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Introdução

O ioga moderno se vê envolto em uma posição identitária paradoxal e de difícil compreensão tanto aos acadêmicos que investigam os aspectos biológicos ou sociais de seus ritos e escrituras, quanto a seus próprios atores sociais (leigos, mestres ou simples praticantes). Especificamente me refiro as suas relações com a real disposição como fenômeno social contemporâneo. Me explico melhor: o ioga se confunde atualmente entre uma denominação espiritual vinculada aos valores religiosos hinduístas, e uma técnica laica de desenvolvimento comportamental, físico e terapêutico, vinculada aos saberes da Ciência (SIMÕES, 2011).

O que demonstrarei neste pequeno ensaio será uma possível chave interpretativa do ioga moderno que, ao invés de buscar defini-lo excluindo uma ou outra classificação, as une numa única perspectiva a partir dos conceitos de Campo, Habitus, Capital de poder e Sistema simbólico da sociologia de Bourdieu. Não fuja se você não for da área, encare, vai dar certo. Te conduzirei pela mão.

O fenômeno social ioga pode ser avistado como uma estrutura estruturante gerido por um corpo de especialistas que atuam em seu próprio campo espiritual. Este campo atua aonde a cura do estresse é a moeda de disputa (capital simbólico) atualmente. Dessa forma, a questão do ioga ser uma prática espiritual, terapêutica ou de condicionamento físico perde sua relevância, pois todas essas classificações estarão em disputa no mesmo microuniverso mascarando uma luta (nem sempre) velada entre seus agentes.

Ioga, ciência e Nova Era

Em complexas sociedades modernas, a secularização e a privatização religiosa autorizaram novas expressões espirituais ingressarem na disputa pela hegemonia com antigos fenômenos religiosos dominantes (BOURDIEU, 2011, p.79-98). Com isso, práticas rituais antes incorporadas exclusivamente no seio de religiões já institucionalizadas, foram transplantadas do Oriente para o Ocidente à convite do movimento Nova Era como terapêuticas espirituais (CHAMPION, 1989). Foi assim que o ioga, a partir do seu vínculo com o Hinduísmo, é transplantado para nossa cultura (MALUF, 2005).

As principais características da espiritualidade Nova Era estão em sua obsessão pela cura, no flerte com a Ciência, no caráter errante e de bricolagem de seus agentes; mas sobretudo, por se desenvolverem com mais propriedade no meio urbano das grandes cidades de economia neoliberal (AMARAL, 2000). Só no Brasil por exemplo, são mais de 14 milhões de indivíduos - cerca de 7% da população - que se declaram seguir denominações religiosas de matiz oriental de acordo com o censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) de 2010; e dentre estas, não seria surpresa (se o recenseador incluísse a opção) observar uma parcela significativa adotando o ioga entre seu sistema de crenças. O ioga por aqui vem incorporando elementos religiosos daimistas, umbandistas, espíritas e cristãos e ganhando adeptos, além de multiplicar o seu número de cursos de formação das mais diversas escolas e tradições. Ao mesmo tempo, observamos um crescente de publicações de artigos, livros, dvd’s e sites associando as práticas ioguicas com a remissão das mais diversas doenças.

Em outro estudo investiguei o quanto das escrituras ioguicas antigas foram sendo ressignificadas modernamente no seu contato com a Ciência, em específico a fisiologia. Desse flerte revelamos ao mesmo tempo iogues que se auto-afirmam seculares e desencantados, convivendo com outros mais espiritualizados e tradicionalistas (SIMÕES, 2011). Ao final do meu mestrado ainda em 2011 me interrogava como o ioga, mesmo assistindo a ciência biomédica profanar as suas práticas rituais em técnicas terapêuticas laicas de cura, conseguia ainda sustentar-se como caminho espiritual para muitos.

O que nos propomos a seguir será descrever a dialética que se estabelece entre ioga-biomedicina que, ao invés de desencantar o ioga, tem se comportado como legitimador de seu novo sistema de crenças. Em palavras mais simples, ao invés dos textos sagrados indianos, são os artigos científicos em biologia que autenticam a "veracidade" do ioga contemporaneamente.

O ioga e sua proposta clássica de Libertação espiritual

O ioga clássico se propõe em libertar espiritualmente o seu adepto das agruras da vida através de um caminho religioso óctuplo ou asthanga ioga (AI). O AI foi descrito no Ioga Sutras (IS) - texto sagrado aos iogues e concebido na Índia bramânica pelo iogue Patanjali alguns séculos antes e depois da era cristã - que nos apresenta a teoria dos klesas como o seu núcleo. Os klesas entendem os comportamentos de ignorância, apego, aversão, medo da morte e orgulho como obstáculos espirituais, pois serão eles os responsáveis em produzir os vrttis ou “agitação da consciência” (citta-vrttis). A Libertação da alma ioguica surgiria a partir da atenuação de citta-vrttis culminando na experiência mística do samadhi ou de comunhão com Deus (GULMINI, 2002, p.262-273; SIMÕES, 2011).

