top of page
Buscar
Foto do escritorPhD. Roberto Simões

Há duas perspectivas teológicas que gostaria de analisar ao microuniverso ioguico moderno: a do Deus Imanente e o Transcendente. A teologia transcendente engloba as espiritualidades/religiões que percebem Deus/Energia/Absoluto/Isvara fora: o Bem, a Perfeição ou o Eterno vive em outro mundo e olha por nós. Nós somos (seres humanos exclusivamente - e não os outros bichos e materiais inorgânicos) a imagem e semelhança Dele. O objetivo da vida é aproximar-se Dele, seja por meio de rituais e/ou vivendo Sua doutrina e/ou Seus passos. O fim do sofrimento humano é alcançado pela Graça concedida por Deus: nossa Redenção se dá por intermédio e somente por Ele. Não há nada que você possa fazer para "manipular" sua Salvação ou Libertação espiritual.

A teologia imanente percebe Deus dentro de nós. Nesta perspectiva teológica nascemos perfeitos, e o fim do sofrimento humano só depende de nós mesmos. Não somos reflexos d'Deus, mas parte Dele; Deus não olha por nós, mas somos seus olhos por assim dizer - o Sentimos através dos nossos olhos, ouvidos, pele, língua, intestino... A vida boa é perceber-se Deus, seja praticando rituais também mas, ao contrário dos devotos transcendentalistas, vivendo a doutrina ou seguindo os passos de outros humanos que venceram a Ilusão, bloqueios Energéticos ou a Ignorância de uma vida "desconectada" da sua verdadeira essência Divina. Em outras palavras, a Salvação ou Libertação espiritual dependerá, invariavelmente, de outros humanos "Iluminados"; pois sendo parte d'Deus, não há quem lhe oriente de fora, como o Deus transcendente.

Enquanto os devotos transcendentes se reconhecem imperfeitos, humildam-se (como camelos e ovelhas) frente as vicissitudes da vida; os devotos imanentistas, por outro lado, percebendo-se perfeitos e amorais, encaram o sofrimento humano como um erro de julgamento de si-mesmo (advindo do conhecimento imaginário e não racional e intuitivo).

A primeira reflexão aos iogues e praticantes de ioga modernos, ou sejam todos que nasceram a partir de 1897 (data oficial em que o ioga inicia a sua transplantação para fora da Índia). Sim, você que lê em sânscrito ou foi iniciado pela linhagem direta de Patanjali ou Shiva, usa cordão branco ou divulga conteúdo em mídias sociais pregando até a jovens indianos... estou falando de você mesmo. Eu pergunto: a qual Deus você reza? Mas não dá para louvar os dois? Não, Deus não fala a mesma "verdade" de formas diferentes, pois como rezar a um Deus fora, se você é parte Dele?

A teologia imanente percebe Deus como o Todo, e nós parte Dele. Isso implica que quando morrermos voltaremos (como partes Dele) ao Todo, a Deus. Portanto, não "sobra" nada de você depois da morte: você não vai "reencarnar" ou se transformar em uma energia com alguma "centelha" que seja sua. Se algo de você "sobrasse", você não seria parte d"Deus, seria imagem Dele (mas aí é outra teologia) ou uma espécie d'Deus propriamente dito, o que é um absurdo lógico (não para ser parte de algo que você já é).

Se você seguir perspectiva teológica imanente com profundidade terá de admitir, como fizeram muitos filósofos (Schopenhauer, Espinosa, Nietzsche, Sartre, Deleuze, dentre outros tantos), que não há ninguém olhando por você e que será preciso erguer-se corajosamente sobre as próprias pernas e erigir a sua própria "ficção que cura" ou "utopias pessoais", portanto, eternas e impossíveis de serem transmitidas universalmente a outros. Por quê? Bem, como parte de Deus e finito como "unidade viva impermanente" (metáfora da onda e do mar cabe bem aqui), o sentido de sua vida deverá ser igualmente único e intransferível.

