top of page
Buscar

Introdução

Vivemos em uma sociedade do cansaço. O tempo é escasso e ninguém se permite a perde-lo. Parece que se vive constantemente em apneia. A alegoria parece exagerada, mas a respiração curta, como reflexo fisiológico, acarreta menor captação de oxigênio do ambiente e a percepção é de total esgotamento físico. Não é coincidência também a resposta trivial a uma pergunta bastante proferida no dia-a-dia: Como é que você está? Está fazendo o quê? O seu dia hoje, como o sente? A resposta é quase (obrigatoriamente) sempre a mesma (e com certo orgulho em alguns núcleos sociais): Na correria!

Com isso, estamos contraindo doenças manifestas não por agentes físicos, como um vírus ou bactérias, mas por agentes mentais ou subjetivos. Enquanto as primeiras podemos identificar com microscópios e outras máquinas da medicina moderna como ressonantes magnéticos e tomógrafos por emissão de pósitrons, agentes mentais ou subjetivos não há como combate-los mesmo com toda a tecnologia disponível. A ansiedade, a síndrome de burn-out (esgotamento ou “estresse”), o transtorno de déficit de atenção e a depressão ecoam fisicamente, não há dúvidas, por outro lado, é impossível aloca-las em um tubo de ensaio como o fazemos com o vírus da influenza dissipador da gripe. Desenvolvemos medicamentos para combater apenas os efeitos secundários (ecos corporais) destas mazelas metafísicas, mas o aniquilamento de algo não-material nunca poderá decorrer (definitivamente) via medicamentosa; ela requer uma resposta criativa, amorosa e da mesma natureza sutil de sua manifestação.

Mente-Corpo influenciando um a outro

Para estas doenças metafísicas (ou da alma), a abordagem psicanalítica de Sigmund Freud revoluciona os tratamentos médicos quando inclui o diálogo como remédio. Freud para lidar com doenças não-físicas cria uma novo complexo de conceitos (igualmente metafísicos), como id, ego, super-ego e a ideia do recalque para combater os fantasmas da mente. Os recalques, como a própria psicanálise freudiana denomina, são defesas mentais contra ideias contrárias ao nosso eu; estes funcionariam como uma espécie de “autoproteção” ou o “sistema imunológico” do corpo mental. O problema é que os pensamentos recalcados podem voltar a superfície da consciência como doenças mentais (mesmo que manifestas no corpo e/ou comportamentais). A interpretação dos sonhos foi uma estratégia freudiana para acessar a esse recalques e ajudar seus pacientes a lidarem melhor com a suas próprias dificuldades na vida.

Entretanto, é efetivamente com um de seus discípulos, W.Reich, que o corpo começa a ser ouvido e não apenas percebido como um receptáculo inerte dos conteúdos mentais. W.Reich põe o movimento corporal em dialética com as agruras de nossas almas. Ele percebe que se poderia abreviar anos da psicanálise exclusivamente verbal por abordagens corporais, quando incluído determinadas técnicas respiratórias, musculares e de relaxamento associadas com o direcionar da atenção para o conteúdo inconsciente advindos dessas manipulações fisiológicas. Ele observou que determinadas áreas corporais apresentavam-se, em alguns de seus pacientes, demasiadamente contraídas (ou crônicas) e, que quando relaxadas, traziam à tona os recalques, ou seja, as feridas da alma deslocadas para um espaço não consciente, pois “feriam” a constituição psíquica (imaterial/subjetiva) do eu daquele indivíduo. Ele denominou essas específicas áreas corporais/musculares, cronicamente contraídas, de “couraças neuromusculares do caráter”.

A proposta psicanalítica reichiana sugeria identificar o problema que trazia o paciente até seu consultório, depois observar o caminhar, o respirar, os gestos e a postura em si deste indivíduo. Desta observação corporal identificava-se as couraças musculares e recomendava exercícios de “soltura” e relaxamento apropriados. Quando isto alcançado, se iniciaria o diálogo sobre o conteúdo advindo à consciência. O interessante desta perspectiva psicanalítica é a sua naturalidade. E exemplos não faltam.

Se observarmos meninos pré-púberes brincando nas quadras esportivas e pátios escolares é fácil constatar como um testa a força do outro, mas sobretudo, como é evidente a tentativa de superação da dor nas brincadeiras de socar o corpo do colega. As brincadeiras de luta são comuns entre os machos de qualquer espécie. Sempre que é previsto o impacto de um corpo no outro, o receptor contrai violentamente os músculos correspondentes ao impacto do oponente no intuito de sentir menor sensação de dor; na verdade ele antecipa a sensação de dor e contrai a região corporal do impacto. O grande triunfo está, por intermédio de estratégia combinada, atingir o corpo do oponente relaxado, em palavras mais simples, quando este não está esperando o impacto, pois é neste momento de alienação de si-mesmo, que as fibras musculares receberão a colisão descontraídas e relaxadas, percebendo e sentindo mais sentimentos advindos do mundo que o cerca.

Mas por quê relaxadas? Pois “relaxado dói mais”, responderá prontamente qualquer leitor do gênero masculino que já se viu trocando socos entre os machos de sua espécie. Quando contraímos os músculos sentimos menor a percepção de dor; “aguentamos” mais a violência que encontra nossos corpos. Sem dúvidas, contraídos sentimos menos o impacto do mundo sobre nossos corpos. Sentimos menos dor, sentimos menos frio, mas também menos carinho, amor e compaixão do outro.

