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Há dois agentes que atuam no microuniverso do yoga: os sacerdotes e os feiticeiros. Esses são atores criados por Max Weber para explicar a religião em qualquer sociedade. São tipos ideais, o que significa que você pode encontrar características dos dois em um único yogue por exemplo, mas sempre um deles se sobressai mais em circunstâncias específicas. O primeiro luta toda a sua vida para manter intacta a sua tradição (escrituras, práticas rituais, comunidade e experiências espirituais). Os feiticeiros não possuem tradição a preservar e vivem às custas de encantamentos e rituais de cura a seus clientes. E os clientes, ao contrário de discípulos, não estabelecem nenhuma ligação moral e dogmática. O cliente paga pelo serviço prestado, e só. O discípulo se compromete moralmente a sua tradição com a promessa da vida boa.
Enquanto o primeiro possui discípulos, o segundo estabelece clientela. Os sacerdotes buscam consagrar suas vidas a Deus e o fim é sempre acabar e/ou minimizar a dor no espírito dos seus discípulos na transcendência.
Os feiticeiros não possuem um fim Último, mas ganhar prestígio pelos poderes que desenvolvem na manipulação das forças da natureza e dos espíritos que evoca aqui mesmo na imanência - seja ensinando um mantra a Ganesa para proteção ou um encantamento a um japa-mala para prosperidade.
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Há também duas forças sociais que se mantém em dialética e que atualmente no Brasil é a pauta do dia. Uma é a força revolucionária e subversiva (“esquerda”) e a outra é a conservadora (“direita”). Elas não estão, como muitos pensam, numa guerra de qual é a certa, mas a tensão entre as duas mantém o equilíbrio social.
A primeira - revolucionária - visa romper uma estrutura social vigente para ocupar o seu lugar. Os conservadores, pelo contrário, visam reagir ao impulso dos revolucionários em prol da manutenção da estrutura vigente, e manter-se eles no poder.
Os revolucionários e conservadores podem concordar por exemplo que do jeito que está (seja educação, economia ou saúde) não está bom, mas os primeiros acreditam que é preciso começar do zero, enquanto os reacionários acham isso um exagero e que essa ação não ajudará, mas ajustes mais “reais” sem romper a tessitura social em vigor é o mais acertado.
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Patanjali há mais de 2mil anos atrás na Índia era um conservador, pois não rompeu com a estrutura social e religiosa indiana quando sistematizou o yoga. Ele reagiu provavelmente a um yoga difuso e nebuloso em práticas mágicas (provavelmente de castas inferiores às bramânicas) e teceu um sentido espiritual ao yoga com vistas à sua tradição e casta sacerdotal. Tanto é que o yoga de Patanjali foi considerado um darsana na Índia ou seja um “ponto de vista/filosofia” da religião que denominamos hoje de Hinduísmo, pautada no Vedas e constituinte ainda hoje do poder vigente. O budismo, o jainismo ou o islamismo não são darsanas, pois estão fundamentados em outras tradições religiosas, culturais e sociais. Podemos pensar (especialmente o Budismo na Índia, o Islamismo na Europa hoje em dia, assim como o Judaísmo para os egípcios) como revolucionários.
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Mil anos depois de Patanjali, por volta do século X, os indianos erigiram o Hatha Yoga da tradição dos Nathas. Os yogis nathas ou hatha-yogis escreveram, dentre outros, dois livros importantes nesta época (Hatha Yoga Pradipika e o Gheranda Samhita). O que eles traziam de novo? Sem duvidas uma valorização maior às práticas rituais corporais em detrimento ao conhecimento intelectualizado das escrituras pura e simples. Passagens dessas escrituras como “os shastras e o vedas são como prostitutas aonde todos podem acessar, mas o conhecimento do yoga está nas suas práticas” (trad.livre), demonstram uma insatisfação ao yoga vigente na Índia dessa época. Há uma crítica social e religiosa ao poder dos brâmanes - talvez por influência do próprio budismo e o tantrismo que crescia nestes tempos.
Mas percebam que esses hatha-yogis também não rompem com a sua tradição mas denunciam seus sacerdotes, os brâmanes da época por não cumprir suas partes no acordo social da estrutura de castas indianas. É assim uma reação, uma cobrança, um puxão de orelha dos yogis medievais indianos e não um movimento revolucionário como foi o budismo que condenava as castas e construiu uma cosmologia religiosa sem deuses para cultuar, e elegeram o "Vazio" e não a "Plenitude", como os Vedas. Por isso mesmo o Budismo foi expulso da Índia e o Yoga não.
No final do século XIX, durante a colonização inglesa na Índia, os yogis se mobilizam mais uma vez. Surge nessa época o nacionalismo indiano; yogis como Aurobindo e Ramakrishna se levantam frente a suposta “supremacia inglesa” frente aos indianos.