A teologia transcendente percebendo o Deus fora, e nós, semelhantes a Ele (mas não parte Dele), teremos consciência de nossa imperfeição lutando aqui nesta vida de sofrimento por momentos parcos de Bem-Aventurança aqui ou acolá. O Mal existe pois sendo imperfeitos, os seres humanos cometem desvios que devem ser julgados por Deus. Os devotos transcendentes alimentam a esperança de uma felicidade eterna, não aqui-e-agora, mas em Outro mundo. Entretanto, sobreviverão na passagem desta vida, mesmo que para isso, se submetam a regras moralistas das mais estapafúrdias, como jejuns prolongados para purificar a carne que peca ou obedecer a toda sorte de infortúnios como "provação" Divina. Enquanto os imanentes, só possuindo esta vida e mais nenhuma (ao menos com a "essência" como uma espécie de Ego individual que transmigra por vários corpos), farão o possível para serem felizes aqui (pois não terão Outra oportunidade). Nada é proibido e rejeitam crenças, pois sendo parte Dele, nada é pecado ou "sujo", já que Tudo é Deus. Eles não habitam um corpo como os transcendentes, mas são o próprio corpo e mente, ambos apenas modificações de uma mesma Substância = Deus/Natureza. A teologia transcendente ensina que, sendo imperfeitos, os seres humanos devem viver em rebanho, pois pensam: estaremos mais próximos d'Deus. Eles são mais humildes e pacientes que os imanentes - por isso que nutrem a espera(nça); sabem, não obstante, que a vida boa não será aqui (nesta vida "terrena/corpórea"): a expressão "rebanho de Deus" exemplifica bem a ideia teológica transcedente aqui empregada.

A teologia imanente se percebendo parte d'Deus, portanto, perfeitos em si-mesmos, quem sofre aqui é pois Ignorante e Alienado de seu Espírito (o conjunto corpo/mente) Imaculado. Se o Mal existe, é originado de almas perfeitas que não compreenderam o poder que possuem. Por alimentarem a convicção da realização de si-mesmo nesta vida, e não em Outra, manifestam maior ansiedade por qual vida escolher dentre infinitas possibilidades, e impacientes, não esperam, criam, destróem e (re)criam constantemente novas formas de amar, viver e sofrer também. Por isso tendem a peregrinar, como nômades, por todas as experiências ou vivências de Bem-Aventurança que julgarem lícitas e importantes a eles. Não há ninguém que os possa punir. A teologia imanente prega que, sendo perfeitos, cada um deve buscar a sua melhor forma de viver, independente qual seja, contanto que não interpele a escolha (alegria) do outro. Eles podem se manifestar (aos olhos dos devotos medrosos transcendentalistas) mais soberbos e egoístas, mas é apenas coragem pois sabem que a vida boa está aqui esperando por eles. A ideia que "Deus é plural" ilustra o que sugiro de vida religiosa imanentista.

É claro que houve, há e sempre haverá descompassos de abuso teológico de líderes e instituições espirituais/religiosas transcendentes e imanentes sobre seus devotos e crentes. Não cabe aqui essas discussões. Não intento qualquer julgamento de valor em minha análise.

Defendo que com o advento da modernidade houve uma tensão política, religiosa, social e econômica entre o poder de instituições espirituais/religiosas em conluio aos de alguns Estados. Somos filhos dos revolucionários que, desencantados com o flerte de alguns líderes religiosos/espirituais com políticos passam a valorizar muito mais o pensamento teológico imanente em detrimento ao pensamento teológico transcendente, no poder por séculos. Esta passagem aconteceu pois, na teologia imanente quem orienta os atos da vida vive aqui neste mundo, enquanto na vida orientada ao transcedente, o Juiz está "sentado em um trono" de Outro mundo, observando e julgando de longe. É neste período que a ciência sobrepõem-se como Verdade absoluta em de detrimento ao das religiões/espiritualidades transcendentes; e a teologia imanente passa a "disputar" com a transcendente o campo sóciorreligioso de algumas sociedades: o homem inicia a crença mais no Homem (como parte de Deus e, muitas vezes, como o próprio deus) do que Nele. No pósmodernismo, religiões/espiritualidades transcendentes começam a ser transplantadas para fora de suas culturas de origem e vão sendo ressignificadas para "caber" na perspectiva teológica imanente em voga agora: Budismo, Yoga, Hinduísmo, Xintoísmo e outras vão sendo "customizadas" no espírito dos devotos imanentes.