Revelamos portanto, três conceitos fundamentais à proposta clássica de libertação do ioga: os klesas, os vrttis e o samadhi. Ao contrário, os iogues e praticantes modernos parecem manifestar maior interesse na aquisição de saúde e bem-estar, do que reverenciar algum tipo específico de ética religiosa ou conduta comportamental de culto à Deus (Energia, Eu Maior, Vida Plena, Culto a Alta Performance, enfim, só se alteram as palavras, mas o conceito é o mesmo: ser mais do que se é, pois se está insatisfeito consigo mesmo) (ALTER, 2004; BAIER, 2012). Em outras palavras, minimizar os efeitos deletérios do estresse e promover o aumento dos níveis gerais de condicionamento físico e mental parecem ser a tônica do ioga praticado atualmente.

Discussão acadêmica contemporânea sobre o fenômeno ioga

Estudos revelam que as diferenças que caracterizam a passagem do ioga clássico para o moderno estão na sua medicalização e, por conseguinte, na popularização (e transformação) dos seus ritos corporais em técnicas terapêuticas e corroboradas pela ciência biomédica ocidental (ALTER, 2004; DE MICHELIS, 2008, p.23-27; LIBERMAN, 2008, p.100-116). Mesmo assim, ambivalentemente, o ioga continua a manter ainda latente a sua verve espiritual de sentido de vida e proposta de libertação religiosa.

Em uma pesquisa realizada em 2002 com 750 praticantes de ioga, revelou que 80% deles compreendem as suas práticas como auxiliares no combate o estresse, e 83% que as mesmas os permitem gozar de uma vida espiritual plena (NEWCOMBE, 2005). A investigação descreve apenas uma das denominações modernas do ioga (Iyengar ioga), mas o seu líder constitui um dos mais conhecidos mestres iogues do mundo e o seu pensamento pode representar a articulação ioga-biomedicina que buscamos revelar. Segundo Iyengar, “a pessoa indisciplinada é alguém sem religião; a pessoa disciplinada é religiosa; a saúde é religião; a doença é falta de religião” (IYENGAR, 2001, p.38). Na antropologia, pesquisas mostram ser possível estabelecer uma conexão entre doença-sagrado, medicina-religião e cura-libertação espiritual (LAPLATINE, 2011, p.213-252).

A cientista Sarah Strauss corrobora nos esclarecendo que a doença para o ioga contemporâneo não corresponde a um simples mecanismo resultante da fisiologia orgânica, mas surge da experiência subjetiva de um sentir-se mal, quase como uma angústia ou uma dor incorporada (STRAUSS, 2008). No entanto, os conceitos ocidentais de doença, dor, sofrimento e estresse podem se manifestar diferentemente dentro do pensamento indiano.

Segundo Rao, as noções de klesa (ou obstáculos espirituais, como vimos) e dukha (lit.dor, sofrimento) são os representantes mais próximos para o conceito de estresse dentro da espiritualidade contemporânea do ioga. O autor nos esclarece que klesa poderia corresponder ao agente estressor ou estresse propriamente dito, e dukha a experiência dolorosa (dor incorporada, angústia) advinda de klesa (ou estresse). O Asthanga Ioga (aquele de Patajanli e não de Jois), por sua vez, seriam as técnicas desenvolvidas pela doutrina clássica do ioga em dominar o estresse/klesa (RAO, 2012).

Bem, vamos lá! A partir dos dados obtidos de nossa discussão até agora, podemos deduzir 4 características do ioga contemporâneo que dialogam entre si dando coerência ao seu pensamento moderno:

1) a permanência no ioga da crença em energias sutis/esotéricas, sobretudo prana e chackras (SAMUEL & JOHNSTON, 2013);

2) a influência da biomedicina na interpretação de seus ritos e doutrinas (ALTER, 2004, p.73-108);

3) o relaxamento como “produto” principal (e esperado como condição sine qua non) dos ritos ioguicos (SINGLETON, 2008, p.77-99; Id., 2010); e

4) o processo de curar a si mesmo e aos outros é incorporado (FULLER, 2008, p.131-151).

Todas essas características se tornaram o que Bourdieu considerava como habitus (BOURDIEU, 2011) de um iogue; ou seja, é de tal maneira incorporado na dia-a-dia ioguico que os seus agentes (leigos e especialistas religiosos do ioga) consideram como da “natureza do ioga” sua existência.

Iogues-sacerdotes versus iogues-profetas

A secularização da Índia se iniciou com a colonização britânica ainda no início do século XX. Esse processo permitiu que a sociedade indiana – fortemente arregimentada pela moral hinduísta – se percebesse subjugada como “primitiva” e “mágica” aos olhos ocidentais dos protestantes calvinistas anglicanos. Com a secularização, um movimento conhecido como “Renascença Indiana” autorizou alguns iogues indianos a privatizarem sua religiosidade almejando elevar a legitimidade de sua cultura, reformando o ioga com elementos sincréticos do cristianismo, mas também da mentalidade científica ocidental (SIMÕES, 2011). Assim, o ioga clássico – antes pautado pela base moral hinduísta - reforma de seus sistemas de crenças convidado pela cultura ocidental.