W.Reich percebe essa natural defesa orgânica e, com seus estudos mente-corpo, minimiza o hiato que havia entre o corpo, a mente e as doenças da alma (ou psíquicas). Ele demonstrou o quanto do inconsciente se mostrava no corpo e vice-versa. Algumas vezes, como recalque, guardamos o conteúdo psíquico que nos ameaça e que gostaríamos de “esquecer”; em resposta, contrações musculares inconscientes que, repetidas vezes sendo vivenciadas, podem vir a se tornar crônicas, transformando-se no que W.Reich denominou de couraças musculares do caráter. Em outras palavras, a antecipação da dor e do sofrimento de uma dada situação vivida ou, na sua maioria das vezes, apenas imaginada/criada, realizamos mini-contrações involuntárias tornando-as, pela recorrência, crônicas e guardando nestas tensões musculares os nossos mais profundos ressentimentos do mundo. Além disso, como adiantamos acima, essas regiões cronicamente enrijecidas, sentirão menos sofrimento, mas de igual maneira, se poupará dos momentos prazerosos da vida como afago da pessoa.

E quando uma dessas doenças metafísicas nos atormentam a alma, tornando-se um empecilho para uma vida mais plena, podemos relaxar essas regiões musculares crônicas e acessar o seu conteúdo inconsciente “represado”. Trazido à tona não iremos curar essas feridas mentais, mas aprender como melhor manejá-las para conviver de forma mais benfazeja com nós mesmos e os outros. Dessa forma, o diálogo associado à técnica de relaxamento corporal como tratamento proposto pela psicanálise (pois não é coincidência que Freud utilizava um divã, o intuito é obviamente de indução ao relaxamento) é, atualmente, uma das vias terapêuticas para os males que afetam as almas que vivem nas contemporâneas sociedades do cansaço, da máxima informação e do nenhum diálogo verdadeiro. O corpo se tornou o objeto a ser exposto, consumido e jogado fora, e perdemos a concepção de nós mesmos integrados com quem realmente somos.

De alguma forma é lícito supor que, mesmo não possuindo nenhuma moléstia física a tratar, o foco assertivo da atenção para os problemas que nos afligem, o diálogo e o relaxamento corporal possuem em si o potencial transformador em seres humanos melhores.

Doenças da alma em sociedades do cansaço

Afirmo isso sabendo que se você hoje, em um consultório de medicina, quando indagado pelo médico sobre o motivo da sua visita responder que “está bem”, mas o motivo da consulta é se tornar um indivíduo melhor, de duas uma: ou lhe indicam um psiquiatra (por acreditar que você não está “batendo bem das ideias”) ou encomendam uma bateria de exames com o intuito de encontrar alguma doença física a tratar. Se você visitar um fisioterapeuta, o mesmo: este profissional da saúde lhe exigirá que caminhe por cima de uma folha em branco no chão com os pés pintados de preto e fotografará você em diversos ângulos a frente de uma parede quadriculada; tudo na ânsia de se localizar desvios anatômicos a serem cuidados. Mesmo que se visite um psicólogo, ao ouvi-lo afirmar que você está bem mas quer se transformar em alguém melhor, o psiquiatra poderá surgir na conversa novamente, pois realmente não é comum tal pedido em consultórios de qualquer o ramo da medicina convencional.

Desde a década de 1960 a assim chamada Medicina Mente-Corpo se dedica a compreender os processos do pensamento a influenciar a saúde do organismo. As terapias que são tradicionalmente definidas como mente-corpo incluem biofeedback, hipnose, meditação, visualização dirigida, técnicas de relaxamento, yoga e tai chi chuan. Pelo seu baixíssimo custo, as terapias advindas deste modelo de medicina tem sido amplamente empregadas nos mais modernos centros de pesquisa e hospitais do mundo inteiro. Entre todas estas terapias, sendo dúvidas a meditação é a mais bem investigada. Herbert Benson nos anos de 1970 foi o médico que primeiro veio a compreender a benfazeja ação da meditação como resposta ao ritmo alucinante de nossas cidades e como esta aceleração afetava negativamente o organismo humano.

Como se pode ler em outros textos aqui do blog, o estresse em si, sob a ótica estrita da biologia, não é nefasto aos seres vivos, muito pelo contrário. Entretanto, somente em sua terceira fase (a de exaustão), o estresse apresenta o seu lado deletério e perigoso à saúde. A terceira fase do eixo do estresse poderíamos resumir como a resposta do organismo a um agente estressor que não permitiu o retorno do corpo ao seu estado de equilíbrio (homeostase). A permanência nesta fase de desajuste, conduz o complexo corpo-mente em exaustão e doenças.

Quando somos acometidos a agentes estressores físicos, como o calor, o frio ou um vírus da gripe podemos identifica-lo e combate-lo mesmo quando o organismo não dá conta disso, mas (como já adiantamos) quando o agente estressor é não-material - como uma conta no banco para pagar sem termos recursos ou uma situação de infidelidade conjugal -; mesmo com todas as possíveis ações a serem tomadas (de pedir dinheiro emprestado ou pagar a traição na mesma moeda), estas ainda não aplacariam a agonia de não ter o que fazer a não ser resignar-se. A angústia, ou o medo por algo que você não sabe nomear, é o perigo que faz espreita a todos os agentes estressores metafísicos desencadeadores da fase de exaustão do estresse. A fase de exaustão (ou crônica) do estresse poderia muito bem ser descrita como um animal, que depois de ter buscado inúmeras saídas para o“labirinto”que lhe acometera não consegue encontrar uma saída. O seu esforço é tamanho que este se entrega e pára de buscar respostas, se deprime e, literalmente, não encontra mais um sentido para a sua vida.

Se testarmos os níveis de estresse de um rato de laboratório prendendo-o em uma placa de metal que emitirá choques leves de forma aleatória, no intuito de observar os três níveis do estresse (fase de alarme, adaptação e exaustão), conseguiremos compreender melhor o que buscamos descrever aqui.

Na primeira fase (alarme) o ratinho rapidamente identificará o choque percorrendo o seu corpo e buscará de forma desesperada se livrar das garras em suas patas. Nesta fase ele chega até mesmo a se machucar como resposta de luta-fuga desencadeada pelo agente estressor. No estágio seguinte do estresse (adaptação), o animal buscará respostas e saídas para a o seu agente estressor. Em nosso caso, o ratinho buscará adivinhar o momento que a descarga elétrica será alijada na placa metálica e tentará saltar para que o seu corpo não encontre o choque. Mas eles serão aleatórios e impossíveis de ser prever.

