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Não se avexe não quem vive nas megalópoles brasileiras, você não está sozinho em suas angústias. Estudo mostra que 2 em cada 10 paulistanos sofrem com a ansiedade, ou seja, sentem medo por algo que não sabem identificar. O sintoma fisiológico mais frequente dessa desordem mental é a resposta luta-fuga do estresse: pupilas dilatam, sangue vai para os músculos esqueléticos, coração dispara... enfim, todas as reações que a meditação - cerne da prática ioguica - influi inversamente.

Não é coincidência, portanto, que o relaxamento, advindo das práticas rituais ioguicas, tenham adquirido status de espiritual, e o estresse o equivalente contemporâneo dos klesas ou os "venenos" que "intoxicam" os corpos (físico e "sutis"): ignorância, apego, aversão, medo da morte e egoísmo. A prática de ioga visa "desintoxicar e purificar" por meio de posturas, respiratórios, mantras e mais uma infinidade de repertórios. O vegetarianismo, o veganismo e a alimentação prânica (viver de luz/prana) está ligado estritamente a essa perspectiva de limpeza transfisiológica.

Em suma, o sistema de crenças do ioga vem se reformando e sincretizando-se no contato com a cultura brasileira. Daimistas cantam mantras, pais-de-santo praticam 108 suryas antes das giras, católicos e evangélicos começam a demonizar as divindades e práticas ioguicas, além de iogues que já associam Shiva com Exú e Brahman com Oxalá. Tudo é permitido na antropofagia brasileira.

A ansiedade de quem vive nos grandes centros urbanos brasileiros vem produzindo novas narrativas religiosas e o ioga integra esse contexto biopsicossociocultural. Samsara por exemplo - o mundo produtor dos klesas em última instância, e a quem a "iluminação" do ioga visa findar (ou iluminar) - para os iogues brasileiros é a própria megalópole que vivem. O êxodo urbano de iogues para o interior ou uma casa mais "ecológica" reflete essa ansiedade e o ioga seu "novo estilo de vida". Assim como o Protestantismo se aliou muito bem ao "espírito do capitalismo" (leia M.Weber), o Ioga visa responder aos anseios (ou tenta) de uma camada da população urbana posmoderna, favorecida economicamente e desencantada com as suas antigas instituições religiosas (Cristianismo, Islamismo e Judaísmo) a uma alternativa ao estilo de vida produzido por esse sistema cultural.

É lícito pensar no Ioga (e demais "novas espiritualidades" que surgem com as terapêuticas hippies - antigas "alternativas") como um complexo sistema cultural (leiam C.Geertz em seu capítulo Religião como sistema cultural) em processo ainda que, consciente ou inconscientemente, busca responder aos "efeitos nefastos do capitalismo de consumo" (entre aspas, pois é o consenso entre o microuniverso ioguico) de indivíduos jovens (20-35 anos) que sonham (e sem ironia ou sarcasmo) com um mundo melhor; utópico, mas ainda assim necessário nutrir essa esperança, pois são dos sonhos que nascem melhores - ao menos diferentes do que a que está em vigência - realidades.


Foto do escritorPhD. Roberto Simões

É bastante comum que a interpretação da ética ioguica (leia-se a vida que vale a pena no ioga) seja traduzida por seus contemporâneos (tanto os tradicionalistas, quanto os híbridos) como de esperança de um mundo melhor se todos meditarem e adotarem as dogmáticas ioguicas (não-violência, não roubar, não-mentir, ter a sua sensualidade, dedicar a sua vida a Deus, realizar rituais corporais específicos e etc). Está implícito nas narrativas de líderes, santos, comentaristas e iogues uma visão positiva da vida, pois já seríamos perfeitos em si-mesmos e o futuro é de nos reencontrarmos com a felicidade que já somos, mas não sabemos. Ao contrário da ética cristã que propõe um nascimento a priori pecador, os iogues creem no nascimento da alma imaculada mas que se contaminará no contato com vida. Enquanto cristão passa essa vida sofrendo na espera do paraíso eterno em outro mundo, o iogue nasce puro, mas sofre por ignorância. A esperança iogue é encontrar o "paraíso" na imanência (kaivalya) mas com vistas na transcendência, pois no final o iogue visa não mais reencarnar e sair da roda de samsara, que aqui mesmo aonde estamos agora.

Mas essa perspectiva feliz da vida, na minha compreensão pode ser analisado de forma trágica (no sentido filosófico) lendo as escrituras ioguicas; e buscarei, neste pequeno ensaio, ressaltar três: o Nada que encontramos nas práticas meditativas, cerne do ioga; o confronto com a guerra, metáfora explícita da vida, no Gita, uma das narrativas míticas fundantes do ioga; e a ressignificação moderna das causas do mal no ioga (klesas: apego, aversão, medo da morte e orgulho) por indicadores fisiológicos espirituais.

