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Quando Karl Marx, Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud condenaram o cristianismo como alienação, escravidão e ilusão para as pessoas, estavam, antes de clivar uma religião, criando - cada um à sua maneira - uma nova “narrativa explicativa de mundo”.

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Todos eles, assim, desenvolveram as suas próprias “Igrejas”, por assim dizer: Sociedade sem classes, Super-homem e a Psicanálise, são cosmologias que produzem muitos discípulos ainda, muito mais do que pensadores. Todavia, a ruptura hegemônica de uma única versão da Verdade (a religião católica, sobretudo, que Marx, Freud e Nietzsche criticaram) induziram transformações sociais, econômicas importantes, mas não acabaram com a religião, pelo contrário, produziram novas. Após eles (e claro que há muitos outros pensadores importantes antes e depois destes), houve um descrédito (e até certa ojeriza) às religiões dominantes. Se instaura na Europa da virada do século XIX-XX, um processo de ruptura sistemática de qualquer aproximação do Estado com a Igreja (não só cristãs, mas islâmicas, budistas e etc).

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Esse rompimento do Estado-Religião permitiu que cada indivíduo dessas novas sociedades seculares (é nome que se dá a governos em que chefe de Estado não é também o líder espiritual) pudessem escolher em qual narrativa ou cosmovisão de mundo seguir - mesmo que seja o ateísmo, aonde é a Ciência o modelo ordenador de Universo, e seus sacerdotes, os cientistas.

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Essa liberdade espiritual trouxe consigo um movimento religioso inovador que não acredita em nenhuma forma de institucionalização do espírito humano, e muito menos que se estabeleçam valores morais universais a seguir. Estes novos religiosos pós-existencialismo acreditam, por sua vez, em uma nova ordem a surgir, creem que a “Era de Peixes” findou e a Era de Aquário, astrologicamente mesmo, chegou a partir do séc. XXI para mudar o mundo. Estes, ficaram conhecidos como pertencentes do Movimento religioso New Age ou Nova Eristas.

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É como se as religiões tradicionais estivessem com o “prazo de validade vencidas”. Os religiosos Nova Era até mudaram o nome de suas Igrejas para “Espiritualidades”. As religiões/espiritualidades Nova Era transformaram antigas práticas e escrituras das religiões tradicionais, sobretudo advindas do “Oriente”, como terapêuticas. Assim, o Tai-chi Chuan, o Yoga e a Acupuntura foram desvinculadas, respectivamente, das religiões Taoísta, Hinduísta e Budista. Sobretudo via ordens esotéricas europeias estas novas ideias espirituais disseminaram os ideais nova eristas pelas sociedades seculares e privatizadas religiosamente do Ocidente: Teosofia, Maçonaria e Rosa-Cruz, assim como o Martinismo são alguns exemplos.

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Quando os diversos movimentos político-religiosos nacionalistas indianos se organizaram, por volta de 1858, para lutar pela independência de seu país dos ingleses - que os colonizam até 1947 -, se beneficiam dessa efervescência espiritual nova era - “libertária” das antigas cosmovisões religiosas - que crescia no mundo. Surge daí o Neo-Vedanta por exemplo, que interpretaria o Gita, o Vedas e o Yoga-Sutras traduzindo-os para o inglês.

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O yoga, antes um filosofia-religiosa hinduísta (darsana), e a sua principal prática ritual, a Meditação se disseminam pelo mundo como desvinculado do Hinduísmo, mas legitimado pela Ciência biomédica - bem ao gosto nova erista, filhos do existencialismo dos nossos 3 personagens iniciais. Um dos swamis herdeiros do nacionalismo indiano e do movimento religioso Nova Era, Kuvalayananda, é considerado o “pai do yoga científico”; Vivekananda, mais um herdeiro dessa aura "libertária", funda em 1918 a primeira “escola para formar professores de yoga”; Yogananda em 1920, funda a primeira escola de Yoga fora da Índia em Hollywood/EUA. Estes, são apenas alguns exemplos da verdadeira missão proselitista dos yogues indianos nacionalistas em apresentar ao mundo o valor de sua cultura e uma nova proposta de pensar o yoga.