Todas as tentativas antecipatórias (de ajuste homeostático) do ratinho serão infrutíferas, podendo durar alguns minutos ou dezenas deles – pois cada ser vivo adquire, ao longo de sua existência, graus variados de resistência física e mental. Sem sucesso em seus tentames de aliviar o desgaste dos choques em seu corpo, o ratinho do nosso exemplo, adentrará no terceiro nível de estresse (exaustão). Agora nesta fase, depois de minutos intermináveis de busca por uma saída ao agente estressor que o atormenta sem parar, o animal se entrega e desiste da luta pela vida. Neste momento, pode-se soltar as garras que o aprisionam, mas ele continuará levando choques sem se mexer, inerte (ainda vivo), mas exausto e sem forças para reagir mesmo estando livre fisicamente.

Agora, ele estará aprisionado mentalmente. E esse mal-estar é ocasionado por um agente estressor não físico – seja o choque, a falta de grana ou a compreensão de ser corno. Em seres humanos podemos descrever esse mesmo quadro como depressão: quando todas as respostas ministradas para dar cabo ao agente estressor foram inúteis para se esquivar dele. Na fase de estresse crônico, a vida pode deixar de fazer sentido. Em toda depressão, angústia, ansiedade e déficit de atenção, guarda em si, um ódio sobre o que não se consegue vencer ou nomear, por isso que, invariavelmente, nestes casos o doente projeta a sua dor no outro. Mas quando percebe que o mal está instalado nele mesmo e ninguém pode ser culpado, este animal (um rato ou humano) entrega a passa a viver a acuado em um canto - seja este canto qual for: uma profissão que não deseja, um casamento falido ou outras inúmeras maneiras de não-vida. A busca por abreviar a sua existência pode ser a sua única e “lógica” saída que sobrevoa mentes atormentadas.

Há muito a se mudar nos currículos e preparação dos profissionais de agentes de saúde, assim como muitas críticas podem advir dessas breves argumentações que visam unir o movimento e a saúde. Mas os primeiros passos podem já ter começado a serem dados a favor da mudança.

Yoga/Meditação

Há um generalizado equívoco com relação ao yoga e a meditação. É possível meditar sem ser yogi, mas impossível o seu contrário, ou seja, praticar yoga sem meditar. A meditação é, portanto, o cerne do yoga. Dessa forma, a inclusão das práticas do yoga como terapêuticas de cura acarretará também os benefícios meditativos.

A definição clássica de yoga pode ser a des-identificação voluntária das modificações da mente. O yogi/meditador visa, portanto, por meio de suas práticas corporais “treinar” a consciência distanciar-se de seus próprios pensamentos (mente). Em momento algum é possível parar de pensar, pois a mente é um “órgão metafísico” (criado por filósofos e validado por psicólogos) desenvolvido para este fim. Dessa forma, o que se almeja com o yoga/meditação (seja qual for a linhagem, denominação, escola ou autor) é tornar-se um observador passivo do que acontece em sua mente/corpo quando não tem mais nada para acontecer. Esse exercício psicofísico, com o tempo de prática, nos conduz a uma percepção de como nos tornamos alienados das forças inconsciente que conduzem as nossas vidas; nos trazem à consciência de quantos comportamentos, hábitos (sejam físicos ou mentais) e gestos realizamos totalmente alienados de nós mesmos.

Qualquer prática yogica/meditativa necessita que o relaxamento físico exista, pois como argumentamos previamente, as tensões musculares podem guardar em si conteúdos inconsciente recalcados. O relaxamento portanto, possui em si, a potência de trazer à luz nossos mais profundos medos, anseios, mágoas e ressentimentos. E, em toda prática de yoga/meditação há, em sua essência, o relaxamento como parte intrínseco do processo. Em poucas palavras, não há como meditar ou praticar yoga sem um nível ótimo de relaxamento. Entre os profissionais de saúde, não encontro outro que o educador físico, o mais qualificado para conduzir o outro a este estado.

Além do relaxamento, o yoga/meditação exige que tenhamos bem definidos qual a “âncora” que utilizaremos em sua prática. Forme a imagem de uma embarcação solta em um mar revolto, sendo o mar a sua mente. Sem uma âncora a cada onda que atinja a embarcação, o lançará de um lado para o outro, podendo até mesmo se estraçalhar sobre as rochas. A âncora yogica/meditativa, assim, pode ser a chama de uma vela, uma parede em branco, a realização de uma sequencia pré-definida de posturas e respiratórios ou um mantra/oração/palavra específica verbalizada repetidamente.

Outro ponto importante no processo é determinar a “técnica” yogica/meditativa a ser utilizada. Por exemplo, se a âncora escolhida for a do movimento, ou seja, realizando posturas com respiratórios. A técnica está a definir quais posturas e respiratórios se realizará? Tendo uma técnica bem determinada, se evita a dispersão do foco da atenção.

O último estágio é compreender que haverá loops, em outras palavras, existirá momentos em que o foco da sua atenção se desviará da sua âncora durante a realização das técnicas definidas (e isso é bastante comum e não deve ser motivo de desânimo); mas prontamente quando isso ocorrer, retorne a sua âncora e lembre-se da técnica utilizada. Um exemplo mais concreto é a do Método de Yoga/Meditação Restaurativa. Um dos inúmeros “métodos/técnicas” de yoga/meditação mas que se utiliza como “âncora” o mais profundo relaxamento. Nesta técnica não se emprega de nenhum tipo de postura que exija o mínimo que seja de contração ou distensão muscular. As posturas são construídas com utensílios como bolsters, mantas e toalhinhas para os olhos buscando o maior de conforto, quietude, atenção e compaixão consigo mesmo e o outro.

