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Há dois agentes que atuam no microuniverso do yoga: os sacerdotes e os feiticeiros. Esses são atores criados por Max Weber para explicar a religião em qualquer sociedade. São tipos ideais, o que significa que você pode encontrar características dos dois em um único yogue por exemplo, mas sempre um deles se sobressai mais em circunstâncias específicas. O primeiro luta toda a sua vida para manter intacta a sua tradição (escrituras, práticas rituais, comunidade e experiências espirituais). Os feiticeiros não possuem tradição a preservar e vivem às custas de encantamentos e rituais de cura a seus clientes. E os clientes, ao contrário de discípulos, não estabelecem nenhuma ligação moral e dogmática. O cliente paga pelo serviço prestado, e só. O discípulo se compromete moralmente a sua tradição com a promessa da vida boa.

Enquanto o primeiro possui discípulos, o segundo estabelece clientela. Os sacerdotes buscam consagrar suas vidas a Deus e o fim é sempre acabar e/ou minimizar a dor no espírito dos seus discípulos na transcendência.

Os feiticeiros não possuem um fim Último, mas ganhar prestígio pelos poderes que desenvolvem na manipulação das forças da natureza e dos espíritos que evoca aqui mesmo na imanência - seja ensinando um mantra a Ganesa para proteção ou um encantamento a um japa-mala para prosperidade.

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Há também duas forças sociais que se mantém em dialética e que atualmente no Brasil é a pauta do dia. Uma é a força revolucionária e subversiva (“esquerda”) e a outra é a conservadora (“direita”). Elas não estão, como muitos pensam, numa guerra de qual é a certa, mas a tensão entre as duas mantém o equilíbrio social.

A primeira - revolucionária - visa romper uma estrutura social vigente para ocupar o seu lugar. Os conservadores, pelo contrário, visam reagir ao impulso dos revolucionários em prol da manutenção da estrutura vigente, e manter-se eles no poder.

Os revolucionários e conservadores podem concordar por exemplo que do jeito que está (seja educação, economia ou saúde) não está bom, mas os primeiros acreditam que é preciso começar do zero, enquanto os reacionários acham isso um exagero e que essa ação não ajudará, mas ajustes mais “reais” sem romper a tessitura social em vigor é o mais acertado.

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Patanjali há mais de 2mil anos atrás na Índia era um conservador, pois não rompeu com a estrutura social e religiosa indiana quando sistematizou o yoga. Ele reagiu provavelmente a um yoga difuso e nebuloso em práticas mágicas (provavelmente de castas inferiores às bramânicas) e teceu um sentido espiritual ao yoga com vistas à sua tradição e casta sacerdotal. Tanto é que o yoga de Patanjali foi considerado um darsana na Índia ou seja um “ponto de vista/filosofia” da religião que denominamos hoje de Hinduísmo, pautada no Vedas e constituinte ainda hoje do poder vigente. O budismo, o jainismo ou o islamismo não são darsanas, pois estão fundamentados em outras tradições religiosas, culturais e sociais. Podemos pensar (especialmente o Budismo na Índia, o Islamismo na Europa hoje em dia, assim como o Judaísmo para os egípcios) como revolucionários.

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Mil anos depois de Patanjali, por volta do século X, os indianos erigiram o Hatha Yoga da tradição dos Nathas. Os yogis nathas ou hatha-yogis escreveram, dentre outros, dois livros importantes nesta época (Hatha Yoga Pradipika e o Gheranda Samhita). O que eles traziam de novo? Sem duvidas uma valorização maior às práticas rituais corporais em detrimento ao conhecimento intelectualizado das escrituras pura e simples. Passagens dessas escrituras como “os shastras e o vedas são como prostitutas aonde todos podem acessar, mas o conhecimento do yoga está nas suas práticas” (trad.livre), demonstram uma insatisfação ao yoga vigente na Índia dessa época. Há uma crítica social e religiosa ao poder dos brâmanes - talvez por influência do próprio budismo e o tantrismo que crescia nestes tempos.

Mas percebam que esses hatha-yogis também não rompem com a sua tradição mas denunciam seus sacerdotes, os brâmanes da época por não cumprir suas partes no acordo social da estrutura de castas indianas. É assim uma reação, uma cobrança, um puxão de orelha dos yogis medievais indianos e não um movimento revolucionário como foi o budismo que condenava as castas e construiu uma cosmologia religiosa sem deuses para cultuar, e elegeram o "Vazio" e não a "Plenitude", como os Vedas. Por isso mesmo o Budismo foi expulso da Índia e o Yoga não.

