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As investigações com o Yoga hoje em dia concentram-se, sobremaneira, em seus benefícios para a saúde (uma forma laica de praticar e vivenciar o Yoga), ou de suas repercussões experienciais místico-religiosas (dos chamados "neuroteólogos"). Contudo, ambos, não levam em consideração a sua doutrina religiosa/espiritual. Assim, pouco se sabe das reais interlocuções acontecendo (você gostando ou não) entre Yoga e a sociedade, a cultura, a economia e, obviamente, aspectos comportamentais do brasileiro e a sua religiosidade. Acredita-se, por exemplo que, mesmo praticado em ambiente laico, mais de 40% dos praticantes de meditação desenvolvam uma certa religiosidade/espiritualidade (R.CARDOSO, em seu livro sobre meditação, 'Um médico ensina a meditar'). Essa é a terceira via de investigação do Yoga contemporaneamente em pauta.

E qual a Ética do Yoga? Leia-se sentido de vida! O Yoga acredita, por exemplo, que o aumento da "atividade mental" ou do estado de "desatenção" (citta vrttis), e de mais 4 comportamentos (de apego, de aversão, de medo perante a morte e de orgulho ou falsa identidade de si-mesmo) conhecidos como Klesas seriam frutos da Ignorância espiritual (Avidya) que, por sua vez, seria o motivo de todo o sofrimento humano (Dukha). A consequência de Dukha é a geração de mais Ignorância, mais desatenção e mais comportamentos nefastos, fechando-se um ciclo vicioso de sofrimento ou Samsara. As práticas psicofísicas do Yoga e a sua doutrina religiosa/espiritual focam-se, dessa forma, na ruptura desse ciclo vicioso (roda de Samsara ou ciclo reencarnatório) por meio de um caminho óctuplo (asthanga yoga): yamas, niyamas (10 'códigos' de conduta ético/moral), ásanas e pranayamas (posturas e 'respiratórios'), prathyahara (estado consciencial de menor percepção e resposta autônoma dos estímulos sensoriais externos), dharana e dhyana (meditação propriamente dita) e samadhi (experiência místico-religiosa/espiritual com o sagrado). A Ética do Yoga estaria centrada em arrefecer o "turbilhão da mente" para se livrar da Ignorância de seu espírito.

O conhecimento (realidade) do yogue, segundo os seus textos, advém não somente da leitura de sua doutrina ou de práticas isoladas, mas sobretudo ao longo das suas vivências rituais corporais diárias. Religião, por seu lado, não se baseia em crenças mas do que seus integrantes constroem, mantém e criam socialmente (seu Habitus). Ou seja, da observação do comportamento desse grupo e sua influência na sociedade em que está inserido, conhecemos mais de sua religiosidade, de seus costumes, de seus comportamentos. Em outros modelos sociais, como as sociedades primitivas ou as despóticas-imperiais, havia uma religião dominante e qualquer outra que surgisse como um fluxo "anormal" era, ou absorvida (como o Yoga o foi como "darsana hinduísta" em tempos imperiais do séc.II a.C na Índia), ou sumariamente expulso (como o budismo na mesma Índia histórica). Nas sociedades capitalistas, pelo contrário, todos fenômenos religiosos serão sempre absorvidos/institucionalizados e vão servir ao mesmo "sentido" ético que permeia esse modelo social: o lucro, "reverenciando" ao Capital. Mas a religião em modelos sociais também podem se manter "nômades", subversivas, revolucionárias e gerando mais fluxos não-codificados para o "culto ao Capital". E o Yoga surge como uma nova religião na modernidade de sociedades capitalistas com forte cariz de nomadismo/subversivo/revolucionário. Não obstante, desenvolveu-se éticas yogicas ora institucionalizadas, ora marginais na modernidade - assim como o Hatha-Yoga entre os Nathas medievais.

Sabe-se muito bem que a elaboração do conhecimento (realidade) religioso vai sendo construído pelo meio social e por nossa corporeidade (leia ESPINOSA, P. BERGER; P. BOURDIEU; A. DAMASIO; LAKOFF & JOHNSON). Dessa forma, parece lícito supor que o desenvolvimento do conhecimento (realidade) yoguico acompanha modificações psicofisiológicas juntamente a mudanças comportamentais. Os neurotransmissores serotonina (5-HT), dopamina (DA) e beta-endorfina já se sabe, estão envolvidos nas sensações de bem-estar, diminuição da dor e do medo, aumento da euforia e no sistemas neurais de recompensa; já o hormônio cortisol, durante as práticas yoguicas (se pensarmos que a base da prática ritual yoguica é a meditação - seja ou não em movimento) está envolvido com menor ação do eixo do estresse, devido ao arrefecimento dialógico de certos estímulos externos nefastos (relacionados a despolarização do tálamo), assim com aumento de um profundo relaxamento por relação do hormônio melatonina. Há inúmeros estudos que associam estes neurotransmissores e hormônios à prática do Yoga (ler "Neurobiologia e Filosofia da Meditação" de M.Danucalov e R.Simões).