Entretanto, independente do método, escola, linhagem ou técnica ou âncora escolhida (e existem diversas, apenas pois somos muitos), o relaxamento e o foco da atenção não podem ser negligenciados. Na verdade, manter a consciência restrita e atenta e o corpo estável e confortável são as únicas exigências, pois todas as repercussões psicofisiológicas após isso ser conquistado serão naturais e sem esforço algum.

Neurofisiologia do Yoga/Meditação

O yoga/meditação não exige dons naturais e/ou tipos psicológicos específicos, na verdade, todos os seres humanos nasceram dotados de um circuito neurofisiológico para meditar. Mesmo a sua avó que nunca meditou, saiba, ela possui um caminho neuroquímico que a capacita e se beneficiar do yoga/meditação, assim como o Dalai Lama.

Sempre que direcionamos a nossa atenção em alguma coisa que nos interesse (pode ser este livro em suas mãos por exemplo, ou quando avistamos um predador, uma presa ou parceiro(a) sexual aprazível) os neurônios do seu córtex pré-frontal se “ativam/funcionam”. Estes, por sua vez, fazem “entrar em ação” os neurônios de outra área cerebral próxima (como uma rede elétrica que vai se acendendo), o giro cingulado (GC). Quando o GC funciona mais ativamente ele, ao contrário do que descrevemos até agora, põe para “dormir” uma terceira região encefálica envolvida no processo meditativo, a porção límbica do tálamo.

O tálamo é uma espécie de “correio sensorial” do organismo. É ele que recebe todas as informações sensoriais do mundo que encontra o seu corpo (luz, som, gosto, tato, pressão atmosférica e etc) e as retransmite para o restante do cérebro. Portanto, se durante o processo yogico/meditativo o tálamo diminui a sua ação - e a função dele é “informar” o impacto sensorial de outros corpo em você - se restringirá drasticamente o número das oscilações mentais. Por conseguinte, é lícito afirmar, que um reduzido número de possíveis agentes estressores agirão sobre o yogi/meditador. Podemos brincar dizendo que o yoga/meditação aumenta o pavio. Sim, pois há animais que nascem “sem pavio”, ou seja, o mais ínfimo agente estressor que sobrevoe a sua mente o faz “estourar”. Se a resposta ao estresse é acionada por agentes estressores sensoriais, e o yoga/meditação, como vimos, possui potencialmente o poder de arrefecer o impacto sensorial via tálamo, quem medita necessita aprende a combater a sua reatividade. Aqui neste ponto, a ancestralidade das escrituras yogicas/meditativas se encontram com as mais recentes investigações científicas, pois ambas afirmam o mesmo: as repercussões do yoga/meditação sobre os seres humanos são deveras interessantes e essenciais para a sua saúde física e mental, ainda mais quando vivendo em locais aonde o número de informações sensitivas incessantemente perturbam a nossa paz interior.

E esse menor impacto do mundo sobre a mente yogica/meditativa produz um efeito benfazejo sobre a saúde do yogi/meditador que se reverberará mesmo após a prática. Na verdade, as respostas benfazejas do yoga/meditação sobre a saúde de seus praticantes são acumulativas. Quanto mais se pratica yoga/meditação, maior os benefícios reverberados no corpo/mente e por mais tempo. Disso pode resultar, em seres humanos não mais calmos, mas com maior atenção, portanto, com maior tempo de reagir de forma mais adequada ao mundo que lhe apresente.

Considerações Finais

Dentre tudo o que discutimos até aqui, deverá ficar evidente que há certo grau de urgência para com o atual situação de nossa sociedade pautada em um capitalismo de consumo pós-moderno. Não que acredito que houve um período histórico mais “equilibrado” e “sábio” que o nosso, pois penso que em cada estágio evolutivo dos homo sapiens e de cada cultura e sociedade erigida por nossa espécie enfrentamos agruras correspondentes. A atual sofre por seus próprios erros (como todo o sempre foi e será). Somos seres biopsicossociais, mais ainda, somos ambivalentes. Isso significa que sempre geraremos moléstias a nós mesmos e a outros, assim como descobrimos saídas.

Os homo sapiens são fracos e seus corpos não foram adaptados as agudezas da natureza. Não sabemos voar, sob nossas pernas somos desajeitados (pense em um guepardo competindo com o nosso representante mais rápido dos 100m rasos), não produzimos venenos, nossas “garras” e dentes não conseguem ferir nenhum animal de médio ou grande porte que pudesse nos alimentar, nossos pelos não conseguem nos proteger do frio como a de um urso ou mesmo um poodle. Compare um filhote de rato com um de humano. Deixe-os sozinhos por 15 dias quando recém-nascidos. O bebê morre afogado em seu próprio vômito e o rato sobrevive - se não vier a se alimentar da própria carne humana. A imagem é forte, mas é proposital para lhe conferir a ideia de como somos indefesos e despreparados para o mundo. Entretanto, conquistamos o topo da cadeia alimentar e não apenas corremos ou lutamos contra bestas feras famintas prontas a nos atacar, mas as ensinamos truques como de deitar, rolar e dar tchauzinho como o fazemos com os tigres de circo e baleias em parques aquáticos. Como conseguimos isso?

Fomos abençoados ao mesmo tempo que amaldiçoados pela consciência da finitude da vida. Nenhum outro animal “sabe” que vai morrer! Isso nos fez desenvolver três atributos comportamentais essenciais para a sobrevivência da espécie humana: 1) a antecipação de perigos (mesmo que eles não existam); em consequência disso, um poder extraordinário de 2) criar “ficções que curam” (religiões, filosofias, mitos, ciência, senso comum e as artes para nos configurar um sentido para a vida que não existe); e a mais importante, 3) o amor e a compaixão pelo outro, pois sendo fracos e indefesos, podendo ser mortos por um rato, aprendemos de forma inata (pense no amor dos pais à sua prole) que dependemos um do outro para viver e que a felicidade só será plena quando compartilhada.