No final do século XIX, durante a colonização inglesa na Índia, os yogis se mobilizam mais uma vez. Surge nessa época o nacionalismo indiano; yogis como Aurobindo e Ramakrishna se levantam frente a suposta “supremacia inglesa” frente aos indianos.

Mais uma vez os yogis reagem frente a eminente desintegração de sua estrutura social, política e religiosa. Os yogis indianos então do período moderno, buscam um meio de se “empoderar” mais uma vez e revelar a força e sabedoria em pé de igualdade à “sabedoria científica, racionalista e cristã” dos colonizadores “ocidentais”.

Durante todo o século XX o yoga flerta com a ciência biomédica e a filosofia cristã. Alguns yogis modernos se aproximam mais de um ou de outro. O swami Kuvalayananda por exemplo foi o primeiro a introduzir as posturas e pranayamas ao exame laboratorial com o ensejo de “provar” o yoga como legítimo ao saber “inglês”. Ele chegou até afirmar que desmistificaria o yoga, mas depois talvez percebendo a ingenuidade disso, afirmaria que os teístas teriam mais a ganhar com o yoga do que os ateístas.

Dessa aproximação, as escrituras do yoga foram sendo ressignificadas pela biomedicina. Ao mesmo tempo que a Ciência popularizou suas práticas e filosofia em sociedades do mundo, também veio secularizando o yoga como terapia laica ou ginástica “espiritual”.

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O yoga antes um darsana (filosofia religiosa do hinduísmo), agora distante do dossel hinduísta e de seus sacerdotes, tornou-se nebuloso e difuso, talvez igual ao tempos de Patanjali, mas na modernidade. Prato cheio, portanto, para o antagonista dos sacerdotes crescerem: os yogis-feiticeiros. Não há mal nestes personagens, mas sem a sua contraparte, descompensa o outro lado: no caso, o yoga moderno.

Os yogis modernos acabaram não revolucionando nada na verdade - mesmo porque os feiticeiros não possuem essa característica. Com apenas yogis-feiticeiros o yoga se perde moralmente falando - leia-se com isso que os valores yogis diminuíram sua força - mas conquistaram magicamente. Em nome da secularização e privatização religiosa ocidental e filosofia materialista, os yogis modernos com vistas à “liberdade” nova era, bricolam e sincretizam tudo o que tocam com aura de magia: yoga se tornou uma panaceia cura-tudo. Há uma hipervalorização da experiência pessoal e deslegitimação da cosmologia e filosofia antes pautada pelo Hinduísmo. Na ausência dos yogis-sacerdotes, o yoga moderno nas mãos de yogis-feiticeiros produzem encantamentos despidos de código moral - poucos praticantes/clientes de yoga acreditam nos valores "práticos" de obedecer yamas e niyamas por exemplo. Em outras palavras, contemporaneamente, há mais clientes do que discípulos; há muito mais magos do que sacerdotes no microuniverso yogico moderno. E o mercado moldou o yoga moderno para vender o que os clientes desejam comprar.

Um reflexo disso é a dificuldade que os próprios yogis modernos encontram hoje em definir o yoga. Cada um tem uma resposta pronta. Antes, sob tutela sacerdotal seu objetivo era claro: fim transcendente de todas as dores humanas que Patanjali estabelecera como advindas dos klesas (ignorância, apego, aversão, medo da morte e egoísmo). Hoje? Uma mistura entre terapia laica, técnica para aumento da performance psicofísica e aula de localizada temática “oriental”. Mas será isso mesmo? Aposto aqui que houve uma ressignificação simbólica dos valores do yoga à luz da biomedicina científica.

Patanjali, no século II a.C. na Índia, mostrara o caminho para o fim do sofrimento espiritual: asthanga ou senda espiritual óctupla, aonde por exemplo, o último dos valores que deveriam ser obedecidos era a entrega total e consagração da vida yogi a Deus (Isvara). Qual yogi ou praticante faz isso hoje? Quase nenhum (ao menos às claras), pois quase todos os yogis modernos, criados por feiticeiros, são avessos a qualquer aproximação de compromisso mestre-discípulo: “sou yogi até que precise me comprometer com algo, pois sou livre”. Pois, acreditando-se “livre”, desejam ser tudo, mas quanto mais mergulham sozinhos, percebem-se o Nada que são - acreditando ser Plenos. Não é fruto do acaso a crescente de depressão que assola os habitantes dos grandes centros urbanos aonde o yoga ganhou força no mundo moderno.