A aproximação Ioga-Ciência surtirá uma aproximação entre esses dois sistemas simbólicos de explicação do mundo, culminando na ressignificação das escrituras tradicionais do ioga e no surgir do que podemos intitular de Ioga Moderno. Essa reforma na doutrina clássica do ioga aproximou-o da biomedicina ocidental, como explicamos. Atualmente o ioga está incorporado em muitos centros médicos de excelência, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e Hospital Albert Einstein no Brasil por exemplo. Essa aproximação ioga-biomedicina autorizou toda uma geração de iogues a “inculcar” conceitos biomédicos em sua proposta de libertação espiritual, relacionando klesas, AI e samadhi, ao lado de relaxamento, hipometabolismo, hormônios, epigenética e neurotransmissores.

Esses modernos iogues desafiarão tradicionais sadhus, brâmanes e mestres iogues retirados nas florestas e ashrams a repensarem suas escrituras clássicas ao lado do pensamento empirista e materialista da Ciência, e com isso, rompem com uma milenar linhagem sacerdotal, instituindo as suas próprias interpretações místicas do ioga. Como consequência, arquitetam as suas próprias “tradições”.

A sociedade indiana, que assistiu por gerações o sistema de castas manter os sacerdotes iogues no topo de sua pirâmide social, modernamente, testemunham sinais evidentes de ruptura desse sistema. Em outras palavras, a hegemonia do poder simbólico nas mãos, por séculos, de iogues-sacerdotes tradicionalistas percebe-se demovida por um novo poder simbólico que principia ser preenchido por uma classe de especialistas religiosos que podemos denominar de "iogues-profetas inovadores". Estes surgem “anunciando” um novo sistema simbólico ioguico, agora mesclado com a Ciência e não mais pelas escrituras tradicionais, como o vedanta e o IS por exemplo.

A hegemonia do poder dos "iogues tradicionalistas" foi então abalada por leigos praticantes e iogues “sem-tradição”. O ioga moderno, praticado sobretudo por ocidentais que desconhecem a “legitimidade” dos iogues-sacerdotes tradicionalistas, adotam as crenças dos iogues-profetas inovadores. Os iogues-profetas são uma geração moderna de iogues que hibridam a espiritualidade do ioga clássico com todo e qualquer elemento contemporâneo que fazem sentido a eles espiritualmente: seja a Ayahuasca do Santo Daime ao discurso de Chico Xavier. Esse fato, além de incentivar a disseminação dos valores ioguicos aos leigos ocidentais, acentua a luta entre iogues sacerdotes "tradicionalistas" e os iogues profetas "hibridistas" na disputa do campo espiritual ioguico moderno. E qual o moeda de disputa? O novo capital simbólico do ioga é o combate ao estresse.

O ioga como novo fenômeno religioso de cura

A compreensão sobre o ioga moderno aqui discutida só pode ser completa a partir dos conceitos de campo e disputa pela hegemonia de capital simbólico de Bourdieu (BOURDIEU, 2011, p.27-78). Segundo Bourdieu, a noção de campo espiritual seria o local aonde o seu capital tem sentido de disputa apenas entre os agentes do campo que disputam a hegemonia dos bens de libertação espirituais específicos que oferecem.

“(...) diferentes instâncias religiosas, indivíduos ou instituições, podem lançar mão do capital religioso na concorrência pelo monopólio de gestão dos bens de salvação e do exercício legítimo do poder religioso enquanto poder de modificar em bases duradouras as representações e as práticas dos leigos, inculcando-lhes um habitus religioso, princípio gerador de todos os pensamentos, percepções e ações, segundo as normas de uma representação religiosa do mundo natural e sobrenatural, ou seja, objetivamente ajustados aos princípios de uma visão política do mundo social.” (BOURDIEU, 2011, p.57)

Aplicando esses conceitos (campo e capital simbólico religioso) ao universo do ioga discutido até agora, como um sistema simbólico produzido e gerido por seu corpo de especialistas modernos, poderemos compreender alguns fatores que envolvem as disputas pela hegemonia do seu poder de cura do estresse como capital simbólico. Dessa forma, a Ciência dentro desse panorama, não pode ser configurada como “desencantadora”, mas fomentadora do sistema de crenças recém reformado do ioga moderno (ALTER, 2004).

Desde 1920 iogues estão sendo submetidos aos mais complexos e precisos exames laboratoriais no intuito de detectar suas repercussões orgânicas e psíquicas e aplicá-las de forma laica para o tratamento e prevenção das mas diversas doenças. Ao longo, portanto, de mais de 80 anos descobriu-se que “cientificamente” a prática regular do ioga (e seu ritual mais conhecido, a meditação), possui poder “relaxante”, portanto, de combate curativo ao estresse crônico, grande mal que acomete os indivíduos que vivem nas megalópoles do mundo. O ioga moderno incorporaram muito desses resultados biomédicos em sua doutrina e transformaram a sua proposta de eliminação dos comportamentos dos klesas para o das manifestações do estresse na mente e no corpo.