Considerando, sob a perspectiva do conhecimento científico, que a religião é um constructo humano, portanto, pertencente tanto ao meio social, psicológico-cognitivo, semântico-semiótico (elaboração de cosmovisões) e neurofisiológico dos seres humanos (segundo teoria biocultural da religião de AM Geertz), é totalmente plausível pensar aqui que estas substâncias neuroquímicas descritas acima (serotonina, dopamina, melatonina, beta-endorfina e etc) estejam também associadas ao comportamento específico de seus adeptos. Há uma íntima relação entre corpo e mente que no complexo Yoga nos permite perceber essa tomada de consciência aos cientistas da religião que se preocupam com esse mote de pesquisa.

A minha hipótese é que a vivência do Yoga (práticas, comunidade, experiências e doutrina - e não só as "posturas") predispõe o seu adepto a um estado psicofísico de vivenciar o mundo com menor temor, maior desapego frente as suas vicissitudes, realizações e ideias (que poderá ser verificado pelo menor secreção de cortisol, aumento da serotonina e dopamina, por ex., assim como testes psicológicos e análises qualitativas), mas também em sua percepção intuitiva de relação com outros corpos e mentes. Mas isso não significa a garantia do seu "sucesso" no Yoga, ou seja, o alcance da "iluminação", de Kaivalya (lit.libertação) apenas realizando corretamente posturas, respiratórios e técnicas meditativas. Isso pelo simples motivo que não há nada a ser conquistado no Yoga, pois na ética yoguica não há falta, como na ética dos cristãos, por exemplo. A ética do Yoga está na imanência e não na transcendência (leia a aproximação que se faz da filosofia de Espinosa com o Hinduísmo no artigo de Noah Forslund). A vivência do Yoga, portanto não possui uma ideia de construir uma realidade específica que propiciará ao seu adepto viver o "mundo do Yoga" (como uma outra geografia religiosa, como o céu cristão ou o nosso lar espírita), com a esperança, a fé ou a graça (de/com Isvara/Deus)".

Pelo contrário, a ética yoguica, primeiro visa desconstruir a certeza de universais por meio de uma maior "sabedoria discriminadora" (lit.Viveka) para que o seu adepto alcance a liberação do "mundo Ignorante/Alienado" (conquiste assim, certa alteridade espiritual) em que vive como certeza absoluta, e vá conquistando (a cada Viveka) sua própria Singularidade Criativa de Vida. O fim do sofrimento, da alienação, de Samsara ou da Ignorância espiritual não significa aniquilar a Ilusão (lit.Maya), mas o da Espera(nça) de um Outro Mundo e a convicção que a Plenitude está em "Samsara" como potencial de criação e destruição da vida em constante transformação. Não é por pura coincidência que Shiva seja considerado (ainda hoje) o deus patrono do Yoga, pai de Ganesha (deus da sabedoria) e consorte de Durga (deusa encarnação do feminino e da energia criativa), pois todos são signos representativos da Ética do Yoga (seu sentido de vida); e isso, muito mais do que suas posturas, respiratórios e ainda menos da ressignificação "apressada" dos Yamas e Niyamas como os "10 mandamentos do Yoga". Esse tipo de interpretação é fruto da colonização imperial britânica subjugando a cultura e a religião de seus colonos indianos (igualmente realizado entre os ameríndios brasileiros pelos católicos que tornaram igual Tupã a Deus, e modernamente, Oxalá a Jesus Cristo na Umbanda).

Por outro lado, será mesmo que o Yoga nos liberta ou nos aprisiona se considerado uma Religião? Não seria melhor mantê-lo sob égide nebulosa do "Espiritual, mas não Religioso"?

Vejam bem, as religiões possuem, todas, o poder tanto de nos alienar quanto erigir alteridades ao mesmo tempo. Nenhuma religião surgiu, entretanto, como reacionária e fascista (de vigor autoritário). Pelo contrário, as religiões e seus porta-vozes foram revolucionários e subversivos em seu início: Jesus, Buda, Maomé e os próprios hatha-yogis medievais indianos se revoltaram contra o status quo dos modelos sociais em que viviam. E quando a religião aliena? Sempre que as religiões se institucionalizam e agregam-se ao poder. Dessa forma, pensar o Yoga portador de uma Ética (um sentido de vida) de base filosófica religiosa não é considerá-lo menor cognitivamente, mas elevá-lo ao seu patamar de igualdade de importância de transformações sociais. Manter o Yoga como Espiritualidade é rebaixá-lo e tirá-lo do jogo. É permitir que haja uma dissecação da sua ética em prol de uma economia liberal.