Em meados de 2016 para minha tese de doutoramento perguntei a 10 eminentes yogis brasileiros (mas poderia ter sido de qualquer lugar do mundo - talvez até na Índia) quais as causas do sofrimento humano segundo o yoga e nenhum citou os klesas (2 apenas citaram, cada um, 1 klesa). Todos responderam em uníssono o "estresse". Isso demonstra que a tradição filosófica e religiosa do yoga como darsana hinduísta, e antes sustentado por sacerdotes brâmanes, se enfraqueceu. Em outras palavras, os yogis-sacerdotes perderam a sua força de coesão social no yoga globalizado que vivem em sociedades secularizadas e privatizadas religiosamente/espiritualmente.

Os yogis modernos e, consequentemente os seus praticantes, se orgulham e esbravejam que o yoga visa a liberdade. E se esquecem que de nada adianta (mesmo que fosse verdade) estar liberto se não tem (ou se sabe) para onde ir. Estão todos livres, sim, mas em samsara: o local do sofrimento na mítica yoguica.

Yogabeer, GanjaYoga, PetYoga são apenas alguns exemplos de que estamos vivendo hoje uma época do yoga sob o comando de feiticeiros e não de mestres ou sacerdotes do yoga. Todos se sentem autorizados a pensar sobre yoga, pois a tradição do yoga quando transplantada da estrutura sacerdotal indiana para sociedades laicizadas se “relativizou”. Os sacerdotes foram substituídos por feiticeiros; na sua maioria buscando a eficácia simbólica de sua magia embebida de pseudociência como de F.Capra e A.Goswami: a magia do yoga, antes envolta nos mitos ancestrais do Hinduísmo indiano, hoje tecem legitimidade por cientistas-gurus. O mito hoje é o da Ciência Moderna.

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Os valores do yoga, as práticas corporais, os deuses e as escrituras... tudo foi relativizado em nome da “liberdade” nova era. Sim, os feiticeiros modernos do yoga estão transformando o yoga sem a reação dos sacerdotes, pois estes não tiveram tempo e força ainda de se organizarem nestes 100 anos (1900-2000) em sociedades não-indianas.

O yogi-feiticeiro filho da Nova Era, não se sente confortável em possuir um mestre, pelo menos por muito tempo. Mas isso faz sentido, pois os feiticeiros não possuem força de coesão social como os sacerdotes. Dessa forma, não podemos esperar dos yogis-feiticeiros que constituam uma unidade organizada em valores no yoga. Apenas aos yogis-sacerdotes, isso é possível, pois estes visam conservar sua tradição e nunca inova-la. É só ver em como os yogis-feiticeiros batem em Prem Baba e outros que se intitulam como yoggi-sacerdotes. Os clientes dos feiticeiros tem ganhado em número e voz dos discípulos dos sacerdotes. Mas a ala mais conversadora do yoga (ao menos no Brasil) vem ganhando força; assista ao número crescente de cursos de sânscrito e a busca "natural" de retorno à tradição do yoga via Vedanta que ocorre atualmente. É isso tudo, pois com o excesso de subversão vem a perda da fé no yoga como reduto de sentido para vida. Com os feiticeiros e os cientistas-gurus veio uma certa esperança em buscar a 'salvação" pela ciência, mas a Ciência não produz sentido de vida para ninguém e os feitiços e encantamentos possuem sua eficácia mágica pontual. Isso só as filosofias religiosas conseguem. E os magos não são filósofos.

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Enquanto os sacerdotes do yoga visam a Liberação em vidas das aflições humanas (kaivalya) aos seus alunos ou discípulos; os feiticeiros do yoga prometem um corpo forte, sem doenças, relaxado e alongado para um fim imediato, como aumento da performance humana ou reequilibrar as forças prânicas para algum benefício imediato. O yoga laico cultua divindades da Calma e fim do estresse, enquanto o yoga para o espírito promete o fim do sofrimento.

Viver o momento presente, como proclamam os yogis-feiticeiros é cultuar Samsara. Os yogis feiticeiros-subversivos sozinhos (sem a sua contraparte, os sacerdotes-conservadores) podem desarticular o yoga como unidade autônoma: em uma hora de prática mágica com vistas a manipulação energética e das forças da natureza, só trazem experiências sensoriais que aliviam as dores espirituais momentaneamente, quase como um exorcismo do estresse e das dores nas costas devido ao desequilíbrio dos chakras e/ou prana. Sentindo falta de algo a mais (os valores do yoga de buscam para reger suas vidas), os clientes do yoga buscam preencher esse vazio com a cabala, o sufismo e a astrologia por exemplo.