As doenças da alma que desenvolvemos ao longo do texto demonstra o quanto estamos doentes por nos afastar de nossos predicados que nos fazem humanos. A saúde que nos falta é da distancia que estamos estabelecendo de nossas almas com a de nossos colegas evolutivos. Práticas ancestrais como yoga/meditação e o movimento do corpo em consonância com as nossas mais criativas mentes, no seu poder natural de antecipar ameaças nos indicam o caminho certo.

As criações em que nos enredamos (filosofia, religiões e etc) nos alertam aos fantasmas que nos assombram ao meio-dia, como as doenças metafísicas que descrevi. Contudo, o amor e a compaixão é o que nos une e as práticas físicas não podem ficar relegadas ao entretenimento e as distrações apenas como jogos corporais alienantes; muito menos nos servir como “carregadores de energia” para mais um dia de labuta no movimento irracional de produzir, consumir e jogar fora coisas.

O nosso poder criativo anelado ao sentimento de estarmos vivos pelo amor de quem antecipou perigos quando ainda éramos indefesos, deve ser sempre relembrado e a meditação advinda do yoga, como prática psicofísica, pode ser um dos métodos de retorno ao eixo. Os nossos inúmeros cursos de formação existentes no Brasil em yoga/meditação, sem dúvidas, estão hoje abrindo caminhos para uma clareira no meio da floresta em que vivemos rumo a uma medicina multidisciplinar mais integrativa e complementar. Mas para isso, estes (e todos nós que atuamos como professores e formadores) precisamos também nos compreenderemos fazendo parte deste processo e não apenas “movimentadores” de corpos, mas, sobretudo, “integradores” de mentes.

PhD Roberto Simões

  Pense no mundo habitado apenas por gurus? Como seria viver em uma sociedade aonde todas as pessoas fossem iluminadas? Onde todos vivessem seus verdadeiros “eus”? Haveria escassez de discípulos certamente. Mas existiriam gurus sem ter quem guiar? Seria tão utópico quanto uma sociedade sem classes; e a análise aqui pode revelar a importância deste grupo social e a hipocrisia de tantos falsos gurus.

   A palavra guru pode ter algumas definições, a mais comum é a do mestre espiritual, mas também pode designar aquele que traz luz a escuridão. Outra definição possível é aquele que detém influência na formação do devoto. De forma geral, podemos afirmar que não haveria a figura do guru, mestre, iluminado, auto-realizado sem a sua contraparte: o discípulo, o devoto, o que busca iluminar-se ou a realização de Si-mesmo. Em suma, daquele que vive a vida transcendente. Pois na imanência só vivem os impuros e os não-realizados. Guru não é Perfeito, mas representa (ou deveria) o Bem.

     A figura do guru ou asceta, portanto, representa o ideal de ser humano, uma espécie de versão que ultrapassa o homo sapiens. Os homens mais ricos, os guerreiros mais ferozes, o simples agricultor ou vassalo sempre buscaram orientação do guru ou levam seus filhos na esperança de serem aceitos por eles como seus alunos. O que pretendo dizer é que a sociedade e a nossa cultura foi erigida com uma estrutura que sustenta e legitima os gurus. Eles sempre foram importantes para a manutenção coesa e moral da sociedade. Entretanto, em uma sociedade carente deles, qualquer um ocupa seu lugar. Mesmo na China, aonde a religião é proibida, Mao Tse toma seu lugar (quase sempre imposto).

  Em outras palavras, em todas as sociedades há sempre os aristocratas, os guerreiros, os vassalos, os comerciantes e o clero. Dentro do clero, podemos distinguir os sacerdotes, os místicos e os profetas. Dentro deste grupo social clero, a figura do Guru pode ser representado tanto pelo sacerdote (em geral aquele que mais conservador que representa sua tradição ou igreja), quanto pelo profeta (aquele advindo de uma tradição/igreja vem anunciar o novo; seja rompendo com o sacerdote ou anunciando a falsa moral da sociedade), ou o místico (este dispensa qualquer outro sacerdote ou profeta e estabelecendo comunicação direta com Deus, deuses ou espíritos e etc). Outra figura é o mago, que sem fins da manutenção tradicional da religião/igreja, presta serviços “práticos” para seus clientes (e não discípulos): como oráculos, curas e etc. Enquanto o Guru (sacerdote, profeta ou místico) representa uma tradição moral com discípulos e, portanto, coesão social; o mago manipula as forças da natureza para fins imediatos a sociedade.

   Os gurus, portanto, sempre começam a sua jornada buscando um outro guru para conhecer a si-mesmo e servir á tradição e preservar suas escrituras e cerimoniais com fins de manutenção do conhecimento moral e do Bem social com base no transcendente. Já os magos não transmitem ensinamentos morais, nem buscam o Bem, mas as suas necessidades imediatas, imanentes para fins práticos e pessoais.

  Depois, geralmente, de alguns nãos e outras tantas decepções de falsos gurus ou da sua falta de preparo (como discípulo, pois ser discípulo requer treinamento), um guru lhe aceita e vice-versa. O início é de êxtase e um certo alívio, pois paira uma segurança de agora estar no caminho certo do fim de todo o seu sofrimento existencial. Mas não é bem assim. Uma segunda etapa é o ceticismo que pode abater aos discípulos recém-chegados. Sim, depois de tanto buscar e serem rejeitados, os discípulos iniciam debates racionais sobre os métodos e conhecimento do guru e da tradição que estes representam. E não há nenhum guru de verdade que não tenha duvidado em algum momento do seu processo as palavras do seu guru ou da sua tradição espiritual/religiosa.