Mas um hábito é muito difícil de ser esquecido. Se "converter" de transcendentalista à imanentista exige muita coragem. Não pense ser simples largar a vida eterna por uma finita; sobretudo, cambiar um sentido de vida espiritual com a certeza de um mundo sem dor (teologia transcendente) para uma vida em que o sentido pode (e deve) ser customizado por você mesmo (teologia imanente) exige a mesma coragem que Krishna impõe a Arjuna. A transição (consciente ou não) sendo efetuada por essa sociedade é viver em um limbo onde acreditam na teologia imanente, mas parecem não ter coragem de soltar o transcendente. É o que alguns filósofos da religião denominam sarcasticamente de "religiões soft", pois não são nem um nem outro.

Estes novos teólogos e crentes "softs" vivem em errância, visitam todas as infinitas formas de rezar que eles mesmos bricolam e sincretizam, esforçando-se por não filiar-se a nenhuma delas, pois imaginam-se imanentes (Deus é parte de mim), ao mesmo tempo que constroem a imagem de Deus, por herança teológica transcendente (Deus está fora de mim), de diversas formas. Alguns cientistas da religião passaram a denominar esses "novos devotos" de Movimento Religioso/Espiritual Nova Era. Os devotos Nova Era mesclam uma religiosidade/espiritualidade com a coragem dos imanentes, de se perceberem finitos e construtores de suas próprias formas de viver sem prestar contas a nenhum Deus específico, com a humilde esperança teológica de uma vida melhor (nesta ou em Outra). Da utopia espiritual do Nirvana, Mahasamadhi, Kaivalya, Moksa, Paraíso, busca pelo "Super-Homem" dentro de cada homem ou de uma Sociedade sem classes, são todas novas Atlântidas ou Céus pósmodernos dos nova eristas.

O ioga moderno foi erigido neste mesmo limbo, por isso sofre tanto por falta de líderes/teólogos, e assim deixam seus devotos órfãos, mas com o queixo erguido como se (pre)sentissem algo Maior; no fundo é medo mesmo o que sentem em cada poro do corpo e da alma. Os iogues modernos (assim como muitos nova eristas) sofrem uma crise de identidade teológica: não sabem a qual cartilha rezar; pensam ser Perfeitos como partes d'Deus, mas choram como crianças frente a morte, pois não suportam a ideia da brevidade de suas existências pueris e voltar ao Todo. Eles não desenvolveram a coragem necessária para a morte ou a humildade exigida dos teólogos transcendentalistas: os primeiros dançam destemidos no precipício da vida, e os segundos admitem o Mal em si mesmos nutrindo compaixão pelo semelhante. No fundo, ambos, transcendentes e imanentes, sabem que vão errar e convivem com a dor necessária para a maturidade espiritual. Mas, os iogues que adotaram a "teologia da customização" religiosa/espiritual nova era, como crianças, querem e se ressentem de tudo que não acontece como eles desejaram. Estudam e praticam as escrituras sagradas do Vedanta com influência Hinduísta, Yoga Sutras com influência Samkhya e o Gheranda Samhita erigido pela religião dos Nathas, como se fossem textos fundados na teologia imanente, sem compreender que estes foram e são doutrinas de cunho teológico transcendentalista.

Ao final de ler este texto, se você pensar quão imaturos são, você é um devoto do Deus imanente; se sentiu pena da luta vã pelo fim da Mal, seu Deus é transcendente. Mas se está queimando a pestana para encontrar um furo retórico (e, certamente encontrará, pois somos animais hábeis em inventar "mentiras"/narrativas), pois tem certeza que existe "um caminho do meio", sim, você é devoto do Deus customizado da Nova Era. Os ateus não chegaram até aqui. Qual a saída? A prática da teologia esquizofrênica dos imanentistas supõem uma "vida nômade" de experimentações e construção/criação de seus próprios códigos morais e ética (sentido de vida). A prática da teologia neurótica ou paranóica dos transcendentalistas supõem, por outro lado, uma "vida sedentária" de espera(nça) e manutenção/preservação de sua moral e ética, pois acreditam vinda de Deus. Qual destas você escolhe?