O Nada

Há uma esperança do ioga como libertador das agruras do mundo. Meditar nas praças para abaixar níveis de violência, posturas para dor de cabeça, respiratórios para dormir melhor e a crença da sua filosofia tornar toda a humanidade feliz.

É de consenso também que a prática meditativa, constituinte basilar de qualquer tradição ioguica, nos confronta com o Vazio. No início da prática contemplativa são múltiplas formas e conteúdos que surgem no palco da consciência e o esforço do iogue é mais e mais ir diminuindo o número de objetos até fundir-se totalmente com ele. Seja um mantra, a chama de uma vela, a imagem divina ou a atenção passiva dos próprios pensamentos; o que se objetiva é não haver mais o objeto da meditação, mas sim a fusão (samadhi).

A própria definição do ioga nos conduz a essa afirmação: o ioga é a paralisação voluntária das modificações conscienciais (ciita-vrtti-nirodha). Quando essa experiência ocorre o iogue experimenta a sua verdadeira natureza, diz suas escrituras. A verdadeira natureza humana para o ioga é a que não mais se modifica pelas energias que o atravessa nos seus encontros com o mundo.

Os textos ioguicos esclarecem que a Perfeição que Somos é rompida quando nos identificamos erroneamente com os afetos do mundo. Mas interrompido os reflexos ilusórios do corpo-mente com o mundo, alguns comentadores dizem que vivenciaremos um estado aonde não sofremos mais. O sofrimento, continuam, advém da ignorância de não percebermos que somos uma alma imaculada, que não se contamina com as imperfeições do mundo.

Mas o que nos resta quando cessam os objetos conscienciais? O que permanece quando deixamos de ser afetados pelo mundo senão a experiência de um enorme Nada que somos? Um ser imperecível, que não se modifica. O Absoluto do ioga (equivalente a Deus) é um profundo silêncio.

Somos um Nada, mas sendo assim podemos nos esforçar para sermos só o que pudermos ser; ou melhor dizendo, compreendendo a "mecânica" das afecções do mundo em nós, imaculados por natureza (purusa), não deixaremos mais ser levados tão facilmente pelas oscilações de humor e emoções nefastas. Vivenciando a cada meditação (leia-se todo o complexo que circunscreve o ioga) compreenderemos mais e mais o que não somos (leia-se que não se deixa contaminar) e perceberemos a transitoriedade da vida, assim como os encontros que passamos e iremos passar. Tudo transitoriedade, tudo um instante.

Por isso que a postura do cadáver, o ásana final de qualquer prática ritual de ioga, dura menos de 30 segundos nas aulas por aí. Não é coincidência também que um dos klesas (ou causadores do "turbilhão da consciência" ou vrttis) seja o Medo da Morte, pois o que o ioga nos revela é a tragédia que a vida se revela a todos os seres humanos. Mas, abraçando com coragem o Nada que somos e superando a angústia existencial de se viver, alcança-se, para alguns poucos, o sentido que você deseja construir para si-mesmo ou apenas aceitar o Silêncio eterno que o constitui.

A Batalha no Gita

Uma das cenas mais emblemáticas na narrativa mítica do ioga é a do início da batalha em que Arjuna conversa com Krishna no clássico Baghavad Gita. Nesta passagem, quando há os dois exércitos no campo de batalha prontos para a guerra e Arjuna se apequena e decide não lutar, Krishna literalmente pára o tempo e ensina os princípios do ioga ao seu jovem discípulo. O espaço que se cria por Krishna é de reflexão da vida. Podemos até mesmo pensar nos períodos melancólicos e de depressão que se acompanham a todos períodos de angústia existencial e amadurecimento em que todos passamos em uma ou mais vezes na vida e, no qual Arjuna representa. Diante de tanta bestialidade do mundo, aonde não encontramos mais sentido na vida, nos amedrontamos e deliberadamente não conseguimos dar mais um passo a frente e nos encolhemos, fechamos as janelas do quarto e percebemos a nossa potência de agir diminuída e os encontros infelizes se avolumando.