     Mas chega finalmente o momento da passagem. Quando o discípulos depois de anos de treinamento cai de joelhos aos pés do seu guru, chora copiosamente e se rende ao Grande Mistério, à Deus ou algo similar. Mas nunca cairemos aos pés de outro Sapiens igual a nós, ele precisa ser Maior, representar o Pai, a Mãe, o Eterno, o Imaculado e etc. Por isso que as sociedades mantém seu clero sempre vivo (seja congregado por sacerdotes, profetas desgarrados igreja ou na figura de místicos que entram em conexão divina direta). Pois a outra opção é adorar a magos que não possuem a força da tradição e das suas escrituras sobre a melhor vida. Os magos ou falsos gurus só podem transmitir fórmulas mágicas e alguns parcos signos de cura ou adivinhação, pois não ocupam a posição social de manutenção da Verdade. Quando uma sociedade está enfraquecida de gurus, os magos ocupam esse lugar: seja na figura de cientistas-gurus ou qualquer outra figura similar. Eles não são o Mal, mas também não sabem o caminho a seguir, pois essa sempre foi a ocupação dos sacerdotes, profetas e místicos.

 E o guru que falha? Este era um falso guru, e todos os seus discípulos vão buscar amparo em outro guru ou se formam ao lado dos céticos e trágicos. Os céticos e os trágicos desmarcaram os magos travestisos de guru. Essa é a função destes, e se proliferam quanto mais um falso clero se instala nas sociedades.

     Imaginem que não houvessem mais os céticos e  os trágicos. Enquanto os céticos alimentam infantilmente uma certa esperança de Verdade na Ciência, os trágicos compreendem a vida um caos e se divertem com isso, dançam sob o precipício da morte – os que conseguem superar a melancolia e depressão, obviamente. 

 Pois bem, os gurus são os Sapiens que aprenderam reprimir seus desejos sem se transformarem em neuróticos (sim, os psicólogos e psicanalistas se contorcem nas cadeiras, mas vocês são do grupo dos céticos ou trágicos, lembram?). Como assim? A grande liberdade não é fazer o que se deseja como vociferam os magos-falsos-gurus, mas negá-los. Se eu quiser eu faço, pensa os agentes do clero, mas tenho força suficiente para me abster sem culpa, medo, raiva, tesão e etc.

   Essa é a máxima dos verdadeiros gurus. Eles, invariavelmente, se retiram da sociedade - por breves momentos ou por um grande período – para se dedicar ao caminho do espírito – alegoria que refere que há algo mais do que o finito corpo. Eles estão em busca de responder a pergunta: Porque eu sofro? E essa é a razão dos gurus existirem. Eles conduzem a si mesmos e outros (se não, os gurus seriam sido extintos do planeta, assim como foram os neandertais) a este lugar sem dor. Mas, imaginem uma sociedade aonde não existissem mais os gurus. Como seria a cultura desse povo? Seria, certamente, uma cultura de paz, harmonia e felicidade? Bem, mas tentativas reais disso na história, o que se viu foi liberdade restringida: China, Coreia do Norte, Cuba e ex-URSS.

      Levi-Strauss conta, em seu O feiticeiro e a sua magia, a história de um integrante de uma tribo cético quanto a veracidade dos xamãs da sua cultura. Para desmenti-los aceitou o convite para ser iniciado na magia da cura do seu povo. Após algum tempo de iniciado percebe que o ritual de cura que aprendera, mesmo não acreditando, vem produzindo o alívio para muitos da sua tribo. Em pouco mais de 2 anos começa a se perguntar se não havia desenvolvido mesmo algum tipo de poder que o permitia curar seus companheiros. Em um filme recente (Kumaré) acontece algo similar, é o ator que pensara desmarcar os falsos gurus indianos que invadiram os EUA começa a se perguntar se ele não era mesmo alguém dotado de “poderes singulares” de cura.

     A questão é não existe e nunca existirá uma sociedade sem a casta do clero/gurus (seja sacerdote/brâmane, místico/xamã ou profeta). E numa sociedade pretensamente laica e secular como a que vivemos, aonde as religiões tradicionais romperam sua legitimidade para alguns de seus membros (aristocratas, guerreiros, vassalos ou comerciantes), qualquer porcaria tem ocupado esse lugar milenar: seja um idiota vestido de açafrão ou alguns outros imbecis cientistas de jaleco acreditando que encontrou a resposta da boa vida em 9 lições.

       A figura do sacerdote no ioga precisa retornar para que os praticantes de ioga não se percam entre tantas interpretações leigas das escrituras e práticas corporais das mais estapafúrdias que sejam. Mas o Guru surge depois de muita reflexão e experiência espiritual verdadeira. Mas na falta destes, inunda-se de todo tipo similar. E você? Ou desconfia de todos ou mergulha de cabeça no primeiro que lhe dá um nome iniciático. É necessário que, para quem busca o ioga como caminho verdadeiramente espiritual, compreenda que são anos de estudos, de reflexão e prática. Mas para quem visa apenas um corpo saudável qualquer coisa serve, mesmo que seja para adquirir alguns sidhis/poderes mágicos que não o levam a compreender nada, mesmo que ocorram.

      Quando insisto que o ioga é uma religião, não é para diminuí-lo mas resgata-lo da sua condição intermediaria entre ginástica e gestos mágicos. O ioga praticado e estudado como religião - e não simples espiritualidade, que é um nome inventado pra não ser nada e você não se comprometer com um sistema Revelado - é o único caminho para quem busca a Verdade do ioga e não apenas abdômen definido e um monte de descrições corporais em sânscrito indecifráveis para não-iniciados.


Dr.Roberto Simões

Sou um Guardador de rebanhos

Sou um Guardador de rebanhos

E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca.

Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei da verdade e sou feliz.