Foto do escritorPhD. Roberto Simões

Victor Turner nos alerta ser bastante comum que os aspectos cognitivos adquiridos nos espaços liminares (samadhi) sejam simbolizados pela fisiologia humana como “modelo para ideias e processos sociais, cósmicos e religiosos”. Essas metáforas corporais, continua o autor, são “uma variante de um tema iniciático amplamente difundido: o de que o corpo humano é um “microcosmo do universo” (TURNER, 2005 p.153). 

O corpo é encarado como uma espécie de modelo simbólico para a comunicação de gnosis, do conhecimento místico sobre a natureza das coisas e de como vieram a ser o que são (Ibid.).

O que o iogue moderno busca com a libertação (kaivalya), pode não estar em um mundo celestial - como os cristãos - mas transformar a si-mesmo e a sua própria realidade (social). Dito de outra forma, para os iogues modernos, que renunciaram viver afastados da sociedade, kaivalya e samsara (o mundo "real") coexistem na mesma realidade, mas numa geografia suprassensível diferente (USARSKI, 2007, p.190).

Samsara, considerado o mundo como normalmente experienciamos (JOHNSON, 2010, p.286), continua sendo a geografia espiritual geradora do sofrimento, portanto, aonde nossos corpos se contaminariam com os “venenos” dos klesas (apego, aversão, medo da morte e orgulhos, todos "filhos" da ignorância). Como alienado do que o faz sofrer (klesa ignorância), o iogue sabe que sofre, mas não sabe por quê. 

A ideia de kaivalya a partir da fase moderna do ioga - que desenvolve-se nos centros urbanos das grandes cidades ocidentais – tece um novo diálogo com samsara, logo, com o outro também. Deste modo, o iogue moderno - contrariamente ao iogue medieval – precisou transformar a sua ética espiritual para obter maior alteridade espiritual em um “novo” samsara que se apresentava no ocidente. O iogue moderno abandona a vida errante nas florestas e ashrams e inicia a "iluminação" em sociedade e não fora dela. Afirmamos isso, baseando-se na passagem do ioga medieval para o moderno, quando estes abandonam seus votos de asceta renunciante e adquire um caráter de iogue atuante no mundo (SARBACKER, 2008, p.173-177).

O pesquisador Sarbacker associa a experiência advinda das práticas ioguicas com a aquisição dos iogues de certo "poder numinoso" ou estado de divindade. Segundo ele, essa divindade adquirida, poderia estar sendo associada com beleza física e um corpo sem doenças, mas também na conquista de maior discernimento sobre si-mesmo (ou viveka) na contemporaneidade (Ibid., p.177). O autor explica que essa alteridade ou distinção espiritual frente ao meio social em que vive pode estar desenvolvendo a ideia de que os rituais corporais ioguicos proporcionem ao iogue certa convicção ou fé (do latim confides) - disposição, vontade, motivação – da necessidade de transformação real do mundo em que vive e não apenas, como no ioga antigo da Índia, uma liberação espiritual em vida. Essa mudança pode ser assistida no discurso de justiça social, direitos humanos e sustentabilidade planetária que permeia as novas narrativas da religiosidade ioguica contemporânea (JAIN, 2010, p.95-129).

As deidades do ioga são representações tangíveis do numinoso poder do ioga, a representação simbólica do poder e “alteridade” (antiestrutura) através do qual o praticante de ioga se esforça a alcançar. (...) Estas [deidades, como Shiva, Krsna e etc.] contribuem na criação de um ambiente que simbolicamente represente uma realidade alternativa ou idealizada [nova geografia religiosa] que o praticante espera entrar ou fazer parte através da prática (SARBACKER, 2008, p.177).