Essa pode ser a representação na parada no tempo nesta cena e a guerra entre os iguais, pois há parentes de Arjuna no exército inimigo que ele precisa travar uma sangrenta luta. Não faz sentido ao imaturo e moral herói, que é você, eu e todos os iogues que ele representa com o medo de se encontrar consigo mesmo e os infortúnios da existência, mas sobretudo, de enfrentar tudo o que ele acredita ser injusto lutar; diante disso, ele toma a decisão covarde de sair de cena, que pode ser aventado aqui como um período de depressão também, aonde não se tem forças de qualquer atitude. E a saída dada a Arjuna por Krishna não é outra a não ser matar e sofrer o risco de morrer, mas nunca de não prosseguir. Não houve soluções diplomáticas, palestras motivacionais de auto-ajuda ou disposições de valor; não, a decisão é se lançar a guerra, metáfora da própria vida. É óbvio que Arjuna vai magoar e sair magoado, é evidente que sairá ferido e machucará outros tantos, não há dúvidas que é sangue sobre sangue que amanhecerá manchando o corpo e a alma do nosso herói, pois na vida não há final feliz. Neste mito épico e crucial no entender do ioga, Krishna, figura que representa o iogue-ideal, o próprio Deus, não deixa dúvidas que viver perigoso, já dizia Guimarães Rosa. E no fim, a questão é aprender a lutar a guerra e não buscar uma saída pacífica aonde ninguém se fere. Não há guerra sem tragédia.

Causas modernas do Mal ioguico

O ioga em suas escrituras sempre deixou evidente que as causas do Mal é a ignorância, como já adiantamos na subseção primeira. A ignorância (ou ilusão se assim você preferir) é a mãe dos comportamentos nefastos de apego, aversão, medo da morte e orgulho ou egoísmo. Em outros textos, mas sobretudo na minha tese de doutorado, trato isso com maior propriedade (você até mesmo ouvir a tese inteira comentada por mim em podcast gratuitamente), mas de forma geral, entendo que a ignorância e suas consequências se ressignificaram na contemporaneidade quando a fisiologia biomédica se encontrou com a espiritualidade ioguica. Mas essa ressignificação com a ciência não desencantou o ioga, pelo contrário, deu maior legitimidade as suas escrituras. Hoje, a ignorância parece advir dos estados de estresse psicofísicos e, devido a isso (a uma referência empírica "confiável" e "verificável" pela ciência), ninguém mais se preocupa se vive apegado, aversivo, temendo a morte ou orgulhoso. Dito de outra forma, pode até se compreender que esses comportamentos podem ser nefastos, mas o ioga pensa os "controlar" com a prática de ioga aferindo níveis de estresse em si mesmo. O estresse no ioga vem ganhando um caráter espiritual por assim dizer, ele reflete as flutuações da alma em última instância. Quanto mais estressado ou ansioso tanto quanto pior para a alma iogue encontrar a sua paz interior.

Pois bem, essa análise fisiológica da espiritualidade ioguica nos permite utilizá-la como uma ferramenta sociológica e filosófica também do microuniverso ioguico contemporâneo. Sabe-se que tomando emprestado conceitos fisiológicos para explicar a espiritualidade do ioga moderno, podemos expandir para uma compreensão do funcionamento do corpo do iogue e suas implicações soteriológicas (palavrão da filosofia que designa a proposta de libertação espiritual de uma dada religião, no caso o ioga). Se os iogues contemporâneos cambiaram o termo klesa ou causa do mal no ioga para estresse, é evidente que essa mudança reflete transformações na sua perspectiva de vida também. Todas as religiões e espiritualidades no confronto com novas sociedades e culturas se ressignifica para continuar viva e a história é coberta de exemplos que me abstenho de elencar aqui por questões de espaço. Dessa forma, o que antes (klesa-mãe Ignorância) era uma categoria imperativa e determinativa para uma Índia de sociedade estratificada, portanto, de nenhuma mobilidade social; as variantes emocionais eram de certo grau menor e a resignação frente a vida era maior, ou seja, ninguém perdia muito tempo (na Índia do séc.II aC quando o ioga fora sistematizado pela primeira vez) pensando na vida que poderia ter sido e não foi por incompetência "empreendedora" sua ou de sua família. A vida era assim e ponto. Sem dúvidas a sociedade de castas indiana influencia na ética do ioga daquela época, como a nossa hoje, democrática-liberal de consumo influencia a do ioga dito moderno, pelo simples fato de existir como espiritualidade na era moderna (ou pós-moderna).