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Ao longo de menos de 100 anos (1900-1970), o Yoga foi inovado, adequado e readequado pelo movimento nova era, conquistando status de “científico”, terapêutico, ginástico, e dissociado da sua religião-matriz: o Hinduísmo. Agora, Jesus, Maomé, Buda e Jeová são considerados “yogues”. O yoga vai conquistando a sua singularidade, por assim dizer: possui suas escrituras sagradas, práticas singulares, experiências pessoais e, claro, uma comunidade fora da Índia que vai crescendo exponencialmente. O Yoga Moderno se transforma em uma nova religião influenciado pelo movimento religioso nova era, biomedicina, Ed. Física e cristianismo. mas também, e como não poderia ser de outra forma, produz novos líderes e com eles, uma nova perspectiva de mundo.

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A proposta moderna do yoga continua sendo a mesma em sua “essência” (que na verdade, é a mesma de qualquer outra religião): acabar com o sofrimento humano. Mas para o Yoga, ao contrário dos cristãos, a causa do Mal não reside no pecado Original, mas na Ignorância “Original”. Você não sofre porque é Imperfeito (pecador). Não, para os yogues somos Perfeitos e Plenos! Sofremos por não compreender a Plenitude que vive em nós por causa da confusão mental em que vivemos. O Yoga propõe um caminho espiritual óctuplo para findar o “turbilhão da mente”, como eles dizem. E a prática meditativa, a realização diária de posturas combinados com respiratórios espirituais e a adoção de 10 códigos morais (yamas e niyamas) é a “missa” yoguica. Os yogues modernos devem assumir esses 8 preceitos para alcançar o tal "discernimento espiritual" da essência “perene”/harmônica que já são.

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Todavia, quando essa doutrina religiosa yoguica, sistematizada no século II a.C., por um sacerdote hinduísta, foi sendo introduzida em sociedades, como vimos no início deste texto, que lutaram por vencer toda e qualquer forma de doutrinação religiosa (lembre de Marx, Nietzsche e Freud) encontram os yamas e niyamas e percebem que não passam de outros “10 mandamentos” ou “Pecados”, não curtem muito bem a ideia e ignoram esses valores morais e adotam com mais vigor as experiências pessoais (e espirituais) advindas das posturas (asanas), respiratórios (pranayamas) e da meditação propriamente dita; além disso, a Ciência biomédica legitimou e incentivou o Yoga como um sistema de “cura do Mal do século XX”: o estresse. Assim, os yogues modernos incorporam o “estresse” e o “relaxamento” em sua nova cosmologia ou “ordenador de realidade”.

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A religião, como já se sabe, não é uma construção irracional, mas um complexo lógico e coerente as agruras que afetam uma dada (parcela) da sociedade, fornecendo sentido de vida para esses indivíduos. Acreditar em chackras, prana, nadis, kundalini e orar para um Deus com corpo de criança e cabeça de elefante é tão “isano/ilógico” do que preparar um despacho na encruzilhada para um Exú-Mirim ou ir à missa aos domingos com esperança no Céu cristão.

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Mas essas construções, quando aceitas em uma dada comunidade, serão, continuamente, mantidas, trocadas e experienciadas por símbolos míticos e místicos na vida cotidiana, fornecendo sentido (ética) a todos que comungarem (fé) nos seus signos. Quando esses signos pararem de fazer sentido a eles, a religião morrerá, para outra surgir (ou vir a ser dominante) - como a religião Egípcia, dominante frente ao Judaísmo em um dado período histórico, e "morta" nos dias atuais (2018) e suplantada pelos judeus séculos depois. Ou você conhece alguém que reza pra Osiris (deusa egípcia) ou comunga no templo de Delfos (antiga moradia de divindades divinatórias da religião grega)? Não, você conhece judeus que visitam Jerusálem.