Trabalhos recentes no Brasil corroboram com Sarbacker e Jain quando expõem relatos de indivíduos que depois de um curso de formação em ioga, mudam drasticamente os seus estilos de vida:

Eu não conhecia nada do Yoga. Eu não fazia idéia de toda a filosofia que tinha por trás. Sabia o que todo mundo sabe, que a pessoa fica mais calma que alonga, asanas  né? Eu tinha tido um problema no joelho muito sério, e tinha ficado um ano praticamente mancando. E aí superei essa fase. Teve muito de psicológico nesse meu problema do joelho, né? Eu jogava muita frustração e ele não conseguia melhorar. Resolvi que, não, tudo  bem, está certo, tem coisas erradas na minha vida e eu resolvi arrumar.

E eu vejo muito nesse sentido como se realmente várias técnicas e várias maneiras de você conduzir um estilo de vida voltado para o autoconhecimento e que consegue integrar realmente as várias facetas da vida. Desde a sua vida conjugal, sua vida profissional. A sua vida com relação com o teu corpo, com relação a tudo. Mas acima de tudo é esse grande objetivo do autoconhecimento no sentido da libertação mesmo, de moksa [equivalente a kaivalya].  No momento quando eu via o Yoga ainda como uma técnica, ou seja, ali eu vou praticar Yoga e você toma contato com certas coisas, entra em certos tipos de pontos de vista com relação as coisas e depois você entra em outras práticas de trabalho e vê que tudo  motiva para a prática de Yoga.  Hoje para mim o Yoga é um estilo de vida, uma maneira de ver o mundo e consequentemente a gente mesmo. Mas no início não era. Como eu falei eu tinha um interesse desde o início que era uma questão física (NUNES, 2008).

A questão da alteridade espiritual desenvolvida no iogue, pode o capacitar positivamente a perceber um mundo melhor para se viver, um mundo em que os klesas cessem de agir e o mal-estar e sofrimento desapareçam. As práticas de ioga desenvolveria (ou deveria) no iogue moderno a certeza (equivalente a fé), como “aquisição” de certa “divindade” que os rituais lhe proporcionam:

Os estúdios [salas modernas onde é praticado o ioga] tornam-se uma morada para o divino, um espaço numinoso que está mais perto do mundo ideal que os iogues se esforçam para criar ou viver (SARBACKER, 2008, p.177).

O Prof. Hermógenes nos ajuda a compreender essa certeza espiritual distintiva de um outro mundo a partir do ioga; mas neste, não em outro. Em sua obra Yoga, um caminho para Deus, esclarece:

Que tem Yoga com tudo isso?

Yoga é exatamente a viagem dos que, intoxicados de divertimento, acordado pelas abençoadas pancadas das vicissitudes, saudosos da “casa do Pai”, já decisivamente convertidos, tornaram-se aspirantes ao Eterno.

Yoga é o caminho e o caminhar que conduzem a Deus.

Você, ainda estranhado, poderia perguntar: “Como pode uma ginástica fazer tanto?!”

Yoga não é ginástica. Nenhuma ginástica, só, é Yoga. Há uma ginástica muito inteligente chamada Hatha Yoga que ajuda o caminhante, dando-lhe adequadas condições físicas e psicológicas para que vença as obstruções e as fadigas do caminhar. Mas é apenas um aspecto particular de todo um nobre sistema que, alquimicamente, leva a alma a Deus (HERMÓGENES, 2005, p.30-32).

Se o que mais nos afasta de Deus e nos vincula ao mundo é nosso imperfeito amar, é a nossa incapacidade para o verdadeiro amor, nosso caminhar tem de ser não contra o mundo, mas a favor de Deus. Será a universalização e divinização de nosso amor que poderá cortar as amarras de servidão e dar-nos, na unificação com o Deus que amemos, a libertação salvadora (Ibid., p.20).

É errôneo pensar que o yoguin, pelo fato de ter despertado e visto o falso valor do que é mundano, deva abandonar a sociedade, a convivência, e partir para uma floresta, para a beira de um rio ou para uma caverna na montanha. Nada disso. Agora, desperto e armado de discernimento, mais do que antes, pode e deve participar, e de forma mais fecunda (Ibid., p.184).

As narrativas poéticas de Hermógenes nos conduzem a julgar que ele mesmo tenha atingido essa alteridade espiritual que lhe dava esta fé inabalável do poder do ioga como “caminho para Deus” ou “libertação libertadora”, argumentados por Sarbacker.