A transformação (em andamento ainda) do ioga contemporâneo, que percebe o estresse como causa-efeito ao mesmo tempo do Mal no ioga (leia-se o que causa o sofrimento humano), nos torna lícito supor também, mantendo a linguagem fisiológica de sua espiritualidade, que mais do que se buscar um estado eterno do fim do Estresse-klesa-Mal, há uma percepção mais real na tragédia da vida. Digo isso pois não há fim do estresse na vida, mas um jogo eterno de busca por equilíbrio dinâmico mas nunca estabelecido eternamente, que denominei de Homestase Divina. A Homeostase Divina como correspondente mítico-fisiológico contemporâneo de Kaivalya (ou Estado Último do ioga, uma espécie de "Nirvana ioguico") faz sentido se pensarmos em uma espiritualidade ioguica em dialética com a cultura pós-moderna e não monolítica como alguns teólogos ou iogólogos o compreendem. Em outras palavras, o ioga dos nossos tempos, período este de secularização, de descrédito as instituições religiosas e de privatização religiosa possibilitou aos iogues compreenderem o lado trágico da vida. Ao invés da busca pela felicidade eterna pós-Kaivalya, os iogues atuais visam compreender a dinâmica da vida, representada pela busca por uma Homestase Divina, que nunca tem fim, mas está em constante e dinâmico jogo de impermanência na luta contra o Estresse-Klesa-Mal, causador e causa das flutuações da consciência.

Considerações Finais

Ao invés de uma sociedade sem mobilidade social, portanto, mais previsível e ordenada; a sociedade líquida em que vivemos pode ter acarretado mais clareza da dimensão inexorável de tristeza da vida, e os iogues ao invés de buscarem a utopia de um mundo de 7 bilhões de habitantes felizes, mais maduros parecem se encaminhar para a coragem de assumir o Vazio e o Nada que são por "natureza". Um enorme Nada atravessado de energias que o movimentam ora para alegria, ora para tristeza. Essa é uma guerra que quem se apequenar morre inerte no canto como uma pedra sem coragem de levantar a cabeça e se erguer sozinho. A vida, já ensinara Krisnha, é um campo de batalha. A percepção do ioga contemporâneo frente a novos desafios do seu próprio contexto cultural, globalizado e com uma economia liberal e de consumo que, ao contrário dos tempos ioguicos de outrora com sua vida estratificada, compreende hoje todos iguais e não separados eternamente por distinções sociais e espirituais. Essa perspectiva igualitária pediu aos iogues transformações; ao invés de uma visão de vida com final feliz, o ioga veio se construindo (e ainda o está) como possível de momentos de alegria entremeados de tristeza (homeostase, lit. a busca por um equilíbrio sempre rompido por agentes estressores). O ioga, portanto, carrega em si também uma versão trágica da vida, de impermanência, de vazio e Nada.

Por mais afastado, eu sei, da versão positiva e feliz que o ioga moderno exorta, as narrativas ioguicas também podem revelar um cenário mais pessimista, mas nem por isso de menor valor ético e apequenador da potência humana. Muito pelo contrário, a possibilidade de uma visão trágica no ioga pode produzir pessoas menos iludidas e esperançosas de soluções prontas que este ou aquele iogue oportunista pode se autodeclarar portador. Quando estes perceberem que o ioga não promete o fim do sofrimento mas um caminho espiritual de conviver com os seus próprios demônios (lembrando de o diabo são os outros como já anunciava o filósofo), numa luta constante e dinâmica em busca de um equilíbrio benfazejo dos afetos que nutre com o mundo, mas sem falsa esperança de que em 5, 6 ou 10 passos alguém, além de você mesmo, possa lhe restituir a beatitude perdida.

A perspectiva passa longe da felicidade eterna, do fim do sofrer, mas mergulha de cabeça no abismo trágico da vida. Essa perspectiva não contempla um final feliz pois o mal e o bem sobrevivem e não há nada que se possa fazer para sanar essa equação. O fim é a morte e não a vida. Não há como promessa um mundo mais feliz com pessoas abraçando árvores e salvando baleias enquanto comem alface, seja aqui ou em outro mundo. O ioga nos revela o lado trágico do existir como parte imanente da existência e não como algo possível de estar liberto. Kaivalya não é o fim do sofrer, mas a tomada de consciência deste. O fim da ilusão, no fim revelada pelo ioga, é o da busca do paraíso.

Quando confrontado com o Nada e o Vazio que somos, não há promessa de vida feliz eterna como se propaga os mais ilustres mestres e líderes do ioga, mas da aceitação do jogo de afetos do mundo em nós e com os outros. Por isso que muitos fogem da meditação sem floreios e cânticos que podem muito mais trazer uma aura de fuga do que introspecção para o Silêncio profundo que somos. Por isso que todos ficam obsessivos com as posturas circenses e os resultados estéticos (no sentido físico, pois se fosse o filosófico até que seria bacana) e se "esquecem" da contemplação. Pois contemplar si-mesmo é angustiante.