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Quando yogues indianos modernos (como Iyengar e outros) elegeram o “estresse” como causa do sofrimento humano (para os yogues antigos eram os klesas: comportamentos associados ao apego, aversão, medo da morte e orgulho, frutos da Ignorância), não estão sendo ingênuos ou menores intelectualmente do que seus antepassados (que viviam em uma sociedade estratificada e sob a tutela do Hinduísmo, sempre bom relembrar); mas inovadores, pois perceberam as transformações sociais em que viviam e ressignificam suas narrativas religiosas. Se não mudassem, o yoga morreria ou, de tão obtuso, talvez nem estaríamos aqui discutindo suas ideias.

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Por fim, os yogues modernos, pela aproximação com biomedicina científica, permitiram que novos atores sociais atuassem em seu microuniverso espiritual, muitas vezes, disputando com eles seus bens de salvação/libertação por novos alunos/discípulos. Ou seja, como o fim do sofrimento no Yoga Moderno não advém mais de uma moral “escrita”, mas “sentida” pelas experiências corporais de suas práticas, swamis, mestres e professores de yoga, agora disputam discípulos com “cientistas-gurus”. De um jeito mais fácil de compreender, swamis, professores de yoga e cientistas-gurus (como D.Chopra, A.Watts e A.Goswami) ofertam os mesmos de bens de salvação yoguica modernos: o relaxamento. A grande busca espiritual yoguica moderna se aproxima mais de uma espécie de “homeostase divina” do que o Kaivalya da Índia antiga. Com isso quero dizer que uma parcela da população que habita os grandes centros urbanos “cansados”, “estressados”, ansiosos, com déficit de atenção e acometidos pela falta de perspectiva de vida (depressão), tem adotado o yoga como sua prática religiosa diária, como uma espécie de exorcismo do estresse/Mal de suas vidas “laicas”.

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A cada Surya Namaskar, Ujjay e mantra realizado, está a esperança de uma "vida plena" ou, "yogaterapeuticamente" falando, em busca da "alta performance" e "ampliação da consciência" de Si-mesmo (ou qualquer outra aproximação - e aqui tudo o que é "quântico" é benvindo) aonde se alcance com o Yoga moderno, uma "nova maneira de viver".

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Não há, para ficar bem evidente, na minha fala nenhum tom de chacota, ironia ou sarcasmo (talvez de ironia, mas como recurso pedagógico e nunca de diminuição intelectiva), pois exponho as elegantes transformações que a cosmologia do yoga tem passado para se manter "atualizada" com a nossa sociedade. Talvez, se você viva na Índia e conviva apenas com rishis reclusos em cavernas, isso tudo possa parecer pilhéria (pois eles desenvolveram ou manteram suas próprias narrativas daquele contexto); mas se você é um yogue contemporâneo e vive em sociedades urbanas do Ocidente, esses (o que expus) são os símbolos "novos" de um yoga que faz sentido a sua população atual, e erigidas pelos próprios indianos.

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E o livre-pensador de yoga? É o que leu e compreendeu (mesmo não concordando) que as adaptações são inevitáveis, e vivem acima de contendas sobre qual yoga é mais "sério", correto, antigo, tradicional, mais ou menos "físico" ou que possui ou não uma pronúncia acertada de ahimsa ou Isvara.

Prof.Dr.Roberto Simões

Podemos dizer que, historicamente, o ioga moderno tem início em 1757 com o início da colonização britânica na Índia; e desembarca no Ocidente, oficialmente, em 1893 com o swami Vivekananda (1863-1902) em Chicago, nos Estados Unidos. A sua visita foi, por convite do primeiro parlamento mundial das religiões, como representante do Hinduísmo. Para Vivekananda, iogue discípulo de Ramakrishna (um dos líderes religiosos que lideraram o movimento nacionalista indiano), o ioga é considerado como um ideal de religião universal (VIVEKANANDA 2007)4. Com ele, mas não por causa dele exclsuivamente, o ioga inaugura o seu período moderno.