Alberto Caeiro, Heterónimo de Fernado Pessoa

Se Deus existe, por quê o Mal vive? Pergunta teológica antiga com elegantes argumentações que buscam responder tal anseio da humanidade. Em termos da espiritualidade ioguica, podemos pensar que, se somos (todos os 7 bilhões de seres humanos) Perfeitos-em-si-mesmos, por quê sofremos mais do que nos alegramos?

Se há algo universal nas religiões/espiritualidades, é a certeza indubitável da vitória do Bem: a superação da morte ou do Mal. É por isso que em nenhuma doutrina religiosa/espiritual nós morremos de fato: Passagem, Nosso Lar, Céu, Kaivalya, Maha-Samadhi, Nirvana, Reencarnação e por aí vai. Não existindo a morte definitiva – em palavras mais simples, se sobrar alguma coisa de você, seja energia, alma, espírito, consciência/mente, meme ou qualquer outra essência pós-putrificação da carne – abre-se um espaço transcendente legítimo de crença na vitória do Bem sobre o Mal. Mas, sem as religiões, o Bem sempre perde.

Mesmo os devotos das mais antigas tradições espirituais não estão mais entre nós, pelo menos não com a mesma "pele" que habitavam em suas existências corpóreas. Mas algo permanece, ou seja, suas ideias éticas, suas invenções criativas sobre a melhor forma de se viver. James Hillman possui uma expressão que representa bem o que desejo exprimir quando afirma que os Homo-sapiens foram os animais mais hábeis em conceber “ficções que curam” seus mais profundos medos ancestrais. Ou, como abro este ensaio, sob a presença de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro), somos “guardadores de pensamentos”.

Imagine nossos patriarcas Sapiens nas savanas da África, andando nus à noite em chuvas torrenciais em busca de uma caverna para se abrigar. Eles não são muitos ainda, bandos de 3-4 com frio, fome e medo; eles se agacham e se abraçam uns aos outros chorando iluminados pelos relâmpagos que lambem a terra molhada e por uma lua pálida, que vez por outra se apaga pelas negras nuvens de chuva. Os ventos arrancam árvores, deslocam rochas, ouve-se os gritos de outros animais sendo arrastados e mortos pela força da natureza. No outro dia, o único bicho-Homem que sobreviveu, olha ao redor e encontra seus amigos sendo devorados por outros animais, pássaros voando no límpido céu azul, enquanto outros se secam ao sol nas mesmas rochas que há poucas horas foram deslocadas violentamente pelas águas da tempestade. Mas este animal que sabe-que-sabe não, ele não possui a mesma “força” de “seguir em frente” como “se nada tivesse acontecido”. Os Sapiens foram abençoados e amaldiçoados por uma autoconsciência que os faz perceberem – cognitivamente falando – que a sua vida é finita, mas sentindo-se infinitos. Ele, ao contrário de todos os outros animais, enterra os da sua espécie. Talvez por nascer imaturo biologicamente, conviveu muito com os seus progenitores, por isso mesmo aprendeu desde cedo que não possuiria garras afiadas, não produziria venenos mortais, nem asas para voar e não conseguiria jamais desenvolver a potência necessária para correr, saltar ou coicear tão bem quanto os animais de outras espécies. O seu corpo é fraco e vai morrer!

Em compensação, os Homo-sapiens desenvolveram uma linguagem sem precedentes, e com ela um poder que os possibilitaram atingir o topo da cadeia alimentar da floresta aonde viviam, criando e propagando pensamentos, ideias, estórias, lendas, mitos, ficções. Ao invés de correrem ou lutarem com seus predadores, os Homo-sapiens os apresentam domados em circos, enjaulados em zoológicos e dissecados para estudo em museus de história natural. A natureza, antes hostil, agora é remanejada para afugentar todos os medos das chuvas torrenciais que atormentavam os nossos patriarcas nas gélidas cavernas escuras de outrora. A principal “ficção” – ou “rebanho de pensamentos a serem guardados” - que os homens e mulheres criaram foram as religiões, com suas doutrinas “sagradas”, suas filosofias e mitos. Além disso, erigiram rituais de purificação e de cura, mas sobretudo, de vinculação sócio-político-econômica-espiritual. Não é coincidência (ou maldição para alguns), que as religiões tenham sobrevivido como expressões antigas em todas as culturas por aqueles mesmos Sapiens medrosos e famintos. As religiões são úteis para a sobrevivência da espécie humana. Mesmo Nietzsche que considerava a religião cristã um “veneno”, afirmava que alguns sapiens “doentes” precisariam dela para suportar suas vidas. Na verdade, convenhamos, até Nietzsche construiu sua própria “ficção” com a sua alegoria do Super-Homem: “A minha filosofia é fruto da minha loucura”, ilustra bem o que quero dizer.

Você a esta altura pode bater no peito e argumentar sobre o Deus Imanente, aonde Tudo é Deus. Mas pense só no planeta Terra para ficar mais fácil a abstração necessária em compreender essa perspectiva, igualmente, religiosa. A filosofia da Imanência d’Deus transforma você como parte Dele. Tudo o que você fizer ou pensar é de origem Divina. Cada ação animal é parte d’Deus, que é o Todo. Você, a árvore e ondas perfeitas da Indonésia são partes Dele. Assim, um homem que assassina a sua esposa com 27 facadas no peito, assim como o terremoto que destruiu uma cidade inteira, também são partes do Todo, d’Deus, dentro desta teologia da imanência.

Quando você morrer na perspectiva da Imanência Divina, você volta ao Todo, já que você é parte Dele. Enquanto na cosmologia dualista, Deus está fora e você é sua imagem e semelhança (e não parte Dele). O Mal que existe no mundo dualista pode ser justificado pela Imperfeição dos Homo-sapiens; na Imanência, por outro lado, o Mal não pode ser justificado “fora”, pois não há fora, tudo o que existe é parte d'Deus. O assassino e seu guru “Silvananda” são partes Dele. O que diferencia o assassino e o guru (representação da sabedoria) é a Ignorância/Ilusão do primeiro quanto a sua natureza Divina. Essa argumentação teológica não-dual cria uma saída lógica para a existência do Mal. Os que não perceberam a “ilusão de suas vidas” cometem o Mal e sofrem, os que seguem os preceitos das doutrinas não-duais alcançam a Verdade Divina sobre Si-Mesmo e encontram a Felicidade Eterna, Eu-Maior, Vida Plena, Qualidade de Vida, Alta Performance, a Força dos Jedis e/ou Kaivalya.