Nos primeiros dias do mês de abril do ano de 2016 os iogues no Brasil foram surpreendidos por um projeto de lei na câmara dos deputados federais buscando regularizá-los (e enquadrá-los) como profissionais terapeutas com carteira assinada e tudo. Imediatamente centenas de iogues da ala mais ortodoxa e responsáveis por resgatar a “essência do ioga no Brasil”, entraram com uma petição, convocando a todos a assinarem contra a regulamentação em prol do “Free Yoga”. Bem, a partir daí foi uma algazarra só. Estes alegavam que essa regulamentação estava sendo utilizado como estratégia de um mestre antigo visando arregimentar mais adeptos.

Por outro lado, alguns alunos (ou clientes?) se perguntavam: Mas, por quê não regularizar a profissão já que pagavam pelo “serviços espirituais” prestados no mercado religioso brasileiro? Outros tantos iogues, sentindo-se um pouco mais “livres” da ala mais tradicionalista queriam discutir o assunto, enquanto outros tentavam compreender o que era “petição” ainda... Havia tanta confusão no ar sobre que raios de papel o ioga teria na sociedade brasileira que nem se atentaram por meditar e orar neste momento em busca da “iluminação” da questão. E assim, queriam discutir abertamente a questão e não apenas seguir uma representação de uma outra linhagem (ou algo similar) – que por sinal não respeitavam tanto assim -, já que não se sentiam assim nem tão ortodoxos e, por isso, adoravam combinar as crenças do ioga com as da umbanda, do santo daime, do espiritismo kardecista, dos católicos e até dos evangélicos! Por quê não? Em seus altares acendiam-se velas e incensos tanto a Shiva como a Oxalá, algumas shalas – espaços ritualísticos da prática ioguica – possuíam até mesmo uma tronqueira – espaço sagrado das religiões afro para exús - na porta.

O que se criou foi um verdadeiro pandemônio e em poucas semanas ninguém mais se entendia. Desde 1950 mais ou menos que o ioga chegara no país e veio de carona de ordens ocultistas e sempre meio misturado com a magia e a alquimia. Para ganhar autonomia, o ioga foi aos poucos se afastando da magia e se aproximando da ciência biomédica, pois acreditava que a ciência poderia lhe empoderar com maior força e legitimidade do que os sacerdotes bramanes e gurus místicos do Hinduísmo, mesmo porque o Hinduísmo é uma religião que ninguém conhece no Brasil, não é mesmo? Pensava consigo mesmo. Assim, o ioga foi pagando o seu preço e se assemelhando mais como uma fonte de condicionamento psicofísico e terapêutico do que filosofia ou religião.

Mas agora a situação se agravara. Essa petição exigia que os iogues se posicionassem sobre quem e o que eram. Fora chamado o momento dos iogues declararem a sua verdadeira identidade: ou uma atividade laica e profissionaliza-se, esquecendo vossos deuses, ou assumia de vez toda a sua religiosidade mágica e retorna - de verdade - a sua essência sem aspas. Realmente o panorama fechou o tempo de repente ao microuniverso cósmico do ioga brasileiro. Foi tão avassalador e tão perturbador que os limites do que é ou não ioga desaparecia. Alguns sadhus riam, pois como já iluminados, percebiam a ilusão de se afirmar o ioga como laico, já que como caminho místico-religioso, ser iogue assume a sua porção de direito: de vocação e disciplina ritualística e não de profissão no mercado de trabalho. Mas, mesmo estes seguros de vossas realidades místicas sentiram-se surpresos com tamanha repercussão social, que julgaram ser necessário uma intervenção divina, pois se o ioga no Brasil não se autodenominasse com maior clareza, suas vidas de sadhus também correriam perigo; e o perigo dos mais baixos mesmo, pois estes eram sustentados por seus discípulos; e transformando-se em profissionais de ioga, seus devotos se tornariam em clientes e o ashram em uma empresa. Sendo empresa, poderiam vir a bancarrota e era isso que o futuro parecia prometer.

O ioga sendo esquecido como fenômeno espiritual não haveriam mais retiros para os iogues organizar, peregrinações à Índia ao qual ofertar aos adeptos irem e muito menos pagamento de workshops e aulas sobre como obter a tão almejada Bem-Aventurança em praias e resorts paradisíacos. E, com isso, os sadhus e todos os seus discípulos precisariam voltar as suas úmidas cavernas, escritórios ou à casa dos pais.

Com isso em mente – a ideia de encontrar uma maneira segura do ioga viver em harmonia dentro da cultura brasileira, já que em outros países deu-se o jeito deles e na Índia, há séculos encontraram o deles juntando o samkhya com a entrada de Isvara e transformando a religiosidade mística ioguica em darsana ou sendo incorporado por outras religiões como o Tantra, o Budismo e outras. Era um enrosco tamanho que só os indianos entendem, assim como só eles também sabem quando é o momento certo de desviar a 100km/h o ônibus na autoestrada da frente de outro veículo na mesma velocidade no último instante a colisão.