O ioga apresentado por Vivekananda é o de uma tradição religiosa voltada ao ser humano alcançar a sua verdadeira liberdade e manifestar a divindade interior. Vivekananda, e não iogues ocidentais, dão início a desvinculação do ioga como um darsana hinduísta (lit. perspectiva filosófica-religiosa do hinduísmo), para a concepção de uma nova e singular religião (DeMICHELIS, 2004, p.248-260; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2014, p.95-129) assimilando os ensinamentos espirituais ioguicos com os da ciência (NANDA, 2007; STRAUSS, 2008, p.64-65; VALLE, 2008, p.200). O seu discurso ficou bastante popular, o que lhe possibilitou fundar organizações ioguicas por cidades do mundo inteiro, tendo o seu pensamento, em relação à religiosidade ioguica e à ciência, formado a base intelectual e ideológica de uma geração de iogues que veio depois dele5 (DESIKACHAR et.al., 1980).

O ioga moderno, assim como em outros tempos históricos que expomos anteriormente, tece relações híbridas com a cultura e sociedade no qual se encontra; neste momento, as cidades urbanas ocidentais. O caráter do iogue renunciante do mundo de tempos passados, abre espaço para um iogue asceta, mas que dialoga com o mundo (STRAUSS, 2008, p.64). Os iogues indianos modernos, a exemplo de Vivekananda, desenvolveram discursos retóricos que os autorizaram a participar das sociedades ocidentais. Eles inclusive denominam a si mesmos de monges samsari, pois são ascetas que vivem no samsara; ao contrário dos iogues ascetas de outrora que se retiravam do convívio social mais intenso nas cidades indianas.

Samadhi, kaivalya e a ação nociva dos klesas serão vivenciados agora no jogo da vida e não fora dele. Será necessário elegantes desenvolvimentos filosóficos para sustentar tal readequação social do ioga:

Consideremos agora a diferença entre um yogue-asceta e um monge samsari (que se propõe a participar do jogo exterior de maya). Diga-se desde já que o “samsari” não precisa jogar obedecendo ao ego. Com efeito, é grato por Deus e muito útil ao desenvolvimento espiritual participar do jogo divino sem recorrer ao ego, em vez de procurar envolvê-lo no processo. (KRIYANANDA, 2007, p.241)

Os iogues modernos entenderam rápido que, longe da tutela de uma religião moralizante (como o Hinduísmo), encontrariam mais competitividade no mercado religioso. Em outras palavras, enquanto na Índia clássica ou medieval, os iogues não precisavam disputar discípulos com muitas outras religiões, haja vista uma comunidade dividida por castas, aonde os sacerdotes estavam no topo da pirâmide social. Em modernas cidades seculares e privatizadas religiosamente, os iogues concorrem com pastores, padres, pais-de-santo, xamãs da Amazônia, terapeutas holistas e, recentemente, com educadores físicos, médicos, psicólogos, físicos quânticos, psicólogos e coaches. Esta passagem histórica de renúncia necessária ao mundo e agora, de participar dele de forma mais proselitista, se configura uma das características mais marcantes do ioga que se conhece atualmente segundo Sarah Strauss (2008, p.63-64).

Segundo estudiosos modernos, o ioga precisou aprender a lidar com os acontecimentos, principalmente os advindos do nacionalismo indiano, do ocultismo ocidental, da filosofia neo-vedanta, dos sistemas de cultura físicos modernos (DeMICHELIS, 2008, p.20), do islamismo, do cristianismo primitivo, da ciência moderna (principalmente a fisiologia e a biomedicina convencional) e do movimento religioso Nova Era (LIBERMAN, 2008, p.100-117). Este será o novo pano-de-fundo que configurará o ioga que se conhece atualmente.

