valores e sofrimentos, ou seja, não seríamos "algo" que experimenta o mundo!


O quinto erro: buscar, como um tolo em busca de ouro no céu, o “sentimento oceânico” como experiência única (e infalível) da “libertação” e plenitude eterna. Esse sentimento de “homeostase eterna” é pulsão pela morte, um desejo por retornar ao estado vegetativo do útero materno, onde não éramos nada além de um protótipo de bicho sem linguagem ou individuação. Esse desejo por deixar de ser o que se é, revela o mesmo medo de Arjuna no início do B.Gita que precisou da intervenção divina para chacoalhar seu corpo (como um cão removendo toda a sujeira do corpo após brincar no chão), e reintroduzi-lo à vida histórica, material e dialética.


Não é que o “sentimento oceânico”, esse “estado de moksa/nirvana/kaivalya/samadhi…” não exista; sim, ele é totalmente verdadeiro e está aí, disponível a qualquer prática mais ou menos bem conduzida e disposta pela tecnologia do hatha, jnana, mantra, restaurativa ou outro método yoguico desenvolvido, mantido e trocado pelas diversas linhagens que souberam sobreviver no sul-asiático (ou se desenvolvem agora entre latino-americanos). Mas é só isso mesmo, uma experimentação do seu corpo (e sua mente, que é uma ideia daquele), como degustação do sabor da maçã, o aroma da lavanda ou o som do vento nas árvores. E daí?


Esse erro vem acometendo muitos yogues a usá-lo (essa experiência divina ou "sentimento oceânico") como referência última do que é Yoga (e a vida, os mais tolos deliram) e se matam debatendo quem possui a descrição (e vivência) mais exata do gosto (e preparação para) sentir o "gosto da maçã" mokshiana.


Sexto erro: acreditar (idealizar) que há uma “linha-de-chegada” no Yoga, tipo faixa-preta 5o.Dan e ponta vermelha. Enquanto vivos (isso porque há muitos yogues vivos, mas que morreram para a vida: celibatários, não podem odiar, alimentos proibidos, se culpam ao pisar numa formiga...) que se esqueceram de suas vidas, dedicando-se ao “serviço/escravidão voluntário” a outro ser humano comum como ele, todavia, que se apresenta (e é comercializado) como extraordinário no antigo mercado de bens-de-salvação humanos. 


Especificamente aqui, tenho dedicado muito tempo da minha vida acadêmica buscando compreender no Yoga como operam a produção de suas próprias ilusões/mayas modernos em vista de um certo movimento nacionalista indiano (mascarado de Yoga) em se mostrar para o mundo, como uma nação "espiritual" ideal, mas que em verdade, têm demonstrado como “aparelhos-de-captura” de "pretendentes a yogues" - esse protótipo de "Pessoa-do-Bem, consciente com o Planeta Verde e o Bem-Estar de Todes" - com egos tão enfraquecidos. Os "Yogues Perfeitos" se vendem como pessoas Fortes, Destemidas, Sem-Dúvidas, Imaculadas, Seguras-de-Si: “imbroxáveis”, pois necessitam de outros humanos - os Yogues Distraídos - tristes, esvaziados, logo, ansiosos por “estarem preenchidos”. É um complexo mecanismo religioso (bastante antigo e fruto de muita pesquisa - ver estudos sobre conversão religiosa, psicologia das massas, etc.) que irá se retroalimentar num ciclo de impotência coletiva (o padre precisa dos seus convertidos para viver, tanto quanto os "servos" do seu "Senhor") que resulta nesta busca eterna que assistimos - "tranquilos e com a boca escancarada e cheia de dentes e esperando a Morte chegar" - por “Bem-Estar” em suas pequenas-doses-de-alegria/felicidade-passiva" que se distribuem (ou vendem mesmo) nos frascos contidas em “aulas de Yoga” anestesiantes - o Soma da "Vida de Yogue".


Sétimo e último erro: acreditar que tudo isso descrito até aqui é fruto da contaminação moderna e/ou distorção de uma “filosofia ancestral” pelo “Ocidente”, “homem-branco-cis”, racismo estrutural, sistema de castas da Índia, interpretação incorreta do Yoga-Sutras ou qualquer outro inimigo que se invente para cegar a responsabilidade de Avidya que se apresenta agora na fórmula barata (e ancestral, inclusive) de busca por Kaivalya, que é o que sempre será, só mais um Maya.

Seja Bem-Vinde

Você adentrou um espaço em desconstrução. Desacreditamos metafísicas, por isso bricoleurs ou feiticeiros do Yoga quebrando a demanda de todo maya que lhe enfeitiça. Mas entenda, tudo é maya.

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