A luta (mesmo inconsciente) por manter o Yoga uma "espiritualidade" ou "laico" em sociedades capitalistas contribui muito mais para o culto ao Capital, do que a difusão de sua 'ética do desapego' em uma sociedade de consumo. Os yogues que lucram com os seus cursos de formação, peregrinações à Índia e comercialização de produtos não suportam a ideia de perder mercado, alunos e dinheiro. Pensa comigo, o professor que ministra aulas as terças e quintas as 20h no seu "estúdio/shala" vai matricular mais ou menos alunos com o Yoga sendo compreendido como religião? Como religião os yogues precisarão disputar com pastores evangélicos donos de emissoras de TV, padres cantores e monges budistas palestrantes de auto-ajuda. Não obstante, aos que desejam pensar o Yoga (e praticá-lo) de forma séria (sem se perder com mais ou menos likes do Instagram para o próximo curso), precisarão realmente estudar o seu "método"/escola/linhagem que criou ou se filiou e "reinventar-se" mais uma vez. Quem está disposto a começar praticamente do zero? Alguns já percebem a mudança em processo, e já se caracterizam como "mentores" ou "líderes espirituais" igualzinhos aos padres, pastores e monges - ou só eu percebo isso?

O que observo também é um caminho inevitável (que já está em andamento) ao Yoga moderno, ou seja, a sua institucionalização (Awaken Love, Swasthya Yôga, Iyengar Yoga, Sivananda Yoga são apenas alguns exemplos mais óbvios) compreendidos entre os cientistas da religião como "igrejas". Mas há também outras denominações yoguicas ainda não institucionalizadas, só assistir as centenas de "fluxos descodificados" de Yoga que surgem a todo momento e como estas são massacradas por fundamentalistas e autoritários do yoga. Estes, além de temerem perder mercado religioso, alimentam o microuniverso yoguico com a crença de um suposto Yoga longínquo "incorruptível" - que no fundo é uma estratégia de marketing para venderem seus produtos como "originais" em face aos outros yogas, que seriam apenas "falsificações" do yoga raça pura.

E no jogo no próprio tecido social religioso de uma sociedade, os yogas (igrejas e fluxos descodificados/inclassificáveis) vão surgindo, adaptando-se e desaparecendo; aquele Yoga que saiu da cena fez aparecer um novo fluxo yoguico descodificado (que não existia antes); este fluxo yoguico novo, por sua vez, poderá vir a se institucionalizar (hierarquizar-se, burocratizar-se...); enquanto aquele Yoga institucionalizado de outrora, pode ser acometido por um escândalo de grande repercussão midiática, que deslegitima o carisma do seu líder religioso, permitindo assim, surgir mais duas ou três dissidências. Enfim, o Yoga é um organismo vivo, assim como toda religião. Mas quando algum desses "fluxos" ou "igrejas" estiver atrelado em uma Ética que já não faz mais sentido ao núcleo social onde está inserido, morrerá.

E o que podemos ler da descrição acima para o comportamento yogi no Brasil? Sempre que você perceber discursos de ódio e aniquilação do tipo: "Esse Yoga não é Yoga", saiba que está diante de um yogi (ou grupo de yogues) reacionários e fascistas que estão lutando para manter a Ética/Verdade deles 'intocadas/imaculadas'. No fundo, há um medo de perderem espaço para outros no campo social religioso em que vivem, pois no fundo, desejam dominar sozinhos o campo, por isso temem o desigual, o plural e o híbrido no yoga. São fracos e estarão sempre buscando "resgatar" uma essência do Yoga que só existiu na narrativa deles mesmos. Por isso se preocupam mais com a pronúncia sânscrita à experimentação dos mantras como vocalizações com o potencial de liberar fluxos novos no Yoga. Os "yogues nômades" são um tipo "esquizofrênico" que abraçam o diferente e o esquisito, pois não se acovardam como Arjuna diante da guerra da vida e compreendem muito bem a diversidade como signo da própria natureza de Deus/Isvara. Carregam consigo a verve revolucionária que toda religião em "essência" possui: perseverar por mais existência com a potência transformadora do social e do comportamental dos núcleos humanos em que se integram, afetam e são afetados.