Elizabeth DeMichelis salienta os pontos-chaves que facilitam a compreensão do surgimento do ioga moderno. Segundo DeMichelis (2008), desde 1600, por intermédio da Companhia das Índias Orientais, que a Índia vem estabelecendo relação com os países da Europa e América, mas é a partir de 1750 que as sociedades ocidentais voltam o seu interesse para a economia, o sistema sócio-político e a cultura indiana. Com isto, de 1830 em diante surgem debates através dos movimentos de reforma sóciorreligiosa na Índia Britânica, abrindo-se um diálogo entre os intelectuais e as autoridades sobre a anglicização da colônia.

No início do século XX, presencia-se o surgimento do movimento Nova Era e a rápida modernização das religiões asiáticas, as quais dão início a um produtivo diálogo com outras crenças e culturas, fato que continua até hoje. Entre 1914 e 1945, devido às duas grandes guerras mundiais, a disseminação das ideias modernas do ioga diminui a sua influência, sendo retomada novamente a partir da independência da Índia em 1947. Por intermédio de iogues carismáticos e convidados pela onda contracultural que acontece nos anos sessenta do século passado, várias organizações modernas do ioga se popularizam por todo o mundo. É como se aquela verve de mudança religiosa dos hatha-iogues medievais se tornasse latente mais uma vez. Após um período de certa indiferença pelo ioga na década de 1980, nos anos noventa surge uma entusiástica aculturação por uma geração de praticantes e de devotos seguidores da sua proposta espiritual e de saúde (DeMICHELIS, 2008, p.21).

O ioga postural moderno, como DeMichelis denomina o ioga do atual período histórico, no início da década de 1990, se lança no mundo, principalmente por meio das escolas de alguns iogues (leia-se “pelo pensamento deles”), entre tantos outros, como swami Vivekananda, sri Yogendra, Paramahansa Yogananda, swami Kuvalayananda, swami Sivananda e Krishnamacharya (ALTER, 2004, p.73-108; FEUERSTEIN, 2005, p.53-55; SINGLETON & BYRNE, 2008, p.17-35; p.40-74). Os métodos ioguicos mais populares e praticados modernamente se devem aos iogues mencionados acima, tendo as suas ideias edificado algumas das inúmeras escolas, tradições e organizações ioguicas espirituais no mundo atual.

Pode-se afirmar que somente as organizações ioguicas que aprenderam a fomentar e a divulgar a sua proposta ética de libertação espiritual por intermédio de pesquisas fisiológicas encontraram maior retorno de um novo público interessado em uma nova forma de viver, seja por uma consciência que busca se afastar das promessas da felicidade pelo consumo, seja pela ilusão revolucionária da ideologia de planificação social marxista e “cientificista”. Algumas destas novas formas de ioga, inclusive, se orgulham de terem artigos publicados em revistas científicas sobre os benefícios das suas práticas para a saúde serem produzidas e divulgadas nas universidades norte-americanas e européias.

A ciência, sem dúvidas, auxiliou na proposta expansionista do ioga como caminho espiritual e promotor de saúde. Os iogues modernos aprenderam a dialogar com a biomedicina; mas a ciência – para espanto de acadêmicos desavisados que apostavam na secularização do mundo -, ao invés de desencantar o ioga, serviu-lhe de veículo proselitista.


A disciplina na execução das posturas, da relação entre as técnicas de respirar, das vocalizações e das mentalizações por longo tempo, além da atitude devocional ao corpo são muito mais evidentes nos textos ioguicos do período histórico medieval dos hatha-iogues do que o anterior de Patanjali. O corpo (e a sua ascese) adquire uma natureza divina; o corpo se transforma em “templo” para o hatha-iogue. Diferente do iogue clássico, o corpo não é visto agora como um estorvo para a transcendência, mas um meio para a felicidade eterna e fim da ação dos klesas. Se os klesas podem ser traduzidos por venenos, as práticas corporais no HI transformaram-se em rituais para a purificação/desintoxicação dos efeitos nocivos dos klesas. Em suma, na eliminação dos “efeitos” intoxicantes dos comportamentos/emoções de apego, aversão, medo e orgulho.