Mais uma vez os yogis reagem frente a eminente desintegração de sua estrutura social, política e religiosa. Os yogis indianos então do período moderno, buscam um meio de se “empoderar” mais uma vez e revelar a força e sabedoria em pé de igualdade à “sabedoria científica, racionalista e cristã” dos colonizadores “ocidentais”.
Durante todo o século XX o yoga flerta com a ciência biomédica e a filosofia cristã. Alguns yogis modernos se aproximam mais de um ou de outro. O swami Kuvalayananda por exemplo foi o primeiro a introduzir as posturas e pranayamas ao exame laboratorial com o ensejo de “provar” o yoga como legítimo ao saber “inglês”. Ele chegou até afirmar que desmistificaria o yoga, mas depois talvez percebendo a ingenuidade disso, afirmaria que os teístas teriam mais a ganhar com o yoga do que os ateístas.
Dessa aproximação, as escrituras do yoga foram sendo ressignificadas pela biomedicina. Ao mesmo tempo que a Ciência popularizou suas práticas e filosofia em sociedades do mundo, também veio secularizando o yoga como terapia laica ou ginástica “espiritual”.
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O yoga antes um darsana (filosofia religiosa do hinduísmo), agora distante do dossel hinduísta e de seus sacerdotes, tornou-se nebuloso e difuso, talvez igual ao tempos de Patanjali, mas na modernidade. Prato cheio, portanto, para o antagonista dos sacerdotes crescerem: os yogis-feiticeiros. Não há mal nestes personagens, mas sem a sua contraparte, descompensa o outro lado: no caso, o yoga moderno.
Os yogis modernos acabaram não revolucionando nada na verdade - mesmo porque os feiticeiros não possuem essa característica. Com apenas yogis-feiticeiros o yoga se perde moralmente falando - leia-se com isso que os valores yogis diminuíram sua força - mas conquistaram magicamente. Em nome da secularização e privatização religiosa ocidental e filosofia materialista, os yogis modernos com vistas à “liberdade” nova era, bricolam e sincretizam tudo o que tocam com aura de magia: yoga se tornou uma panaceia cura-tudo. Há uma hipervalorização da experiência pessoal e deslegitimação da cosmologia e filosofia antes pautada pelo Hinduísmo. Na ausência dos yogis-sacerdotes, o yoga moderno nas mãos de yogis-feiticeiros produzem encantamentos despidos de código moral - poucos praticantes/clientes de yoga acreditam nos valores "práticos" de obedecer yamas e niyamas por exemplo. Em outras palavras, contemporaneamente, há mais clientes do que discípulos; há muito mais magos do que sacerdotes no microuniverso yogico moderno. E o mercado moldou o yoga moderno para vender o que os clientes desejam comprar.
Um reflexo disso é a dificuldade que os próprios yogis modernos encontram hoje em definir o yoga. Cada um tem uma resposta pronta. Antes, sob tutela sacerdotal seu objetivo era claro: fim transcendente de todas as dores humanas que Patanjali estabelecera como advindas dos klesas (ignorância, apego, aversão, medo da morte e egoísmo). Hoje? Uma mistura entre terapia laica, técnica para aumento da performance psicofísica e aula de localizada temática “oriental”. Mas será isso mesmo? Aposto aqui que houve uma ressignificação simbólica dos valores do yoga à luz da biomedicina científica.
Patanjali, no século II a.C. na Índia, mostrara o caminho para o fim do sofrimento espiritual: asthanga ou senda espiritual óctupla, aonde por exemplo, o último dos valores que deveriam ser obedecidos era a entrega total e consagração da vida yogi a Deus (Isvara). Qual yogi ou praticante faz isso hoje? Quase nenhum (ao menos às claras), pois quase todos os yogis modernos, criados por feiticeiros, são avessos a qualquer aproximação de compromisso mestre-discípulo: “sou yogi até que precise me comprometer com algo, pois sou livre”. Pois, acreditando-se “livre”, desejam ser tudo, mas quanto mais mergulham sozinhos, percebem-se o Nada que são - acreditando ser Plenos. Não é fruto do acaso a crescente de depressão que assola os habitantes dos grandes centros urbanos aonde o yoga ganhou força no mundo moderno.
Em meados de 2016 para minha tese de doutoramento perguntei a 10 eminentes yogis brasileiros (mas poderia ter sido de qualquer lugar do mundo - talvez até na Índia) quais as causas do sofrimento humano segundo o yoga e nenhum citou os klesas (2 apenas citaram, cada um, 1 klesa). Todos responderam em uníssono o "estresse". Isso demonstra que a tradição filosófica e religiosa do yoga como darsana hinduísta, e antes sustentado por sacerdotes brâmanes, se enfraqueceu. Em outras palavras, os yogis-sacerdotes perderam a sua força de coesão social no yoga globalizado que vivem em sociedades secularizadas e privatizadas religiosamente/espiritualmente.