O praticante/yogi espontâneo diz: “O yoga é um produto que você consome e não uma religião que você adere”. No fundo, o yogi/praticante cliente-da-rua moderno vive uma mistura simbiótica entre o medo e a ansiedade por algo rápido, instantâneo que o cure. E qualquer adesão verdadeira a uma filosofia de vida (espiritual ou materialista) demanda tempo e esforço, e são poucos yogis modernos com coragem para esse salto - estão todos com medo de serem passados para trás como nos casos conhecidos de falsos sacerdotes. Com esse medo e ansiedade ao mesmo tempo de sentido verdadeiro para o yoga que valorizam tanto, preferem vagar como errantes de workshop em workshop em sensações de "bem-estar espiritual", e se comportam como clientes que compram a cura de suas mazelas em um mercado aberto do yoga.

Mas há mal nisso? Não, claro que não. Os feiticeiros sempre continuarão a oferecer seus serviços. O que saliento neste ensaio é o engodo do feiticeiro se passar por sacerdote carregado de moral que não possui. Sempre haverão feiticeiros comercializando seus serviços encantados, mas o que sinto falta são de yogis-sacerdotes de verdade. Onde eles estão?


É muito comum yogis brasileiros confundirem o conceito de avidya (ignorância) com o de maya (ilusão). Eles não são a mesma coisa e nem excludentes, pelo contrário, podem ser interpretados como complementares. Sim, a vida é uma ilusão e por isso sofremos. Tanto aos cristãos quanto os yogis, o leigo (lit.ignorante) é aquele que vive a vida como se não houvesse nada mais além da realidade cotidiana. E este é ponto: ninguém deveria buscar a Verdade, mas compreender as ilusões que fazem sentido para a sua vida. Por isso, o yoga não almeja o fim da ilusão, mas o da ignorância. Em posse de vidya (lit.conhecimento cognitivo), o yogi obtém primeiro a convicção da existência de maya como inerente a vida e não a sua destruição. Alguém sem maya é um des-iludido: sem o poder criativo da vida. Leia o que o Tattvabodhah diz a respeito disso:

Atma (a Consciência), com o condicionamento de ignorância [avidya], é chamado jiva (o indivíduo).

Atma (a Consciência), com o condicionamento de maya (a ignorância total), é chamado Isvara [Deus]. (ARIERA, G. 2006. Tattvabodhah: o conhecimento da verdade. Rio de Janeiro: Vidya-Mandir Ed. p.97)

Em des-ilusão, ou seja, sem o poder de maya estão todos os homens e mulheres que perderam – ou nunca adquiriram? – o poder criativo que Isvara (ou algo similar) possui. Um depressivo vive sem maya, totalmente des-iludido. Ele carece de ilusões; chega-se até mesmo receitar “ilusões” em pílulas para ele, haja a vista os mecanismos de ação das vias serotoninérgicas – principal química dos anti-depressivos. A vida do depressivo se apresenta de imediato (como dizia Kiekergaard), ou seja, sem reflexão, sem conhecimento; em suma, em avidya (ignorância). Alguém em depressão estão tão consciente da brutalidade trágica da vida real que se apequena diante dela e se enraivece (os depressivos possuem uma carga de violência que não se externa mas se volta para si mesmo). É necessário coragem de um herói para buscar (alguns constroem, mas a grande massa segue mesmo) um sentido para a sua vida. Um depressivo é sem Graça (carente do “maravilhamento” da vida).

A vida neurótica, em contraparte, é recheada de ilusões, mas também ignorante. Tantas e diversas ilusões tomam conta de sua vida que o enredam em rituais cada vez mais elaborados que o impedem (e os outros ao seu entorno) de viver livremente. O neurótico, por exemplo, para conseguir vencer o peso cruel da realidade nua e crua pode chegar a lavar tantas vezes as suas mãos que as fazem sangrar, pode também utilizar três rolos de papel higiênico sempre que visita o toalete ou ainda pode se ver “obrigado” a refazer do início o trajeto do trabalho para casa, sempre que sentir “perder” as contas do número de postes de luz da rua.