Os sadhus, gurus e brâmanes brasileiros se reuniram para invocar então a presença de seus deuses com as divindades da religiosidade genuinamente brasileira para se consultarem e saber qual o melhor jeito de resolver a situação. Deste modo, Brahma, Visnu, Shiva e seu filho Ganesh foram até um terreiro de Umbanda solicitar respostas as suas mais profundas angústias em terras verde amarelas. Afinal, o Brasil era um país promissor na proposta expansionista para a soteriologia ioguica. Resolveram pela umbanda, pois mesmo o kardecismo ter se iniciado na França, o acharam mais católico do que qualquer outra coisa. O Cristianismo não era brasileiro e se impôs a força, igual ao Hinduísmo, mas na Índia foi outra história. O candomblé estava crescendo bastante até mais que a Umbanda, mas só ela havia se infiltrado e crescido de forma autenticamente brasileira e era hábil e experiente em se livrar tanto da perseguição dos capitães do mato, depois da polícia estatal e hoje dos evangélicos que continuam os hostilizando.

Não eram problemas como esses da Umbanda que o ioga sofria agora, mas talvez uma ajudinha de dividades que chegaram aqui a mais tempo poderiam ser de grande valia, ao menos foi isso que o prudente Visnu pensou. A pergunta mesmo que Shiva e Brahma queriam fazer era o contrário dos deuses africanos, pois estes brigaram para serem reconhecidos como religião e, de quebra, ainda ganharam o direito de exercer a sua magia freelancer, mas não conseguiram na época por um mercado religioso dominado pelos cristãos. E os iogues agora, o que buscavam? Pasmem! Se queriam ou não continuar com os seus deuses. Sim, pois perceba, se o ioga se declarar laico, científico e/ou filosofia – como alguns iogues pensam -, seus deuses serão esquecidos e deportados do país.

Sei lá - pensavam os deuses ioguicos -, quem sabe um banho de ebó de forma coletiva em todos os iogues brasileiros mais propensos a secularizarem o ioga não os dariam uma visão mais clara que nós - Shiva, Visnu, Brahma e Ganesha - precisamos de menos ciência biomédica e mais manipulação mágica de prana e devoção ritualística em seus altares para que consigamos ajudar nossos devotos a se comunicar “melhor” conosco, não daria conta do recado? Poxa – se perguntavam - por quê alguns espaços sagrados de prática e estudo ioguico no Brasil não possuíam nenhuma imagem deles ao menos? Orra, falta de respeito e consideração, resmungava Ganesha, tentando conter seu pai da ira. Shiva, por seu lado, queria destruir todos, inclusive seu filho que não conseguiu proteger ninguém e, muito menos, trazer sabedoria aos iogues brazucas que só pensavam em levar mais e mais turistas para Rishikesh – sem contar cidades que não os cultuavam, como Machu Pichu e Tókio!? Que raios é o ioga no Brasil!? Logo atrás de Ganesha, Brahma mantrava o Om, sempre que lembrava da marca de cerveja da Ambev com seu nome. Que país mais doido esse que deixamos trazer o ioga. Sempre disse que não deveríamos ter cruzado o Equador.

O ioga brasileiro estava sendo mal administrado, as lideranças ioguicas se esqueceram ou foram engolidos pelas altas somas de dinheiro que giravam em torno dos cursos de formação de mais iogues comerciais. Shiva puto, em nataraja,, já tinha até mesmo feito falir a principal revista especializada em ioga no país. Como a umbanda também estabelecia serviços mágicos, mística forte e cura espiritual, além de seus consulentes não necessitarem afiliar-se, os deuses iogues viram na umbanda o melhor exemplo de sua empreitada de expansão soteriológica em terras latino-americanas dar certo e organizaram essa reunião num terreiro ao qual o pai-de-santo também praticava ioga antes das giras. Dessa forma, os deuses teriam um intermediador - pai-de-santo iogue - mais experiente e “poliglota” religioso, por assim dizer, entre essas duas “linguagens” religiosas místicas e mágicas.