A relação ciência biomédica e prática ioguica produziram a crença que o ioga moderno possui o “poder invisível” (BOURDIEU, 2001, p.113-190) de cura do estresse e todos os males derivados deste como doença. Dessa transposição – iogues-sacerdotes tradicionalistas versus iogues-profetas híbridos - promove uma reforma da doutrina do ioga. Essa reforma estabeleceu:

1) um novo campo espiritual de disputa entre os iogues, abandonando os valores do hinduísmo em detrimento aos da Ciência biomédica;

2) troca do capital simbólico de disputa dos klesas para combate ao estresse; e

3) das forças de disputa entre “sacerdotes” e “profetas” no ioga, houve a produção de novos bens de libertação espirituais como o relaxamento (agora com o caráter de espiritual), e do samadhi (ou de integração com Deus) como uma busca correspondente por uma espécie de “homeostase eterna”, um estado da alma aonde o "estresse/klesa" não consegue mais exercer sua ação nefasta.

Será então agora o estresse - e não exclusivamente os comportamentos nefastos dos klesas - que produzirão os vrttis.

A crença biomédica de um ioga laico

A ciência, por outro lado, também não se viu livre das influências que o ioga exerceu em seus membros. Dito de outra forma, os cientistas foram incapazes de pesquisar os efeitos fisiológicos das práticas ioguicas isolando o seu sistema de crenças, pois:

1) os voluntários convocados para as pesquisas em meditação e ioga são, invariavelmente, simpatizantes dos valores ioguicos;

2) mesmo que, pretensamente, tente se aplicar (como alguns dizer conseguir) a prática ritual ioguica de forma laica, o conteúdo simbólico do ioga (como a produção da “calma” e do “relaxamento” pela meditação e demais práticas físicas ioguicas) já estão impregnadas pela cultura ocidental – leia-se sistema simbólico ocidental (é só folhear revistas populares que trazem na capa o ioga como o mais eficaz tratamento anti-estresse). Além disso, não se possui mecanismos científicos de separação de tais dados (o quanto a crença do ioga influi ou não nos resultados fisiológicos dos voluntários), mas tornou-se “consenso” o seu contrário;

3) outro fato, associado ao item 1, é que muitos cientistas que investigam fisiologicamente as práticas ioguicas como a meditação, se tornam “afetados” por ela (seja de forma positiva quanto negativa - ver essa relação “afetada” em cientistas como Herbet Benson, Amit Goswami, Fritjof Capra e Allan Watts);

4) o conteúdo simbólico produzido pelos rituais contemplativos do ioga, mais a aculturação “espiritual” do ioga trazido pelo contato com os ideias nova eristas, podem invocar respostas fisiológicas emocionais específicas que se repetirão em cada experimento. Em outras palavras, nenhuma resposta fisiológica registrada em uma pesquisa com práticas rituais religiosas aplicadas de forma laica pela ciência biomédica, conseguiria isolar de forma incólume aos conteúdos simbólicos dos seus voluntários, pois todos estão imersos no mesmo sistema de crenças do ioga. E os que pretensamente não estejam, se tornarão ao serem treinados nas “técnicas ioguicas”, adquirindo o habitus dos iogues.

O que levanto neste ensaio nos serve apenas para ilustrar que o flerte da ciência biomédica com o sistema de crenças do ioga moderno adquiriu o tal “poder invisível” que Bourdieu menciona (BOURDIEU, 1989, p.7-8). Este "poder invisível" é o que mantém uma certa “naturalização” (ou “consenso”) entre todos os membros pertencentes do campo espiritual ioguico produzido por seu próprio corpo de especialistas. Sim, defendo que os cientistas pesquisadores das técnicas ioguicas também atuam como agentes espirituais ioguicos, mesmo que inconscientes. Algo semelhante ao que Bourdieu levantou em seu artigo "Sociólogos da crença e crenças dos sociólogos", mas relacionado aqui à biomedicina, neurociência e toda rede de biólogos que investigam as práticas rituais espirituais do ioga (BOURDIEU, 2011, p.108-113).

Conclusão

Esse novo sistema simbólico erigido modernamente é a resposta de parte da classe média-alta dos grandes centros urbanos do mundo que percebem como negativa a forma econômica-política capitalista de consumo, maior volume de trabalho (fruto da vida de consumo), e geradora de doenças atreladas ao estresse cotidiano, mas que não conseguem ser amenizadas apenas pelo modelo alopático de saúde adotado pelo ocidente. Assim, o ioga surge como uma nova religião de cura (em andamento) e com seu próprio subcampo religioso e especialistas que disputam entre si (e mantém o campo religioso ioguico ativo) novos bens de salvação criados e sustentados por eles em parceria com a ciência biomédica ocidental.

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Foto do escritorPhD. Roberto Simões

O caminho de estabelecimento do ioga brasileiro passou por fases distintas. Desde 1950 mais ou menos, e é marcado por disputas internas entre iogues mais permissivos a sincretismos com o objetivo de popularizar a filosofia e prática religiosa do ioga (os iogues-híbridos), e outros mais ortodoxos e “puristas” que buscam o sectarismo da prática e de sua filosofia numa posição de preservação da “essência” do ioga (os iogues-tradicionalistas).