É uma grande sacanagem Cósmica! Deus nos faz Perfeitos em Si-Mesmos e inspira outros Sapiens a erigirem doutrinas Divinas em várias partes do Planeta, mas nos faz crescer ignorando essa natureza Divina. Ao contrário, há a teologia que guia outros tantos a divulgarem a ideia religiosa que Somos Pecadores de natureza, portanto Imperfeitos, e a Salvação dessa maldição está em outra vida. Convenhamos, é uma brincadeira Divina de extremo mau gosto. Na primeira, somos perfeitos mas ignorantes e na segunda, já saímos cientes que vamos errar e o fim das agruras está em outro mundo.

Seja qual for a Ética que escolha (leia a forma certa de viver), ao longo da vida o que vamos compreendendo é o Mal ocupando muito mais espaços do que o Bem. Você precisa seguir uma série de restrições para o incerto encontro com Deus (fora ou em você) e o alegrar-se. Mas com a tristeza, não é necessário esforço nenhum, ela certamente te encontra e continuará lambendo seu pé enquanto corremos dela. Mesmo no Canal Off, aonde todos são felizes, magros, tomam açaí com granola e vivem longe dos abafados escritórios, se machucam nos corais, colidem com seus ultraleves em árvores e torcem joelhos ou fortes chuvas com terremoto põem abaixo o projeto de alcançar a foz do rio Yangtzé na China de caiaque (ou algo do gênero). O Mal vence e o Bem mais vezes sem as narrativas religiosas para dar sentido aos homens e mulheres - mesmo que você escolha a Ciência como a sua.

As religiões erigidas pelos nossos ancestrais nos presenteiam ainda hoje com ritos de limpeza das nossas imperfeições (ou que não sejam nossas, mas estejam atuando em nós e nos deixando tristes), seja a série 1 do Asthanga Vinyasa Yoga com seus mantras, incensos ou a sabedoria do Feng-Shui (dentre tantas outras preces, kirtans e orações). Somos hábeis em superar as dificuldades; mas elas exigem esforço, entrega e comunhão. Ninguém sobrevive nesta vida sozinho. Sabemos (e quanto mais envelhecemos, mais evidente isso se torna), que no fundo e no fim da história, o Mal vencerá a todas as batalhas humanas, pois todos nós morreremos um dia. Entretanto, todos os rituais e doutrinas religiosas/espirituais trazem consigo um bálsamo cultivado e repassado de Sapiens para Sapiens ao mesmo Mal que os acompanham desde seus primeiros patriarcas que habitavam as savanas da África. Mesmo você, ateu do tipo materialista-dialético, devoto de Jean Paul Sartre e que levanta a voz marxista para defender a “classe operária oprimida pelos donos dos bens de produção”, em toda aula daquele professor conservador “burguês”! Sim, mesmo você, toma as suas doses diárias de Cloridrato de Bupriona e Quetiapina, pratica Mindfulness (e não meditação, pois julga aquela ser laica e esta espiritual), ou queima sua erva, passa as tardes “fechando” jogos de Playstation, chama Deus de Natureza ou prefere acreditar na ficção da Ciência como “Verdade do mundo” para aliviar a angústia que habita a sua carne.

A felicidade, o Bem ou Deus existe, sem dúvidas, mas visita os Sapiens nos intervalos dos momentos de súplica, dor e desespero. E, nestas ocasiões de êxtase em que o Bem nos visita, alegramos e vivemos o esplendor da sua bem-aventurada presença. Mas ela é uma sensação fugaz que nos deixa marcas como o aroma do incenso que permanece por horas/dias, mesmo depois de consumido. Mas não há linguagem que possa expressar a grandeza do Bem/Deus, pois nenhuma sensação é expressa igual ao que sentimos. Aquela “paz” e “relaxamento” que a meditação e as aulas de asthanga vinyasa lhe proporcionam, a “deliciosa” chuveirada fria depois de um jogging em volta da Lagoa, o “vigor” de um mergulho no mar ou a risada “gostosa” que os cães nos proporcionam brincando, o sentido do “continuar da vida” que o sorriso da sua filha traz em si ou o “gozo” ao lado de quem se ama, duram bem menos do que nossos encontros com momentos infelizes. Os Sapiens precisam estar atentos com os encontros com o Bem, pois as vezes eles passam e você perde a oportunidade de gozá-los; mas os encontros com o Mal não esvaem-se por si só. Quem dera não perceber os encontros entristecedores e “deixá-los passar”.

O Mal não discrimina como o Bem faz. Se não seguir os preceitos corretos, o Bem não lhe alcança, afirmam os devotos. Agora o Mal, não importa se é ateu, agnóstico, guru, xamã do Alto Xingu, Pai-de-Santo ou brâmane, ele te encontrará. E no fim, ele te leva embora. O que fica de você? As ficções que você, como Sapiens que sempre foi e será, inventou ou defendeu como “A Verdade”. Se Jesus ou Matsyendra existiram (ou existem), quem se importa? O que restou deles foram as estórias que outros passaram a diante do que Este disse (ou disseram Deles).

O que lhe resta? Viver o dia!


Seja Bem-Vinde

Você adentrou um espaço em desconstrução. Desacreditamos metafísicas, por isso bricoleurs ou feiticeiros do Yoga quebrando a demanda de todo maya que lhe enfeitiça. Mas entenda, tudo é maya.

bottom of page