O ser humano é um animal fraco mas consciente de sua finitude. Isso o diferencia sobremaneira de qualquer outro ser vivo: é um bicho finito mas que se pensa imortal. Por isso que na gregariedade, os seres humanos constroem (socialmente) os mais diversos “ordenadores de realidade” para negar a morte (e recalcar seus desejos também): Filosofias, Religiões, a própria Ciência, os Mitos e o Senso-Comum cotidiano (do "que é porque é"), são alguns dos exemplos. Em outras palavras, erigem instituições (ou agenciamentos) com os seus próprios agentes sociais para suportar toda a sorte de infortúnios. Estes engenhosos animais, conscientes da brevidade de suas existências pueris (única verdade absolutamente, e fato incontestável), desenvolvem (e seguem fielmente) os mais diversos papéis sociais (sacerdotes, filósofos, cientistas, marceneiros, advogados, CEO da Ambev, funcionários do setor bancário e etc) que cada um deles deve/precisa(?) obedecer (acreditam) para que as suas vidas em grupo tenham um mínimo de sentido existencial, por assim dizer - daí nasce toda uma gama de códigos de conduta moral e valores (como o que é do "Bem" e do "Mal"). Mas alguns destes mamíferos, desconfiados (sem confiança, ou seja, desprovidos de fé mas imersos de vida vivida aqui e agora) da infinitude da vida, visam subverter ou eliminar essa espera(nça) em outro mundo (pois pensam que talvez só exista esse), pois a aposta da espera é muito alta.

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Um dos Ordenadores de Realidade mais conhecidos entre os brasileiros por exemplo, é o da religião cristã que instituiu a crença no outro mundo (transcendente) onde (os que obedecerem sua moral) serão felizes; o Céu cristão ou o Nosso Lar espírita, são os exemplos. Os Yogues indianos antigos (quando vivendo sob o manto ordenador religioso do Hinduísmo e não Cristianismo), pelo contrário, desenvolveram a ideia que o "mundo Perfeito" está aqui (na imanência) e não em outro (na transcendência). Entre os brasileiros (por motivos que não cabe aqui discutir), a instituição religiosa cristã fez acreditar que o sofrimento advém de uma alma pecadora, portanto, imperfeita, mas que adquire (ou retorna a) sua Plenitude após a morte. A religião hinduísta instituiu, pelo contrário, que a alma é Perfeita em Si-mesma, e que a Vida Boa (e não do Bem ou do Mal, mas Boa ou Ruim) já está em você, desde o nascimento. Sofre-se, pensam os Yogues indianos antigos, pois se é alienado (Ignorante espiritualmente/Avidya) da Perfeição/Deus/natureza. Entretanto, em ambas instituições/agenciamentos religiosos erigidos em coletivos humanos diferentes (cristã e hinduísta), papéis sociais desenvolveram-se para manter vivos os seus sentidos de vida. Sem suas crenças gregárias os bichos humanos (des-iludidos) morreriam cedo ou abreviariam suas vidas sem sentido, eles mesmos, retirando-se deste mundo pelas portas dos fundos, por assim dizer. Em suma, o ser humano sem ilusão nenhuma (desiludido, niilista), nas sociedades modernas, toma doses diárias de ilusão em cápsulas: antidepressivos e antipsicóticos 3x/dia após as refeições...

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Já a sua contraparte, as instituições religiosas politeístas, fundaram Ordenadores de Realidade sociais onde há vários deuses, portanto, suas "verdades" também podem ser muitas e não apenas uma única versão Onipotente, Onisciente e Onipresente. Não a toa, as religiões que cultuam vários deuses são classificadas como primitivas e seus habitantes, selvagens pelos "mamíferos" que vivem coletivos adoradores de um único Deus/Verdade. Entre os adoradores da Única-Verdade, desta feita, o Diabo ou o Mal então, podemos supor em nossa digressão, seria a mentira, o sonho, o erro e uma construção inverídica. Por exemplo, o cerne de um processo ritual de desobsessão (poderia ser também purificação ou desintoxicação) demoníaca (e/ou sua influência) é resgatar a Verdade/Deus no indivíduo obsidiado pela Inverdade/Diabo/Mal. Assim, um local divino/sagrado, é uma geografia religiosa/espiritual em que reina a Verdade e onde não há influência da Mentira, do Engano, do Diabo, do Mal ou da Ignorância. Para quem não está conseguindo seguir a ideia aqui introduzida, os gays, os negros, os reacionários e os comunistas por exemplo, devem ser eliminados do planeta, pois no mundo transcendente da verdade única, não há espaço para outras versões de verdade.