Essa disputa originou uma estrutura religiosa regulatória “invisível” e não-institucionalizada, responsável por manter, produzir e aniquilar elementos soteriológicos e bens de salvação/ética do ioga brasileiro. Os klesas e suas novas configurações, com certeza, passam pelas mãos desses líderes, que comandam esse "mecanismo religioso regulatório não-institucional" (ainda), por isso sai a campo em minha tese de doutorado para entrevistar alguns desses líderes e conhecer o que eles compreendem como as causas do Mal-klesa e/ou se a teoria ética dos klesas clássicos ainda traz sentido para o sofrimento dos iogues brasileiros.

Ja escrevi alguns posts sobre a minha discussão dos klesas, por isso venho versar um pouco mais sobre esse "mecanismo religioso regulatório". Ele é parecido com o conceito de campo de Pierre Bourdieu, mas como ainda embrionário no país, achei melhor não envolver o cientista francês aqui, descrevendo-o melhor primeiro. Outros pesquisadores podem associá-lo ou não a Bourdieu futuramente. Por enquanto, me contento com o termo denominado (estrutura religiosa ioguica brasileira em formação) acima mesmo; é mais humilde e menos pretensioso.

Esse mecanismo regulatório funcionaria a partir do conceito de rede advindo da Nova Era, mas que no ioga brasileiro foi se solidificando e tornando os envolvidos menos “errantes” e convertendo os “clientes” em devotos-discípulos, muitas vezes virtuais ou de encontros periódicos. Portanto, sem uma vida em comunidade em torno do mestre necessariamente - apesar de ser possível e bastante comum também, o que incorre, nesse caso, em uma estrutura religiosa bem mais evidente e condizente com o conceito de Igreja mesmo.

Essa rede da religiosidade nova era que era plástica e fluida, no ioga moderno brasileiro, solidifica-se em uma tríade que, além de sustentar o seu líder financeiramente, possibilita a difusão de sua doutrina a partir de: 1) curso de formação para professores de ioga, 2) viagens e retiros periódicos a lugares sagrados guiadas pelo próprio líder e seus devotos mais próximos (em geral a Índia, mas hoje também se vê para Nepal, Peru e Japão,) e 3) cursos, palestras, filmes e encontros musicais (satsangs), com função proselitista na difusão dos ideais ioguicos desse líder sobre o ioga (hoje inicia-se também a venda de cursos on-line, o que proporcionará maior visibilidade da ideologia religiosa desse líder). Essa tríade, mantida pela sociedade, possibilita ao seu líder-referência, a exemplo de um padre ou pastor, dedicar a sua vida exclusivamente na difusão de seu trabalho religioso e de fé nos princípios salvíficos/éticos do ioga. A "Igreja", como instituição "visível" que conhecemos dos católicos ou judeus, no ioga, é "invisível", mas existe e possui os mesmos objetivos: produzir e manter sua cosmovisão espiritual. E se existe, é pois possui quem os sustente. É você que paga a mensalidade da sua escola de ioga por aulas semanais, cursos, palestras, dvd's e etc.

O que no “circuito ou rede Nova Era”, era fluido e sem contornos espirituais definidos, pois havia (e ainda há) de vendas de incensos, cristais, aulas de ioga e filosofia de Atlântida, foi se configurando uma estrutura religiosa ioguica não-institucional que fortalece os laços de uma comunidade em processo ainda, mas em torno de seu líder. As antigas demonstrações de posturas de ioga em locais públicos e cursos undergrounds da "filosofia" do ioga, se transformou. Alguns devotos fazem 2-3 cursos de formação com o mesmo líder para "reciclar” o conhecimento e viajam anualmente a Índia com o seu líder-guia, algo que no fundo, simboliza o reforço da fé nos princípios do ioga de seu líder. Assim, cada líder possui hoje o seu próprio grupo de seguidores que renovam a sua fé e mantém a “sangha” (ideologia) do líder, ou do guru do seu líder, o que dá no mesmo.

Quando um devoto rompe com a sua sangha, pode buscar outra ou, após um período de isolamento, resolve que é o momento de erigir a sua própria “sangha” ou grupo religioso-espiritual ioguico. O inicio desse novo grupo, invariavelmente, passa pela produção de um novo e próprio curso de formação, o que significa literalmente, erigir a sua própria visão da Verdade do ioga, seja mais híbrida ou mais tradicionalista. Essa fase é bastante tensa, pois os líderes já estabelecidos são atrozes na aniquilação de seus oponentes. Haja vista a excomunhão de Cristóvão de Oliveira e a disputa de um ex-discípulo do Mestre DeRose e Jois que se converte a um líder ioguico indiano, depois contesta a legitimidade espiritual das tradições por qual passou. Ou ainda a clássica e eterna contenda brasileira entre Hermógenes versus DeRose (ou vice-versa).

No Brasil, atualmente, com a perda da hegemonia por mais de 40 anos do hibridismo ioguico de Hermógenes, a ala mais “tradicionalista” tem levantado a voz no Brasil. Hoje, a vertente tradicionalista brasileira advém dos discípulos da vedantista Gloria Arieira e não mais dos devotos do Swásthya Yôga d'DeRose. O ioga brasileiro passa por uma fase de transição por causa do declínio de Hermógenes e a "saída" d'DeRose do ioga. Uma nova geração de líderes vem chegando ao microuniverso ioguico brasileiro, e serão eles que legitimarão o que pode ou não ser considerado ioga no país. No entanto, dois pontos não se alterarão: 1) construirão uma base forte fundada na tríade curso de formação, viagens-retiros e produção de produtos de venda de suas ideias; 2) adotarão um discurso mais híbrido ou mais tradicionalista; e 3) os seus discursos doutrinários serão contestados pelos atuais líderes.