Visnu sempre preocupado, chegou primeiro, todo organizado com uma pauta de assuntos a seguir; enquanto isso, Ganesha lá fora se recusava a entrar pois afinal, era o deus da sabedoria e da proteção e decidiu ficar na porta; nem se deu conta – como pudera -, mas estava parado, como um dois de paus, ao lado da tronqueira dos exus, mas isso eu conto mais tarde. Shiva “chegou chegando” e a Pomba Gira de cara, bateu o olho nele e gritou num canto com todo o pulmão “iiiiiaaaaa”, enquanto bebericava a sua cidra soltando uma espessa fumaça pela boca vermelha de batom barato. Brahma logo que entrou já foi se metamorfoseando em Oxalá no centro do terreiro e lá ficou meditando com quem mandava por ali, pensava, pois era o mesmo Deus Cristo dos católicos, os religiosos dominantes do país que os deuses do ioga também desejavam. Brahma, sacou na hora que, se alguém resolvia algo ali no terreiro, era Oxalá-Cristo e agora Brahma também, mas se enganou. Shiva não se fez de rogado, passou a mão na cintura da Pomba Gira acendeu um ganja e pediu a Pomba-Gira segurar mais antes de perfumar o ambiente com a sua erva o terreiro afro-brasileiro-indiano agora. Sobrou a Visnu mesmo o início da conversa.

Seu Zé Pilintra foi quem o recebeu oferecendo uma boa baforada de charuto na sua face pálida, costas e nas mãos que estavam ainda em prece junto ao peito. É mezenfiu, teus filhos tão indecisos né? – iniciou os trabalhos Seu Zé, soltando a sua risada característica rararararara – disse também para se acalmar que ia dar tudo certo, pois já estavam trabalhando nos cemitérios pra’judar ocês gente de longe né antes mesmo de pensarem em vir pra cá? Vishnu não entendeu mas ansiava por seguir a sua pauta preestabelecida em meditação anterior. Seu Zé cochichou algo no ouvido de seu cambone, riu de novo e sai de lado com a sua dança característica. A Visnu restou apenas esperar e observar, ele não imaginava o que Zé proporia a ele.

Enquanto isso lá fora, Ganesha meio emburrado pois não acreditava em tal resolução de consultar outros deuses; para ele, a questão era simples: eliminar todo o hibridismo do ioga brasileiro e instituir um retorno ao sistema de castas e ao sectarismo consequente dessa atitude. Seu pai e Visnu sempre o lembrava que era necessário se adaptar, pois o Brasil não era a Índia e nem a Índia era a mesma da época dos Vedas, Patanjali ou Shankara. Diziam a Ganesha que, como ocorrera no período medieval indiano com os nathas e Matsyendra – discípulo aplicado de seu pai Shiva -, seria necessário calma para mais uma fase de transição. E lembravam a ele também o difícil trajeto do ioga no continente latino americano. Foram mais de 70 anos até que os primeiros iogues indiano resolvessem perceber a expansão tunpiniquim do ioga e quando isso ocorreu, o ioga já estava bricolado com outras tradições religiosas e era importante demonstrar respeito se quiséssemos manter o ioga verde-amarelo vivo ainda.

Relembrando essas palavras Ganesha é chamado a atenção de duas crianças puxando as suas orelhas e rindo de sua barriguinha avantajada: Ei moleque, que porra que tu é?, perguntou um deles. Eu sou Ganesha, filho do Deus Shiva, divindade da sabedoria, falou orgulhoso. E vocês quem são? Os moleques se entreolharam rindo e responderam: Somos exus-mirins e protegemos a entrada do nosso terreiro aqui na tronqueira. Você é um Deus mirim também? Um dos exus perguntou. De certa forma, sim. Respodeu Ganesha. Você não quer nos ajudar? Como faria isso? É só não deixar entrar as tranqueiras que vem pra zoar o barraco, explicou um deles.

Seu Zé Pilintra abraçou a Pomba-Gira e Shiva e levou-os até uma senhora de uns 50 anos que viera ao terreiro pois suspeitava da traição do seu marido. A Pomba-Gira falou baixinho a Shiva para olhar com o seu terceiro olho e lhe dizer o que via naquela mulher. Ela está mais preocupada com o seu possível orgulho ferido do que toda a maldade que fizera quando mais moça, há sempre um preço a pagar, disse Shiva. Seu Zé Pilintra girou com os dois ainda em seus braços, iiiiaaaaa, isso mesmo Azulão! Explica isso a ela, mas sem dizer uma palavra, joga no inconsciente dela e faz essa ideia aflorar na parte consciente dela via corpo-sensações-percepções. Faz ela entender o que tem de fazer para resolver o problema dela. Shiva sem pestanejar mirou fundo nos olhos daquela mulher, conduziu dançando a Pomba-Gira se entrelaçar por trás do corpo dela e baforou dentro da senhora seu hálito de ganja. A mulher, assustada, mas contida, com tanta força de Shiva, Seu Zé e a Pomba-Gira, se arrepia flexionando forte os joelhos, a Pomba-Gira rodopia ao entorno e aquela mulher solta os cabelos e com uma agilidade que ninguém esperava encontrar em tal senhora recatada e “do lar” sente a vitalidade retornar em seu corpo e sem uma palavra ser pronunciada toma a resolução de ser mulher novamente e, com ou sem o homem a quem suspeitava de traição, compreende que a sua vida estava se resignando a uma dor do passado que iria a acompanhar em uma linha infinita de realidade se não resolvesse viver o momento presente. Seu Zé riu satisfeito para Shiva, assentiu afirmativamente com a cabeça a Pomba-Gira e ordenou que fosse chamada mais uma consulente para ser atendida pela dupla.