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O Yoga de origem hinduísta, advindo de uma sociedade politeísta na Índia (e antes dela), quando transplantada ao Brasil (1950-60), traz consigo muito dos valores morais de todo um processo de “globalização” da filosofia do Yoga aos países não-hindus, que foram muito bem planejados por intelectuais renascentistas indianos do final do séc.XIX até 1947 - quando os indianos proclamam a sua independência da teologia cristã da Verdade/Deus única. Estes yogues indianos (Ramakrishna é um deles, por exemplo) visavam a independência de seu país das mãos inglesas e, por isso, adaptaram sua religiosidade como instrumento de legitimação de um povo politeísta (como é o hinduísta) tão “superior” (e não “bárbaro e selvagem”) quanto os adoradores da Verdade/Deus único (monoteísta). Um dos exemplos foi todo o esforço em instituir uma “trindade” hinduísta (Brahman, Vishnu e Shiva), como se Brahman fosse "O deus" e não apenas "mais um" deles. A ideia por trás está, em uma engenhosa manobra teológica para melhor aceitação de uma "nova" religiosidade e legitimação da sabedoria indiana à visão monoteísta de mundo legítimo - não por coincidência conhecemos o neo-hinduísmo ou neo-vedanta.

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“Deus é a Verdade e ela vos libertará!”. Essa é máxima que percorre a lógica das instituições religiosas monoteístas, ou seja, Deus é sinônimo da Verdade e, como só há um único Deus (por isso monoteísta), também só há uma única verdade. O yoga, milenariamente, uma das perspectivas filosófico-religiosas do politeísmo hinduísta, quando da sua transplantação, já carrega em si, os novos símbolos neo-hinduístas e neo-vedantinos que os yogues indianos modernos precisaram construir para que o Yoga/Hinduísmo buscasse fazer algum sentido aos monoteístas de uma única verdade que os colonizavam. E aqui retornamos a nossa pergunta inicial: Como um yogue (ou qualquer outro religioso – o que busca Deus/Isvara/Natureza) pode se aliar a discursos de ódio? Dito de outra forma, como um yogue, nascido de um mundo pluralista de verdades/deuses sucumbe a discursos de busca de uma única e só verdade/Deus? Simples, o yoga, antes plural e habitado por diversas Verdades/Deuses (como a sociedade grega antes do cristianismo ser imposto como religião de uma única verdade), é confrontado com uma outra cosmovisão de mundo (monoteísta) e se adapta. No Brasil, o yoga, com forte influência da nossa cultura cristã vai adotando a ideia de uma perspectiva mais intolerante sob perspectivas pluralistas (típicas de sociedades monoteístas) como “heresia”. Dito de outra forma, se eu sou monoteísta, e acredito apenas em um único Deus, qualquer versão que esteja pautada pelo discurso relativista/politeísta está errada. O que está nos subterrâneos da consciência monoteísta é: “não posso suportar a ideia que a Minha Verdade (leia-se meu deus) seja apenas mais uma versão da realidade. E aí ele ataca (reage) com violência e ódio como se fosse o mais correto (moralmente), pois imagina estar em uma cruzada contra o Mal, o Demônio, a Inverdade. E toda a sorte de crendices este adota para justificar a "Morada do Senhor", pois crê no Deus/Verdade/Bem estando ao seu lado: “Ele é a Verdade, e me Libertará”, repete como um mantra.

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Mas qual a justificativa nos textos yoguicos de tal pensamento monoteísta ter sido aceita? Os yogues brasileiros interpretam a concepção de já ser perfeito em si-mesmo do Vedanta Advaita por exemplo, como se houvesse uma única verdade a ser conhecida, quando se é totalmente plausível pensar neste mesmo dogma teológico, sob outra perspectiva bem mais “inclusiva” e de respeito a todas as outras formas de existência minoritárias. Pois, se possuímos todos a mesma “essência imaculada”, significa que partimos todos da mesma origem divina (não necessariamente com uma "verdade única" da vida, mas da mesma matriz "divina" por assim dizer) e, por isso, toda interpretação da verdade seria igualmente legítima/natural. Entre os cristãos essa tentativa de argumentação “inclusiva” é mais difícil, pois eles se imaginam “imperfeitos” (ou pecadores), dessa forma, a Verdade está sempre “fora deles”; enquanto os yogues-hinduístas se imaginam, como argumentamos, portadores de uma plenitude em que já são. Em poucas palavras, a verdade está “dentro” deles. Os mais diversos deuses do panteão hinduísta seriam expressão, desta forma, não de um único e “verdadeiro” Deus, mas da própria multiplicidade de indivíduos nascidos “plenos”, ou seja, preenchidos com todas as verdades/deuses; tendo todos os bichos humanos a mesma raiz, seríamos livres para transformar nossas vidas em verdadeiras "obras de arte" e não nos compreendermos como um quadro pronto que deveríamos buscar conhecer. Seríamos "espelhos" a ser refletidos pelos deuses que habitam em nós. A “plenitude da vida” yoguica ao invés de significar o total absolutismo da Verdade/Deus/Isvara, poderia corresponder a imprevisibilidade da constituição de quem já somos pelos infinitos encontros de corpos/mentes (todos, também, modificações de Deus). Portanto, o(s) Deus(es) no yoga recebe(riam) o Relativo que o abraça dançando, e nunca exorcizando o diferente de mim.