Há, entretanto, neuroses que todos nós desenvolvemos ao longo da nossa existência mas que não são incapacitantes. Pelo contrário, nos trazem sentido e garantem uma vida feliz, saudável e para alguns, a imortalidade. E compreenda que não estou sendo cínico. Rituais como entrar com o pé direito, conferir as trancas da janela do apartamento no 22o andar antes de dormir todos os dias ou sair sempre pela mesma porta que entrou, são neuroses que não incapacitam ninguém de viver bem. Elas podem ter sido “adotadas” como repressores benfazejos para as mais profundas dores da alma e não há porque “removê-las”. São elas o que James Hillman denomina de “ficções que curam”. Dentre as ilusões saudáveis que produzimos ou adotamos há as “neuroses” mais sofisticadas, pois foram instituídas culturalmente e que nenhuma sociedade conseguiu até hoje eliminar, apenas substituir ou adaptar. Alguns sóciobiólogos chegam até a afirmar que seriam elas constituintes de heranças genéticas ancestrais que nos garantiriam a sobrevivência da espécie: são elas as religiões ou espiritualidades.

Comungar todo domingo na missa cristã, fechar o corpo entre os umbandistas, receber o passe mediúnico entre os espíritas ou realizar diariamente uma espécie de alongamentos misturados com cânticos a deuses de quatro braços ou cabeça de elefante não são exatamente comportamentos sem um grau elevado de maya, ilusão ou neurose. E, repito, não estou sendo cínico ou sarcástico! O intuito aqui não está em brincar com as crenças ou revelar destemperos, mas indicar que o yoga não visa o fim de maya, mas de avidya.

No caminho espiritual do yoga em vistas a liberação final (kaivalya), os yogis em posse de vidya (conhecimento) - obtidos por suas práticas introspectivas, leitura das escrituras, assim como diálogos com seus gurus - precisam adentrar no mistério de maya e não destruí-lo! Mas, todavia, é necessário que a ilusão adotada ou criada faça sentido a sua vida e forneça ao yogi e a sua comunidade (e isso é importantíssimo), respostas as mais profundas agruras da vida cotidiana.

A ignorância total é chamada Maya. Devido a ela, a pura Consciência torna-se a causa do Universo (Id.).

O conhecimento espiritual do yoga (vidya) está em compreender esse jogo cósmico (lila) entre maya e avidya e cair de joelhos (render-se, lit. redenção aos cristãos ou kaivalya entre os yogis) ao infindável da existência que ninguém consegue transmitir pela linguagem humana, por isso cunhou esse vislumbre da alma como Deus, Isvara ou Nirvana. Aos seres humanos foi preciso erigir uma conceituação nova, algo sem comparativos para nos libertar da realidade materialista chata (de achatada), pois Verdade mesmo é compreender que ela também é uma ilusão, uma brincadeira (lit.lila) d’Deus, mas que humilda aos homens e mulheres e fornece (essa ilusão divina) força para que consigamos levantar da cama todos os dias e não nos apequenarmos com a tragédia da vida.



Segundo Marcel Mauss, a magia pode ser definida por um complexo social e espiritual que envolve agentes, rituais e representações. Os feiticeiros, por seu turno, são todos aqueles atores principais dos rituais mágicos.

Os rituais mágicos, por sua vez, são atos que pertencem a uma tradição e se repetem; assim a sua eficácia mágica depende que todo o grupo social acredite nos feiticeiros de suas tribos, e no mitos narrativos erigidos ou mantidos por eles.

Todavia, não é qualquer um do grupo social que seja ou possa vir a ser considerado um feiticeiro. Há uma série de características hereditárias, comportamentais, físicas, prescrições dietéticas, além de outras, que podem e vão definir os feiticeiros autorizados pela tradição do grupo social.

Um feiticeiro, portanto, é uma pessoa extraordinária. O seu corpo nasce ou adquire, igualmente, uma fisiologia extraordinária (MAUSS, As técnicas do corpo, p.399-422).

Bastantes vezes, é exatamente [o mago] porque deixa de o estar [em seu estado normal] que se encontra em posição de atuar com bons resultados. Observou interdições alimentares ou sexuais, jejuou, sonhou, executou este ou aquele gesto preliminar, sem contar que, nem que seja por um só instante, o rito fez dele um homem diferente.

Os elementos de uma sociedade secreta [de magos], pelo fato de se terem submetido a uma iniciação, podem também sentir-se dotados de poderes mágicos. (Id., p.62-63)

Um feiticeiro, através de suas práticas rituais corporais desenvolve poderes que transcendem o funcionamento dito natural (são trans-fisiológicos): como viajar para o mundo dos espíritos ou curar doenças.