O caminho mais fácil para se consolidar como um novo líder-referência, portanto, é se afiliar a algum grupo (sangha) com um líder bem estabelecido, ganhar notoriedade, e depois romper com ele apontando irregularidades ou posicionamentos discordantes e erigir um discurso contrário ao dele; ou continuar afiliado, mas ir mudando seus posicionamentos filosóficos, práticos e/ou religiosos, não de forma abrupta como o anterior, mas suavemente.

De qualquer forma, receberá criticas, pois ninguém que está no poder gosta de ser questionado ou perder discípulos. Assim, você cursa uma formação de ioga no Brasil, saiba de antemão a que grupo se está afiliando e se os ideais espirituais da sua formação concatenam com os seus, pois do contrário será excomungado de sua comunidade e terá que iniciar o seu trajeto espiritual do zero a partir de outro líder. Acha exagero? Faça um teste na próxima aula da formação e levante 3 posicionamentos: 1) Quem quer comer carne comigo?; 2) Acho que Patanjali se enganou no item 5 do seu asthanga, pois segundo a ciência o estado de prathyahara vem depois de dharana e dhyana e não antes; 3) Acho um destempero quem mistura os princípios espirituais do ioga com os dos cristãos. As reações mais radicais, como não falarem mais com você ou dispararem um discurso rasgado de aniquilação das suas questões, virão dos tradicionalistas, que se consideram (e sem ironia, são mesmos) os responsáveis pelo "resgate da essência do ioga" (igual o que DeRose o fazia em seus tempos áureos, pois não há algo mais "purista" do que declarar que o seu ioga é pré-védico). Agora, se o tratarem com a cordialidade de quem tenta explicar para uma criança do jardim-da-infância que ainda não entendeu nada até agora, certeza, são os iogue advindos da permissividade hibridista, que lhe trarão uma versão universalista e em dialética saúde e salvação.

E se você acha que pode sair por ai dando aulas sem afiliação religiosa tradicionalista ou hibridista, cuidado, você poderá ser acusado de ensinar um "método ou prática" que não conduzirá ninguém ao samadhi, pois o seu ioga está destituído de proposta espiritual legitimada. Ah, mas se riu com escárnio de superioridade porque o seu ioga/meditação vem da "ciência" de cientistas-gurus como Fritjof Capra, Amit Goswami e outros, saiba que eles possuem igualmente discursos religiosos, mas regados por elementos cientificistas. Não se convenceu? Convide seu cientista-guru para o próximo congresso cientifico da área dele (que não for organizado por ele mesmo ou seu grupo) e peça para ele (seu mestre) apresentar as ideias de seu último livro para colegas acadêmicos e anote as críticas.

A ideia aqui apresentada não está em desmerecer discursos ioguicos nenhum, mas apresenta-los sem as máscaras que o encobrem. A intenção reside em levar compreensão (já que o klesa-mãe é a Ignorância) o que o ioga representa realmente no contexto social brasileiro: um novo fenômeno religioso em andamento. E se religião para você possui peso menor, vá estudar, pois saiba que essa retórica é a mesma que a religião carregava da ciência há alguns séculos atrás, portanto, o seu escárnio superior advém da religião cristã medieval e não da ciência. Na verdade, a ciência é absolutamente humilde e não se interessa em dar respostas a Deus, não por ele não existir ou ser insignificante, mas porque a ciência não consegue investigá-lo e relega isso aos teólogos e filósofos.

Ambas, no entanto, são apenas explicações diferentes, erigidas pelos homens e mulheres ao longo da história e pertencentes a uma sociedade específica, mas em busca de dar fim as suas mais profundas angústias do ser humano, seja um cientista, filósofo, artista, religioso ou você que não sabe o que é ainda, como eu.


Foto do escritorPhD. Roberto Simões

Atualizado: 30 de jul. de 2022


É claro que estas estatísticas (maio de 2016) de um podcast com a temática "contemporâneo" é um recorte pequeno, pois se fosse "ioga tradicional" ou de alguma linhagem específica teria outra leitura e acessos. Por exemplo, se o site fosse ioga e saúde e os podcasts sobre "o melhor asana para dor de cabeça", por exemplo, seria um outro público, outros entrevistados e, obviamente, outras estatísticas a comentar. Mas também é evidente que um católico praticante, que ouve Fábio Melo, ou um judeu ultra-ortodoxo com aqueles cachinhos no cabelo, não se interessariam em ouvir entrevistas com iogues brasileiros e muito menos bla-bla-bla meu sobre o ioga no país; assim, o público que acessa e ouve estes podcasts e compõem essa tabelinha ao lado, são indivíduos que no mínimo, sabem quem são esses professores. Mais simples, é um público não tão leigo assim na cultura do ioga brasileiro e mesmo pequeno pode ser representativa do microuniverso ioguico brasileiro.