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Quando o próprio Vedanta afirma que o indivíduo (Jiva) é a soma da sua Ignorância (Avidya) com a Consciência (Atma), está afirmando a Ignorância como totalidade do espírito e não algo excludente e empecilho para ascensão na sua senda espiritual. Em outra passagem o Vedanta adverte que a Pura Consciência torna-se a causa do Universo, pois Maya (lit. Ilusão) vive; não há concepção aqui da Ilusão/Relativo como algo deletério e que devesse ser exorcizado como o demônio - algo típico do pensamento cristão medievalista e não do hinduísmo. Em outra passagem, o Vedanta nos esclarece que o próprio conceito de Deus/Isvara não é a Verdade, mas a Ilusão (Maya): “Atma, com o condicionamento de maya, é chamado Isvara (ARIERA, G. 2006. Tattvabodhah: o conhecimento da verdade. Rio de Janeiro: Vidya-Mandir Ed. p.97).

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Com isso, pretendo demonstrar que o discurso de ódio adotado por yogues frente a polarização brasileira em finais de 2018, pode ser fruto de uma má interpretação dos textos do yoga e nunca da suas escrituras teológicas em si - mesmo porque os textos são vastos e não à toa possuindo seus 6 darsanas (perspectivas religiosas hinduístas). A narrativa do yoga pode ser herdeira da luta de yogues medievais da Índia (séc.X d.C.) que lutavam contra o fim do sistema politico de castas (um outro absolutismo da Verdade?) e da distância social que estes impingiam aos indianos que lá viviam. É retornar a um passado que nem os indianos gostam de relembrar quando se busca pautar o discurso yoguico moderno, nascido do relativismo da nova era e do pensamento pluralista e inclusivo erigido em comunhão com a mística e a alquimia muçulmana, da corporalidade tântrica, da visão não-dual de Shankara e a noção de igualdade social budista dos hatha-yogues indianos.

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Não abandonemos, portanto, yogues malandros (e marginais), o sonho de realidades mais plurais e verdadeiras em troca das velhas contendas cristãs de “quem tem o melhor Deus/Verdade” no seio do yoga contemporâneo, pois isso é retornar a um passado nada idílico e talvez inexistente.

Foto do escritorPhD. Roberto Simões

Atualizado: 6 de jul. de 2022


Muitos afirmam que vivemos no Brasil em um momento polarizado. Mas acho que não, enfrentamos de forma nítida duas realidades de encarar a existência. E vou tentar aqui demonstrar isso de forma simples (na medida do possível) e correlacionar com o microuniverso do Yoga BR.

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De uma forma geral, podemos separar essas "polaridades" yoguicas em homens e mulheres que percebem (ou se "ligaram" agora) o mundo de forma "ideal" e outros em "construção".

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Pois bem, os “idealistas" acreditam que a Verdade é uma só, única e absoluta. Já os “construtivistas" creem na verdade como relativa, pois depende do contexto social, espiritual e psicobiológico em que está inserida para existir. Existe uma terceira via explicativa? Talvez sim. Mas o que é preciso ficar claro desde já, é que para os yogues "construtivistas", a verdade dos idealistas também existe; não obstante, para a verdade idealista/essencial viver, é necessário um esforço tremendos dos idealistas em conservar a sua verdade intocada, portanto, as verdades construtivistas precisam morrer para as idealistas continuarem a ser absolutas. Dito de outra forma, a verdade idealista não é única se outras viverem, mas o yogue construtivista só entende a sua verdade existir na pluralidade (que abarca, por lógica, a verdade idealista, mas nunca absoluta).

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É incontestável que a verdade seja percebida de formas diferentes em cada cultura. Um ameríndio amazônico não interpreta a realidade como um parisiense moderno. Mas será que eles constroem verdades diferentes ou narrativas sobre uma mesma verdade? Aquela frase: "Falam da mesma coisa mas maneiras diferentes"?