Os yogis modernos e, consequentemente os seus praticantes, se orgulham e esbravejam que o yoga visa a liberdade. E se esquecem que de nada adianta (mesmo que fosse verdade) estar liberto se não tem (ou se sabe) para onde ir. Estão todos livres, sim, mas em samsara: o local do sofrimento na mítica yoguica.
Yogabeer, GanjaYoga, PetYoga são apenas alguns exemplos de que estamos vivendo hoje uma época do yoga sob o comando de feiticeiros e não de mestres ou sacerdotes do yoga. Todos se sentem autorizados a pensar sobre yoga, pois a tradição do yoga quando transplantada da estrutura sacerdotal indiana para sociedades laicizadas se “relativizou”. Os sacerdotes foram substituídos por feiticeiros; na sua maioria buscando a eficácia simbólica de sua magia embebida de pseudociência como de F.Capra e A.Goswami: a magia do yoga, antes envolta nos mitos ancestrais do Hinduísmo indiano, hoje tecem legitimidade por cientistas-gurus. O mito hoje é o da Ciência Moderna.
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Os valores do yoga, as práticas corporais, os deuses e as escrituras... tudo foi relativizado em nome da “liberdade” nova era. Sim, os feiticeiros modernos do yoga estão transformando o yoga sem a reação dos sacerdotes, pois estes não tiveram tempo e força ainda de se organizarem nestes 100 anos (1900-2000) em sociedades não-indianas.
O yogi-feiticeiro filho da Nova Era, não se sente confortável em possuir um mestre, pelo menos por muito tempo. Mas isso faz sentido, pois os feiticeiros não possuem força de coesão social como os sacerdotes. Dessa forma, não podemos esperar dos yogis-feiticeiros que constituam uma unidade organizada em valores no yoga. Apenas aos yogis-sacerdotes, isso é possível, pois estes visam conservar sua tradição e nunca inova-la. É só ver em como os yogis-feiticeiros batem em Prem Baba e outros que se intitulam como yoggi-sacerdotes. Os clientes dos feiticeiros tem ganhado em número e voz dos discípulos dos sacerdotes. Mas a ala mais conversadora do yoga (ao menos no Brasil) vem ganhando força; assista ao número crescente de cursos de sânscrito e a busca "natural" de retorno à tradição do yoga via Vedanta que ocorre atualmente. É isso tudo, pois com o excesso de subversão vem a perda da fé no yoga como reduto de sentido para vida. Com os feiticeiros e os cientistas-gurus veio uma certa esperança em buscar a 'salvação" pela ciência, mas a Ciência não produz sentido de vida para ninguém e os feitiços e encantamentos possuem sua eficácia mágica pontual. Isso só as filosofias religiosas conseguem. E os magos não são filósofos.
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Enquanto os sacerdotes do yoga visam a Liberação em vidas das aflições humanas (kaivalya) aos seus alunos ou discípulos; os feiticeiros do yoga prometem um corpo forte, sem doenças, relaxado e alongado para um fim imediato, como aumento da performance humana ou reequilibrar as forças prânicas para algum benefício imediato. O yoga laico cultua divindades da Calma e fim do estresse, enquanto o yoga para o espírito promete o fim do sofrimento.
Viver o momento presente, como proclamam os yogis-feiticeiros é cultuar Samsara. Os yogis feiticeiros-subversivos sozinhos (sem a sua contraparte, os sacerdotes-conservadores) podem desarticular o yoga como unidade autônoma: em uma hora de prática mágica com vistas a manipulação energética e das forças da natureza, só trazem experiências sensoriais que aliviam as dores espirituais momentaneamente, quase como um exorcismo do estresse e das dores nas costas devido ao desequilíbrio dos chakras e/ou prana. Sentindo falta de algo a mais (os valores do yoga de buscam para reger suas vidas), os clientes do yoga buscam preencher esse vazio com a cabala, o sufismo e a astrologia por exemplo.
O praticante/yogi espontâneo diz: “O yoga é um produto que você consome e não uma religião que você adere”. No fundo, o yogi/praticante cliente-da-rua moderno vive uma mistura simbiótica entre o medo e a ansiedade por algo rápido, instantâneo que o cure. E qualquer adesão verdadeira a uma filosofia de vida (espiritual ou materialista) demanda tempo e esforço, e são poucos yogis modernos com coragem para esse salto - estão todos com medo de serem passados para trás como nos casos conhecidos de falsos sacerdotes. Com esse medo e ansiedade ao mesmo tempo de sentido verdadeiro para o yoga que valorizam tanto, preferem vagar como errantes de workshop em workshop em sensações de "bem-estar espiritual", e se comportam como clientes que compram a cura de suas mazelas em um mercado aberto do yoga.
Mas há mal nisso? Não, claro que não. Os feiticeiros sempre continuarão a oferecer seus serviços. O que saliento neste ensaio é o engodo do feiticeiro se passar por sacerdote carregado de moral que não possui. Sempre haverão feiticeiros comercializando seus serviços encantados, mas o que sinto falta são de yogis-sacerdotes de verdade. Onde eles estão?