Por que essa introdução? Para deixar claro, que mesmo sendo um recorte - e sempre em ciência são recortes - é uma análise que farei singela, mas lógica (portanto não-dogmática, assim, sujeita a críticas). Posto isto, para quem se interessa em pensar o ioga de fora da "caixa do ioga", e é um livre pensador que não alimenta ressentimentos, é deveras interessante perceber o grande descompasso de acessos, assim como também a disputa velada entre os seguidores/discípulos de linhagens ou métodos ioguicos brasileiros.

Penso que a polaridade Hermógenes e DeRose que se configurava entre os anos 1980-2000 se modificou. Hermógenes não parece ter conseguido substituir o seu carisma de grande divulgador como líder/referência; não apenas pelo reduzido número de acessos, mesmo porque o áudio dele foi bastante prejudicado pela captação em face a saúde do nosso querido Professor; entretanto, as respostas foram conduzidas muito bem pela intermediação de seu neto. Mas, e isso é interessante perceber também, o professor Hermógenes possui seus "discípulos/simpatizantes" entre os iogues entrevistados também. É evidente que Glauco Tavares, Marco Schultz, Duda Legal e Marcos Rojo compartilham muito mais dos ideais ioguicos de certo hibridismo com catolicismo/budismo e terapia do que outros mais "tradicionalistas" e fechados com suas próprias linhagens iniciáticas, o que conjura que poderia haver um grande número de acesso (leia-se, interesse no que estes têm a dizer sobre o ioga pelas similaridades de objeto com Hermógenes) por parte dos mais simpatizantes ao hibridismo e o ecletismo hermogeano. Em outras palavras, venceu o sectarismo e o elitismo deroseano, por quê?

Hoje, se nós observarmos com maior atenção a tabela ao lado, as duas lideranças com maiores escores - depois de DeRose - foram alunos deste. Em outras palavras, não é totalmente incorreto pensar, mesmo com claras distinções de ensino e posições intelectuais atuais, o ioga no país descende - você gostando ou não - de um líder/referência em comum: DeRose.

Calma, as construções dos ideais de ioga destes "discípulos de DeRose" se diferenciaram, mas o modelo empresarial continua o mesmo e fora incorporado por todos os outros iogues entrevistados também (e quase todos que você conhece). Para se ter uma ideia do que quero dizer, o Prof Hermógenes nunca produziu nenhum "curso de formação" e nem se preocupou em expandir as suas unidades de ensino. O máximo de produtos que produziu foram livros didáticos e de poesia. Pelo contrário, é o seu neto agora que tenta brecar esse "avanço" da marca do avô, pois há muitos que, percebendo essa lacuna no mercado ioguico, pretendem inaugurar uma "Academia de Yoga Hermógenes" e se beneficiar de todo capital simbólico que ele acumulou no país. E perceba, não faço nenhum juízo de valor aqui, quero mais que se expanda mais e mais escolas de sucesso do método de Hermógenes.

Entretanto, o modelo mercantil que se configura hoje como um "case" de sucesso ioguico foi consolidado por DeRose e não por Hermógenes, sobretudo por: 1) Curso de Formação e Aprofundamento no Yoga; 2) Venda de produtos dos mais diversos relacionados à sua marca; e 3) Um dos pioneiros em viajar à Índia em busca de autoconhecimento direto de mestres indianos, o que levou ao rentoso comércio de "peregrinações" a Índia atualmente; mas também a outros locais "sagrados" aos iogues modernos brasileiros (de Jerusalém ao Japão, passando por Machu Pichu e culto a Pacha Mama e beberagem de ayahuasca). E, vejam bem, há uma crescente da inclusão de técnicas de coaching também surgindo. Ou seja, esse modelo mercantilizado e de sucesso é "deroseano" e não "hermogeano".

Concluo assim, que se essa minha hipótese estiver certa, em breve os iogues migrarão para seus próprios "métodos" de cariz laico e secular para o desenvolvimento do potencial humano e não mais para o ideal místico-religioso de transcendência do Ser. Na verdade, isso já está em andamento, pois todos os professores e alunos de ioga no Brasil se orgulham de bater no peito que o ioga que praticam e ensinam não é "religioso, mas espiritual". Dizer isso é apenas uma outra forma de se afirmar não dogmáticos, ou quando não "científicos". E ser científico significaria dizer que o conhecimento do ioga é empírico, ou seja, advindo do Homem e não de rishis, brâmanes e sadhus místicos - o que eliminaria qualquer tipo de intervenção divina, espiritual ou de divindades e Isvara.

Em outras palavras, seria o saber ioguico estaria sujeito a críticas como qualquer outra filosofia; o que não é verdade, pois basta discordar com qualquer um dos apontamentos da Verdade como absoluta de suas escrituras (sagradas?) que receberá uma lição de moral ioguico de como você está equivocado e que Meu mestre tem mais razão do que o seu - ou uma resposta modelo espírita kardecista: "tolero o que diz, pois respeito o seu estágio evolutivo espiritual", obviamente, menor do que o meu.