A própria palavra corpo também vai adaptando os seus significados ao longo das cosmologias hinduístas. Em sânscrito, por exemplo, corpo pode ser designado tanto por deha, derivado do radical dih, que ao mesmo tempo em que pode significar “macular” ou “estar manchado” (ainda indicando uma forte imagem do corpo contaminado ou empecilho) ou “ungir”, como “aquilo que é untado ou investido”. Há outra expressão para corpo bem mais antiga e resgatada entre os hatha-iogues medievais, que é sharira, do radical shri, que significa “sustentar” ou “apoiar”, evidenciando que o corpo pode ser também concebido um “meio pelo qual o Self pode vivenciar o mundo” (FEUERSTEIN, 2004, p.164-165). Ghata, é outro termo para corpo, literalmente pote ou “unidade psicofísica” segundo alguns iogues (IYENGAR, 2001, p.243) e especialistas modernos em ioga (SOUTO, 2009, p.257-258).

Os textos de natureza não-dual desenvolvidos por Shankaracharya, especificamente do Vedanta Advaita, é popularizado entre os hatha-iogues. Os iogues medievais, na busca por desvencilhar-se do seu principal veneno, o klesa-Ignorância/alienação, percebem o corpo refletindo a Plenitude da alma e não a obscurecendo. Os hatha-iogues, por valorizarem mais os ritos purificatórios do que as escrituras, se impressionam menos com a compreensão “lógica” dos tratados filosóficos bramânicos e mais com a “poesia” sensorial do mundo. Eu concluo que com fase espiritual hatha-ioguica, a moral das escrituras diminuem seu valor em detrimento aos benefícios mágicos das ritualísticas corporais que eles desenvolvem em maior volume do que qualquer outro período histórico do ioga.

Essa é uma reforma espiritual importante desta etapa ioguica, pois enquanto os iogues clássicos edificaram uma ética religiosa pautada em rígidas condutas morais, os ioguesmedievais transformaram as sensações corpóreas na referência para uma boa vida. Como tudo é divino, o corpo também o é, e compreender a corporeidade significa também descobrir a espiritualidade no corpo (FEUERSTEIN, 1998, p.461-463).

Os (hatha)yogins estabeleceram que o corpo humano é homólogo ao Universo, assim, nomearam os nadis e os chackras como rios, montanhas etc. A ideia era buscar a verdade dentro de si mesmo. Se Deus está no Universo, também podemos buscá-lo dentro de nós mesmos (SOUTO, 2009, p.26).

Eliade (2001) corrobora com essa tese. Ele afirma que em certa época, talvez entre os séc.VII-XI, ocorre “uma nova revelação” entre os tântricos, os budistas, os alquimistas, os hinduístas e os hatha-iogues. Era uma revelação que não proclamavam algo de original, “mas apenas reinterpretavam as doutrinas atemporais segundo a necessidade do seu tempo”, numa espécie de síntese dos elementos religiosos em comum (p.252). Encontrar Deus agora poderia ocorrer fora dos templos e dos rituais secretos da elite sacerdotal. Há uma clara crítica ao poder centrado emu ma única casta, talvez por influência budista e muçulmana que neste período já exercia alguma força na sociedade indiana.

Uma vez o corpo saudável e forte, o hatha-iogue dá início ao despertar de uma energia suprassensível adormecida, a kundalini: descrita pela sua fisiologia sutil como uma “serpente” enrolada na base da coluna vertebral. A ascensão dessa energia sutil surge com mais ênfase nos textos medievais e, segundo as escrituras hatha-iogues, os devotos avançados conseguiriam adquirir uma gama de capacidades transfisiológicas que os qualificariam a alcancar kaivalya: a libertação espiritual final do ioga. A influência da mística sufista e budista se evidencia nesta fisiologia religiosa mais evidente entre estes iogues, pois não apenas os hatha-iogues revelavam tal descoberta religiosa, mas outras tradições como o Budismo também possuem descrições fisiológicas extraordinárias (ver USARSKI, 2009, p.43- 44).