Brahma não abrira os olhos lentamente e observou o caos ordenado daquele “templo” e sacou na hora que, definitivamente, ali não era a Índia mas a espírito era o que buscava para compreender o que os iogues no Brasil – e eles mesmos - precisavam aprender. O brasileiro não buscava a iluminação e a vida monástica, mas um viver em harmonia com as suas próprias imperfeições. Ninguém ali alçava ser brâmane, sadhu ou guru mas, simplesmente, Ser. O ioga era necessário para este povo, haja vista que sobrevivia firme e forte, mas a vertente terapêutica e de cura por qual se enveredou no Brasil estava mais para o propósito das benzedeiras e conselheiros espirituais do que de busca de uma experiência mística definidora da vida moral. A ética do ioga brasileiro estava mais em ensinar a estes como viver nas intempéries da floresta do que edificar um templo na mata, mas sobretudo, viver sob um templo da mata, no caos.

Seu Zé olhando de longe Visnu paradinho tentando manter a calma, percebeu que ele largara já sua lista de perguntas organizadas em ordem alfabética em sânscrito e fora organizar a fila de consulentes que esperavam a ser atendidos. De súbito Visnu lia os problemas de cada um e com um gesto de mão ordenou que todos sentassem, alinhassem suas costas e juntassem suas mãos em prece enchendo-os de uma calma que obedecia ao entrar e sair do ar/prana em suas respirações pausadas. Em dez minutos a paz reinava e todos trabalhavam em uníssono. Até mesmo o som das atabaques e repiques pareciam soar no mesmo tom das músicas à Exús, Pretos-Velhos e Boiadeiros.

Quando se foi chegando ao fim do último consulente passar pelo terreiro, Shiva ouve seu filho gritando lá fora e foi lá ter com ele acompanhado por Brahma e Visnu preocupados, pois se esqueceram completamente dele no calor do trabalho que chegara a quase meia-noite já. Quando lá chegaram, ficaram estupefatos por assistirem Ganesha e mais uns 10 moleques exus-mirins dançando e uma legião de intrusos querendo entrar e barrados por eles lá fora. A algazarra era tamanha que seu Zé precisou intervir e num gesto fez desaparecer a legião e ordenar que já estava na hora de todos retornarem que o trabalho daquela foi estava chegando ao fim.

Ao final, o pai-de-santo-iogue agradeceu imensamente a visita dos tão honrados deuses e demonstrou como a respiração ioguica ujjaiy poderia ser assistido nas manifestações dos Pretos-Velhos, assim como a dança e a cantoria da Umbanda poderia se assimilar aos satsanghas ioguicos. No fim Seu Zé Pilintra e a Pomba-Gira cruzaram os braços de Shiva, Ganesha e Visnu na frente e atrás de seus corpos – com Shiva foi mais difícil devido ao dobro de trabalho – deram uma vela para cada um acender no mar, na encruzilhada e nas matas para que todos os obstáculos que a sua religião estivessem enfrentando fossem eliminados e prometeram que continuariam o trabalho por lá mesmo, no mundo espiritual dos Caboclos e Índios. Neste momento os deuses do Ioga saíram de costas do terreiro, respeitando as regras sagradas da Umbanda, enquanto as entidades afro-brasileiras curvavam seus troncos a frente com as mãos em prece em sinal de respeito as regras sagradas do Ioga.

A partir desse dia, as coisas foram melhorando no Ioga brasileiro. Os iogues foram tomando consciência de seu real trabalho e importância na vida de alguns milhares de brasileiros que praticam e professam as crenças ioguicas em prol da vida que vale a pena ser vivida; mas, sobretudo, foram desenvolvendo maior humildade frente outras cosmovisões. A adaptação de qualquer religião em formação no Brasil deve passar por essa aculturação, gerando choques e inovações. Nem sempre ocorre como desejamos ou idealizamos que aconteça e devemos – homens, mulheres e Deuses – reconhecer que mudamos e que essa transformação é a vida acontecendo em cada um dos nossos corações na aceitação de quem somos e da onde estamos.


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