Os processos rituais do ioga, para cura ou “crescimento pessoal” tem estabelecido dialética com a saúde, como já apontamos. No entanto, a cura (no sentido de illness ou restaurativa) não deve estar centrada na renúncia do mundo como outrora. A cura restaurativa do ioga (em contraposição a cura alopática) se direciona a um novo kaivalya dessa perspectiva. A ética espiritual ioguica moderna abrange uma transformação na forma e no mundo propriamente dito em que se vive. A libertação final, kaivalya, logo, pode residir na modificação do próprio “samsara” em mundo melhor que se inicia sempre com um corpo purificado.

O Brasil, na perspectiva cosmológica do yoga, pode ser encarado como o Samsara a ser transcendido pelos yogis brasileiros. A luta dos veganos para os maus tratos dos animais, a da preservação das matas que todos os yogis empreendem, a menor quantidade de medicação ingerida, o uso de bikes ao invés da poluição causada pelos veículos automotivos e demais tópicos sociais em que os yogis no Brasil (e no mundo, mas me dirijo aqui a nós por questão ideológica mesmo) se engajam são reflexos de um desejo de mudança social.

Um yogi brâmane antigo como Patanjali ou Hatha-yogi medieval como Matsyendra não pensavam em Samsara como desejo de mudança social. Mas de fim do sofrimento existencial. A estrutura social em castas indiana não foi sequer tocada por eles em nenhuma de suas escrituras. Isso vai ocorrer entre os budistas (tanto que eles não foram incluídos como darsana hinduísta). A crítica dos Hathas da linhagem Natha estava mais no desvirtuamento ético dos brâmanes, como se lê em passagens do Gheranda Samhita, sobre a simples execução mecânica de suas fórmulas mágicas rituais e não obediência à moral contida nelas, como a importância do corpo. Algo resgatado pelos Nathas e da filosofia de Shankara. 

Assim, quando afirmo que o Brasil é Samsara, desejo chamar a atenção para o entrelaçamento social, político e religioso/espiritual que o Yoga e os yogis fazem parte e são indissociáveis. Por trás do “Yoga para dor nas costas” está a crítica à medicina convencional cientificista; por trás do “Yoga aumento da agilidade mental” está cidadãos perdidos em busca de sentido para a vida, e por trás do “Yoga para ansiedade e depressão” está uma parcela da sociedade brasileira cansada e alienada de si-mesma espiritualmente.



Algo bem interessante vem ocorrendo com o ioga no Brasil. Ele vem ajudando a transplantar uma nova religião no Brasil, o sikhismo. A escola de ioga 3HO Brasil de Kundalini ioga é uma instituição com todos os princípios éticos e mística da religião Sikhi, mas com roupagem de ioga (ou o contrário). O sikhismo é uma religião que surge na Índia em resposta a instabilidade política e social entre o hinduístas e o muçulmanos - assim como outros movimentos religiosos. Do sincretismo entres estas duas religiões (Hinduísmo e Islamismo) nasce o Sikhismo. A pesquisa ainda é embrionária, mas sete são nossas hipóteses para compreender a imbricação entre os sikhis e os iogues no Brasil:

1- O Shikismo vem do Hinduísmo e Islamismo (especificamente nasce entre os místicos sufis), entretanto, nenhuma dessas duas religiões são "populares" no Brasil ainda, "não pegaram" por assim dizer. Mas o ioga "pegou", deu tanto certo que se desvinculou do Hinduísmo e da Nova Era e já possui singularidades brasileiras (como venho discutindo a quem me acompanha). Deste modo, ao invés do Sikhismo “começar do zero” no Brasil, vem entrando por uma versão “oriental” mais popular e "adaptada" – a outra seria o Budismo, mas a teologia ioguica tem maior similaridades do que a budista para os sikhis introduzirem seus bens de salvação, acreditamos.

2- O ioga brasileiro é cool hoje e muito mais high society. E os sikhis pertencem também as classes sociais favorecidas economicamente. A proposta soteriológica e ética sikhi prospera mais entre a elite de uma sociedade do que os "populares".