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Não há uma resposta incontestável a essa pergunta. Yogues idealistas e construtivistas possuem versões diferentes que assentam os seus argumentos. Entretanto, um outro fato é incontestável: por sermos animais, biologicamente, finitos e cientes disso (ao contrário de passarinho curió), a tragédia e a crueldade do mundo se mostram na força da morte a cada exalar, pois cada suspiro guarda em si a ansiedade de (poder) ser o último. E isso amedronta.

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A verdade inexorável da finitude, atrelado a fragilidade de nossos corpos orgânicos, nos dota (todos seres humanos, evolutivamente) de uma poderosa arma que nos ajuda a sobreviver neste mundo imanente ocupando, pasmem, ao topo da cadeia alimentar, pois fomos dotados (ou criamos?) a possibilidade de antecipar perigos e, com isso, um potencial criativo imenso em elaborar estratégias singulares e/ou narrativas explicativas de sentidos aos terrores e alegrias do viver.

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Mas aqui voltamos a mesma questão: construímos “ordenadores de realidades” diferentes para uma mesma Verdade que não se altera a contextos culturais diversos, ou organizamos um “vazio gigante” de sentido em que vivemos (portanto, sem verdade alguma fixa) para nos “curar” do medo de um mundo sem sentido (sem Deus, deuses e gnomos) transcendente?

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Mas há mais uma verdade "absoluta" (a terceira até aqui) que legitima o pensamento dos idealistas em se imaginar inteiros/plenos/completos, que é a necessidade vivermos de forma gregária. Sozinhos, talvez até vivêssemos, mas não como nos compreendemos hoje. E nesta gregaridade passamos a adotar o modus operandi de vida destes. Vivendo com lobos, elefantes, macacos ou um lindo coelhinho branco na floresta, a regra é simples: matar para comer, matar por um abrigo seguro e quente, e matar para acasalar e transmitir seus genes (e a "verdade do mundo") adiante - alguns vão chamar de "legado" ou "tradição". Mas para fugir disso, criamos as sociedades humanas: sociedades primitivas, sociedades despóticas e sociedades civilizadas em que habitamos hoje.

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Se há algo inato em você e em mim (ao menos à luz da psicobiologia), entretanto, é a resposta de luta-fuga em momentos que identificamos como perigo de vida. Seja um selvagem, um bárbaro ou um capitalista, assim como a resposta do estresse, o relaxamento se manifesta em nossa psicofoisiologia quando nos sentimos acolhidos e protegidos. Sabemos por exemplo, que a fome, a dor, a raiva e o medo são os gatilhos físicos e emocionais do disparo da resposta do estresse (mesmo que apenas se imagine). O estresse nos prepara para o pior, a certeza indubitável da morte física eminente nos espreitando a cada passo, a cada pulsar genético. Você pode nascer sem um olho, com apenas um rim ou parte do cérebro, mas sem a resposta do estresse e o relaxamento como seu antagônico, morre, pois esse par biológico inato em você o mantém alerta para o perigo a cada folha seca pisada na floresta, assim como descansar em momentos de paz e tranquilidade.

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Até aqui já podemos argumentar que a violência (lutando ou fugindo) e do amor/compaixão nasce/vive em você. Somos capazes de realizar as ações mais vis de selvageria e barbárie sempre que nos sentimos com medo, raiva, dor ou fome (em nome da civilidade muitas vezes); ou dos atos mais gentis e amorosos quando acolhidos e protegidos.

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Agora então, depois dessa digressão, podemos retornar ao início de nosso pensamento polarizado de mundo (cosmologias, ordenadores de realidade, ficções, singularidades criativas ou narrativas de mundo) entre os yogues idealistas e construtivistas. A nossa argumentação até aqui possibilita julgar que, se é impossível (ao menos por meio da nossa biologia) ter certeza se a verdade é absoluta ou depende do individuo que a interpreta, os idealistas tendem a se tornar mais reativos (estressados) à disposições comportamentais contrárias as suas. Pois, se a verdade para eles é inquestionável, qualquer um que pense diferente deles, está errado. Entre os yogues construtivistas, ao contrário, como pensam de forma relativa a(s) verdade(s), tendem, pela lógica aqui empregada, a respeitar posições antagônicas as suas, pois não há o certo ou errado absolutos, mas sempre contextualizados (dependentes de quem as cria). Entretanto, os construtivistas podem "perder a cabeça", se enfurecerem, portanto, por temerem ser cerceados da liberdade de pensamento criativo e julgamento do real por aqueles idealistas - absolutistas da verdade - que visam conservar o mundo em que vivem. Para ficar mais simples, pensar um yoga como moderno ou contemporâneo é totalmente fora de propósito, pois só acreditando em uma verdade, não há como existir outros yogas (interpretações) que não advenham de Patanjali, Goraksa, enfim, do próprio Shiva até.