Para quem não está me acompanhando ainda, tento ser mais pedagógico levando-o pela mão: o modelo mercantil exalta as diferenças e não as correspondências e vence apenas um no debate, e nunca dois. Em uma competição no campo religioso não há dois medalhistas de ouro! Não há um pluralismo, mas um absolutismo. Isso não é apregoado por um ou outro iogue, mas pela cultura que se instaurou ao microuniverso ioguico brasileiro ao longo de seus 70 anos de história e adaptação por aqui. O ioga é universal, contanto que seja o meu do qual se refira - talvez aqui tenhamos copiado igualzinho à religião mais dominante no país: o cristianismo, e alguns exemplos de intolerância e soberba. Talvez, um leitor mais perspicaz, poderia pensar que se tivéssemos desde o início da transplantação do ioga na América Latina um líder indiano autorizado por alguma linhagem religiosa isso tudo estaria diferente. Mas não acredito, é só observar a disputa no Brasil entre evangélicos e umbandistas e perceberemos que a disputa religiosa ainda permaneceria.

Não é coincidência também que uma parcela do microuniverso ioguico brasileiro se afete tanto por discursos mais ortodoxos de "retorno à tradição" nesta última década (leia-se ioga como religião/espiritualidade) e/ou filiação a ordens iniciáticas de swamis e sadhus. É um movimento absolutamente natural dentro de religiões em formação quando percebem a sua "tradição" (ou seu próprio grupo) perdendo força para um grupo melhor organizado e ganhando mais adeptos/discípulos. A estratégia é mercantil revestida de uma fina película de espiritualidade singular que os recobrem; pois, e fazendo as devidas e óbvias distinções, é o mesmo que ocorreu na contra-reforma católica com o avanço protestante.

Dessa contenda, acreditem, ninguém vai recuar, pois o modelo deroseano é muito mais lucrativo do que o hermogeano economicamente; assim, os tradicionalistas se organizarão em grupos mais fechados e sectários para preservar a sua autonomia, e os híbridos a expandir mais e mais seu terreno com novos tipos de ioga. Enquanto os primeiros continuarão a desferir golpes fortes a todos que se declaram "iogues", mas que não obedecem às suas dogmáticas - como por exemplo, que o vedanta é infalível ou dever obediência as condutas morais de yamas e niyamas -; os segundos lutarão formando mais professores e oferecendo mais aulas de seus métodos erigidos sem a legitimidade da "tradição" a torto e à direita.

Entretanto, o modelo mercantil do ioga consolidado por DeRose é utilizado pelos dois grupos e não se alterará tão cedo, a não ser que surja outro mais lucrativo - ou uma nova sociedade não baseada no consumo se consolide no Brasil (algo bastante improvável). Vivemos em um mundo pósmoderno, aonde o capital, é o guia, e as religiões/espiritualidades acompanham esse modelo também (todas as religiões - vejam os carismáticos e os evangélicos, ou mesmo a lojinha de japa-malas no espaço zen da Monja Coen no bairro do Pacaembú/SP ou a sua agenda na celebração de casamentos e o valor de seus cursos na Palas Athena - local de estudos da elite paulista "alternativa").

E você, simples consumidor desse mercado religioso, o que fará? Continuará alienado como está agora, comprando mais e mais coisas ioguicas e exigindo uma apostila e certificação de cada curso/workshop/aula que pagar, pois a grande maioria sempre será massa de manobra/leiga e medrosa, por isso mesmo investem tanta grana preta filiando-se a este ou aquele jeito de "ser iogue". Estes recuam frente a liberdade de Serem (vestindo-se igual, andando igual, reproduzindo os mesmos discursos, comendo os mesmos alimentos orgânicos/veganos, lendo os mesmos livros de auto-ajuda, assistindo os mesmos filmes "zen"...). Libertar-se, de forma devotamente religiosa realmente, da Ignorância mesmo, como preconiza o conceito de Kaivalya, exigiria dos praticantes de ioga, em algum momento, romper com o status quo do ioga que professam, e isso os obrigaria a perceber que não existem modelos ioguicos a seguir. É preciso, para ser Livre (leia-se buscar a Redenção como um cristão de verdade), coragem para criar o seu próprio método de ioga; e, conseguindo isso, não vendê-lo, pois ele servirá apenas para você.

Mas aí meu amigo? Primeiro: vai viver do quê os professores de ioga? Segundo: você (iogue em busca de ser livre) terá que lutar contra o mundo (do ioga brasileiro é claro) lhe dizendo o quanto está errado por sustentar-se com as suas próprias pernas, pois é preciso um líder/referência a seguir; afinal, perguntarão todos os iogues medrosos: "quem é você para erigir um ioga? O ioga tem séculos e não precisa ser criado". Aí, você, iogue corajoso, poderia responder: "Sim, mas eu não sou Patanjali, Shankara, Vyasa, Jois ou Iyengar. Por ser diferente e único, preciso de um Ioga-Eu e não um Ioga-Outro".

E aí, vai encarar? Hmm, acredito que não. É muito mais seguro seguir venerando quem for, de um mestre iogue ideal ou uma sociedade sem classes de Marx. Na verdade, tanto faz, é uma busca por algo que não existe no mundo real da vida vivida.

Deus nos livre de sermos Normais e nos dê forças para Sermos Fortes.

PS: Espero que alguns compreendam esta última frase como uma espécie de reconciliação no ioga do Brasil.


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