O último sutra do tratado mais importante do HI medieval, o Hatha-Ioga Pradipika (HIP), afirma:

Hatha-Ioga Pradipika (HIP): IV.114 - Enquanto o prana não entrar em sushumna (middle channel), penetrando o Brahmarandhra [lit. porta de Brahma ou Isvara], enquanto o bindu [fluxo vital masculino] não ficar estável por pranavata (controle do movimento de prana) e a mente (citta) sob controle em meditação (contemplação), a Suprema Realidade (Brahman ou Isvara) não aparece com um estado natural da mente [citta], e falar de Jnana [conhecimento religioso] é apenas hipocrisia sem fundamento (PANCHAM SINH, 1914, p.63; SOUTO, 2009, p.238).

Os antigos manuais hatha-iogues, como na citação acima, evidenciam que o conhecimento religioso (Jnana Ioga) só poderia advir do controle do corpo. Sem a devida ascese espiritual do corpo não há conhecimento espiritual moral. Este não advém da repetição das escrituras, mas do controle fisiológico sutil. E quando digo fisiologia sutil, não me refiro aos órgãos físicos, mas energias de origem divina que transpassam os corpos do iogue. É uma crítica, repito propositadamente quase como caráter pedagógico, explícita ao clero bramânico, preso a exegese das escrituras, ao que os hatha-iogues denominam no texto de “hipocrisia sem fundamento”. Assim, não se trata de “horizontalizar” a religiosidade ioguica no plano material, mas alcançar kaivalya de forma “vertical” ou direta, assim, por outra via de libertação; sem dúvidas os iogues medievais resgataram, talvez, a parte mais hermética e mística do ioga, sem a necessidade de sacerdotes para intermediar suas ligações (“verticalizadas”) com Deus/Isvara.

O HI desenvolve, sob esta ótica mística e verticalizante do caminho ioguico, um número elevado de limpezas transfisiológicas (kriyas), posturas (ásanas), controle da respiração (pranayama), gestos e contrações musculares específicas (mudras e bandhas), inibição sensorial (pratyahara), concentração (dharana), meditação (dhyana) e êxtase ou experiência mística (samadhi), como marca da evolução na senda ioguica (FEUERSTEIN, 1998, p.471-482). O sistema de castas na Índia, segregava o alcance à kaivalya. Não é coincidência que os hatha-iogues medievais elevassem as práticas e experências corporais/pessoais em detrimento às escrituras erigidas e mantidas pela alta casta sacerdotal indiana. Mais do que ler em sânscrito ou repertório sofístico, os iogues medievais valorizavam e compreendiam as repercussões psicocorporais como ecos da alma Perfeita e Imaculada. E se esmeram na elevação moral e espiritual por esta via “mais corporal” do que intelectiva.

É sempre importante relembrar, se ainda não ficou evidente, que o ioga do sacerdote brâmane Patanjali concebia kaivalya apenas por nascimento, drogas ou educação religiosa adequada (ELIADE, 2001, p.205-209; SOUTO, 2009, p.46-50). É apenas com os iogues medievais que a fisiologia suprassensível assume papel central no êxito de seus devotos. Mesmo um indiano de casta inferior poderia iniciar um indiano de família brâmane por exemplo. Sem dúvidas este fato é uma inovação e tanto em uma sociedade estratificada.

Seja Bem-Vinde

Você adentrou um espaço em desconstrução. Desacreditamos metafísicas, por isso bricoleurs ou feiticeiros do Yoga quebrando a demanda de todo maya que lhe enfeitiça. Mas entenda, tudo é maya.

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