3- Os sikhis também, como os iogues, possuem um certo apelo corporal, haja vista a questão das artes marciais entre os sikhis (Gatka), sobretudo entre os da ordem Khalsa. Com certeza, no transplante do sikhismo ao Brasil via Kundalini Ioga, ressignificações ocorrerão. Isso sem contar quando a Umbanda e o Daime se aproximarem destes;

4- Também me chamou a atenção a questão da musicalidade ser bastante importante aos sikhis. A música é a base da doutrina sikhi, a escritura Sri Guru Granth Sahib é composto por 1430 páginas de poesia musicalizada (shabads) e os sikhs se reúnem nas Sangats onde cantam esses hinos. Praticamente todos os gurus sikhs foram músicos; um deles até criou um instrumento para as orações sikhs. Essas sangats – a versão sikhi dos satsangs e kirtans ioguicos - lembram um pouco o modelo dos Hari Krishna. Algo interessante para se conjecturar entre o microuniverso ioguico brasileiro, pois a onda ioguica de satsangs e kirtans, de cinco anos para cá no Brasil, tem se elevado consideravelmente. O que pode indicar maior envolvimento com a mística em detrimento à devoção as escrituras.

5- O ioga hoje muito mais do que as suas escrituras, a sua veia mística vem crescendo consideravelmente. Isso é deveras interessante, pois entre os sikhis, não há sacerdotes ou guias humanos de nenhuma espécie. Não há assim um proselitismo como o cristianismo ou islamismo; e o ioga no Brasil - apesar de uma crescente de cinco a dez para frente entre algumas linhagens mais vedantinas e de uma procura por aprender o sânscrito – nunca houve uma tendência de maior impacto de divulgação de sua doutrina, pelo contrário, muitos iogues se percebem portadores de uma perspectiva muito mais “peregrina” do que de “conversão”. Em palavras mais simples, há uma tendência no ioga brasileiro, por "tradição", de busca individual do que "seguir um guru". Isso é recente e ocorre, sobretudo, entre devotos de um swami indiano e outro brasileiro, recém iluminado (Dayananda e Prem Baba). Deste modo, o sikhismo e a mística se assimilam em certo grau com as práticas corporais ritualísticas ioguicas de “contato direto” e sem intermediações de mestres ou gurus com o divino.

6- Uma última característica sikhi, entretanto, os diferenciam bastante do ioga brasileiro. Enquanto os iogues brasileiros desenvolveram uma verve muito forte de cura e terapia, quase xamânica mesmo; o Sikhismo, pelo contrário, rejeitam 75% dos Vedas, e o Ayurveda é um deles. E pasmem, o ioga também é um deles(?). Será que surgirá um ioga, por influência sikhi, que rejeitará o ayurveda e toda a aproximação do ioga com a terapia-cura? Se sim, a rachadura entre os iogues-híbridos e os tradicionalistas (leia mais sobre essa temática em O ioga na América Latina aqui mesmo) se acirrará, ou talvez uma terceira designação ioguica surgirá, mas agora do sincretismo com o Sikhismo(?).

7- Contextualizando tudo isso pensamos que o sikh Iogue Bhajan (líder do 3HO Kundalini Yoga) tenha descoberto uma forma inédita de difundir a ética sikhi com o ioga no ocidente, talvez, para adquirir mais "credibilidade" a uma religião incipiente no Brasil e em outros países ocidentais, que não conhecem o Hinduísmo muito bem e percebem o Islamismo pelo extremismo de seus devotos. Enfim, é muito material e muito mais especulação nossa, mas vale o post. Uma pesquisa de campo ajudará a compreender melhor também como os sikhis (e os iogues) encaram a si mesmos e os outros. Mas o que aguardo mesmo é a Pomba-Gira e o Mestre Irineu de turbantes cantando entre os sikhis brasileiros.

Seja Bem-Vinde

Você adentrou um espaço em desconstrução. Desacreditamos metafísicas, por isso bricoleurs ou feiticeiros do Yoga quebrando a demanda de todo maya que lhe enfeitiça. Mas entenda, tudo é maya.

bottom of page