Quando alguém doente é levado ao feiticeiro, este - seja por ingestão de alimentos, beberagens, inalações ou jejuns, gestos e/ou danças, confecção de amuletos para proteção e/ou emanação de energias, cantos e/ou músicas rítmicas - almeja, em objetivo último, restaurar a saúde, portanto, a (trans)fisiologia do paciente (orgânica e espiritual) a níveis ótimos.

Em outras palavras, a eficácia mágica da cura se dará apenas quando o feiticeiro – dentro da cosmologia do seu grupo e tradição - transformar ou manipular os corpos do enfermo na remoção do que o aflige - seja um espírito da floresta que provoca febre alta ou a má circulação energética de prana pelos chackras.

Pense em um ameríndio distante que nunca viu um "homem-branco". O indígena dança em torno da fogueira há séculos (por tradições) na quinta lua cheia após o solstício de verão para melhorar a sua colheita (sei lá, inventei isso). E as vezes esse ritual, guiados pelo xamã da tribo, não produz uma boa colheita aquele ano; mas, explica o feiticeiro para tribo, que havia uma virgem no seu ciclo justamente no dia da oferenda ou houve a violação de qualquer outro signo que não poderia. Mas pense que um dia um engenheiro chega a tribo e explica a eles que a chuva não ocorre por dançar em torno da fogueira, mas pela condensação da água (e até a Maju veio para explicar o efeito El Nino). Essa tribo tem 3 possibilidades: 1) mata o engenheiro e com ele toda a outra cosmologia contrária a deles; 2) destrói a sua própria tradição e adota a narrativa explicativa do mundo do estrangeiro; ou (a favorita dos brasileiros) sincretiza tudo e cria uma nova ordenação da realidade.

Pois bem, até aqui a maioria de quem está lendo entende a visão cosmológica dos indígenas como ultrapassada e a do engenheiro como verdadeira. Os ameríndios brasileiros, como outro exemplo, entende que todos os seres vivos existentes são humanos, mas alguns vestidos de humanos enquanto outros de onça ou macaco, mas todos são humanos. É sem dúvidas uma perspectiva do mundo bem diferente da minha ou da sua, mas como você pode "provar" que a sua é correta, ou seja, que somos animais conscientes e um macaco é um só um macaco mesmo e não um humano consciente, literalmente, vestido com pele de outro animal?.

Tudo bem, entendi, mas e daí com os yogis? Bem, se você acha que essa história não vigora é apenas uma parte da história "primitiva" dos seres humanos, entenda que ela age agora. Quando os yogis indianos da virada do século XIX para o XX resolve transplantar o seu yoga (uma filosofia religiosa do hinduísmo, portanto, embebido até a alma da cosmologia hinduísta), precisou encarar outros "ordenadores de realidade" (como o indígena do nosso exemplo com o fictício engenheiro). E os yogis indianos do período histórico moderno adotam a "malandragem" brasileira e sincretizam sua visão de mundo com a dos "ocidentais". Em outra palavras, o yoga flerta com a biomedicina.

Quando um praticante/yogi moderno realiza posturas, com respiratórios específicos, canta mantras para divindades fora do escopo espiritual cristão (portanto, pagãs), realiza oferendas para mestres yogis indianos com limpezas que visam obstruir canais energéticos não visíveis pela anatomia orgânica, sem dúvidas denota estar envolvido por uma "nova" perspectiva da realidade.

E qual o foco das práticas rituais de yoga modernas se não aumentar o prana/energética transfisiológica para sanar e/ou se proteger de doenças? As doenças para os yogis (haja vista o discurso de Hermógenes e outros) é mais do que um corpo físico infectado por um vírus ou bactéria. A própria pneumonia ou um câncer ganha o status de "elevação espiritual" para o yogi moderno. Dessa forma, eu lícito pensar nos yogis modernos como "curandeiros modernos", pois eles atuam na sociedade/tribo ocidental de forma bastante contundente trazendo possibilidade de cura que está além da visão biomédica convencional. Ele se mescla (sincretizado espiritualmente mesmo, assim como o espiritismo e a umbanda, ou mesmo o Santo Daime, todos religiões terapêuticas) com a perspectiva da biomedicina criando uma nova cosmologia, a cosmologia yoguica moderna.

Seja Bem-Vinde

Você adentrou um espaço em desconstrução. Desacreditamos metafísicas, por isso bricoleurs ou feiticeiros do Yoga quebrando a demanda de todo maya que lhe enfeitiça. Mas entenda, tudo é maya.

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