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Dessa forma, viver como um yogue idealista é estar a todo momento com medo de assistir sua realidade ruir. Um individuo que percebe o mundo em constante mutação, pelo contrário, tende a se adaptar de forma mais confortável a criações da realidade em que vive. Assim, por consequência, a raiva/ódio se instalará com maior facilidade e força entre os yogues idealistas que reagem (muitas vezes com truculência) por fazer querer valer a sua versão única* da verdade. Para um yogue construtivista, que julga tudo relativizado, pensamentos díspares aos dele, podem (e devem) ser absolutamente comuns e verdadeiros também - já que somos singulares e dependentes do mundo que nos rodeia para desenvolver nossas potências criadoras (na verdade é bastante similar e apropriado a simbologia de Shiva ser evocada aqui e agora: deus da criação e destruição, consorte de Durga e pai da divindade da sabedoria e "removedor de obstáculos").

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Entre os yogues idealistas reside a tendência “natural” em conservar inalterado certos comportamentos morais, pois seriam estes, cruciais para manutenção inalterada do status quo coletivo em que vivem: o vedanta, os yoga-sutras e qualquer outras escrituras sagrada não é perfeita em si-mesma e nem passa pela cabeça de um yogue idealista/conservador supor que foi um ser humano que os escreveram, portanto, totalmente passível de críticas e inconsistências filosóficas e morais. Não obstante, viver como um yogue construtivista é carregar também um medo (uma ansiedade e, posteriormente, quiçá depressão) de que, por existirem uma infinidade de possibilidades de interpretação da realidade e de verdades* das mais diversas, um pessimismo/melancolia/ansiedade frente a vida recheada de um vazio insondável e da única certeza pesada demais em suportar: a verdade da brevidade da existência e de um mundo imanente sem olhos ao transcendente - um outro mundo. Com isso quero afirmar que a vida de um yogue idealista é mais “segura/confortável” e “confiável”, afinal só existe uma verdade, em tese ao menos.

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Enquanto para os yogues idealistas se faz necessário manter uma certa "vigilância" para conservação da sua verdade infalível e realidade intactas aos “ataques” construtivistas; estes (os yogues construtivistas) se viverem na miríades de possibilidades de verdades que vão se erigindo sem cessar e, sobretudo, sem fixar-se em nenhum sentido de vida, a dor frente a incerteza trágica da vida pode o conduzir a um niilismo (pessimismo) que pode consumir suas almas e os matarem por des-ilusão.

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Não é coincidência o suicídio ser um ato imperdoável (uma traição) à muitas causas moralistas entre os idealistas. Se a certeza da verdade é indubitável entre eles, abreviar a existência em des-ilusão, é duvidar. Mas a dúvida e o "incomodo" é o “inato” entre os yogues construtivistas, pois não desenvolvem a certeza de nada, a não ser da morte. Mas por isso, criam incessantemente novas formas de existir, enquanto os yogues idealistas ressentem-se do viver que já foi e não mais é. Por isso vivem no resgate e conservação das suas tradições, enquanto os yogues construtivistas subvertem e se recriam a todo instante.

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Qual a terceira via entre os idealistas e os construtivistas? Talvez uma geração de yogues que duvidem da verdade absoluta, mas mesmo assim, por livre iniciativa/intuição/poder criador de novos jeitos de viver, desenvolvem criativamente suas próprias moralidades e "tradições". Mas sempre com um ar de desdém, de não se levar muito a sério, caso contrário, se transformam rapidamente naqueles que, depois de inventarem seus métodos, escolas, "tipos de yoga" e etc, se transformam em ressentidos (aqueles que sentem sempre a mesma coisa: re-sentem e re-sentem de novo e de novo). A vida não ganha potência e morrem ranzinzas.

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Um animal consciente de sua finitude e da grandeza infinita do universo (ou de Deus?), criativamente (como um artista) ousa escolher e/ou moldar um ordenador de realidade mutante/esquizofrênico ou "metamorfoseante". Um yogue novo (que não nasceu em sociedades primitivas como os primeiros yogues que alguns querem reviver como um bicho extinto do Jurassic Park; ou em coletivos déspotas como os de Patanjali e cia), deve viver a sua existência tão mergulhado na construção de sua própria “ficção curativa” do niilismo em que chegou em busca da liberdade de criar, que não disporá de seu tempo e espaço "liso" para se preocupar com as “ilusões absolutas” dos outros. Ele, esse yogue novo vive como um nômade e respeita todos, pois vive a sua sua própria forma de viver singular como um idealista*, mas que sabe a beleza infinita das verdades possíveis que podem e vão continuar existindo como um construtivista*.

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