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Dr.Roberto Simões

O Gheranda Samhita (GS) é um manual do Hatha-Yoga (HY), provavelmente do séc.XVII, aproximadamente quatrocentos anos após o Hatha-Yoga Pradipika (HYP), e é composto por 351 estrofes distribuídas em sete capítulos ou lições. É justamente neste texto que os kriyas (ou limpeza transfisiológicas do ioga) ganham uma dimensão que antes não havia conhecido, comparado, por exemplo, aos Yoga Surtas (YS) e o próprio Hatha Yoga Pradipika (outra escritura medieval ioguica). É natural, portanto, que tenham surgido novas influências e interpretações ao longo dos seus ensinamentos, afinal o YS é datado do séc.II a.C. e a influência do islã, do budismo, do tantra e vedanta advaita se faz presente somente neste momento.

A doutrina apresentada no GS apresenta-se na forma de um diálogo entre o sábio Gheranda, de quem nada se conhece, e o seu discípulo Chanda-Kapali, nome que se refere também à religião dos nathas ou kamphata, tal como outras organizações religiosas deste período. Esta obra toma como modelo, essencialmente, o HYP, tendo alguns versos retirados diretos dele, mas com peculiaridades importantes.

A primeira é o modo como se apresentam os seus preceitos. Enquanto Patanjali, no YS, oferece um ioga em oito partes (asthanga), e o Svatmarama, no HYP, em quatro (chaturanga); Gheranda ensina a sua disciplina ioguica e ética em sete (sapta-sádhana ou saptanga), além de expor não menos do que trinta e duas posturas (ásanas) e vinte e cinco mudras. A parte mais original reside no extenso tratamento dado às práticas transfisiológicas - ou fisiologia sutil - da purificação (shodhana kriya) dos corpos sutis que, ao contrário do HYP, ganham um capítulo inteiro dedicado ao assunto. Além disto, propõe uma interessante classificação do samadhi - a experiência místico-religiosa ioguica. Segundo parte da comunidade moderna do ioga, o GS é uma escritura muito mais sistemática e definida, pois apresenta mais de cem práticas ioga com a sua fisiologia muito bem apresentada. Podemos afirmar, que a corporificação que se assiste contemporaneamente é um desdobramento deste ioga medieval e não um constructo moderno. E o motivo da senda ioguica no GS ser descrita mais incorporada - tão metódica nas técnicas corporais - justifica-se na concepção do corpo como uma amálgama de todos os atos humanos e não apenas um empecilho ao desenvolvimento espiritual como preconizava Patanjali, claramente dualista.

(GS) I.6-8 – O corpo das criaturas viventes é o resultado das boas e más ações. O corpo, a seu tempo, dá origem à ação e, desse modo, o ciclo continua como um ghatiyantra (roda de água). Como a cisterna sobre e desce a água do poço movida pelos bocéis, similarmente o ciclo da vida e morte de cada indivíduo é impulsionado por seus karmas ou suas ações. O corpo é como uma vasilha de barro cru que, se submergida na água desintegra-se. Por isso, deve ser exposto ao fogo do Yoga para fortalecer-se e purificar-se. (Gharote apud SOUTO, 2009, p.266-267)

Acima se percebe que, sendo o corpo responsável pelas ações dos seres humanos, a prática e doutrina fisiológica ioguica medieval tem o poder de modificar e, até mesmo de interromper, o ciclo de reencarnações; indicando assim a liberdade do homem e da mulher para se desenvolverem pelo fruto de suas próprias ações (Ibid., p.257).

(GS) I.10-11 – Os satkarmas purificam o corpo, os ásanas o fortificam, os mudras lhe dão firmeza, o pratyahara produz calma. O pranayama leva à leveza, dhyana leva à realização do ser e samadhi leva ao isolamento, que é a verdadeira libertação (mukti) [ou kaivalya] (SOUTO, 2009, p.268).

Estas ações transcendentes para a kaivalya (lit.Liberação, o objetivo último ddo ioga de qualquer período histórico), que compõem o sapta sadhanam, são as que formam os seus sete capítulos ou lições, são:

1) Shodhana (purificação) referente aos Kriyas;

2) Drdhata (força) aos Ásanas;

3) Sthairyam (estabilidade) aos Mudras;

4) Dharyam (compostura) à Pratyahara;

5) Laghava (leveza) aos Pranayamas;

6) Pratyaksam (autorrealização) relativo ao estado de Dhyana; e 7) Nirliptam (isolamento/transcendência) ou Samadhi.

Como se disse, o diferencial deste capítulo é a descrição minuciosa dos satkarmas ou das seis ações de purificações transfisiológicas - já citadas no HYP, como o Dhauti, o Basti, o Neti, o Lauliki, o Trataka e o Kapalabhati - mas agora, muito mais específicos e detalhistas (ver sutra I.12; SOUTO, 2009, p.269).

A família dos kriyas Dhauti foi subdividida em o

a) antar dhauti;

b) o danta dhauti;

c) o hrddauti;

d) e o mula shodana;

Estes, formando assim o complexo que inclui as lavagens internas tranafisiológicas (ver sutra I.13; Ibid, p.269). O Antar Dhauti se subdivide ainda em

i) Vatasara: aspirar ar pela boca e evacuar pelo ânus;

ii) Varisara: em que se toma bastante água para depois realizar o nauli e evacuar rapidamente;

iii) Vahnisara ou Agnisara: em que após uma expiração profunda se contrai e se projeta rapidamente o abdômen para frente e para trás;

iv) Bahiskrta: em que na primeira parte é preciso empurrar o intestino para fora pelo reto e lavá-lo, para em seguida encher o estômago com ar e retê-lo por noventa minutos e depois expulsá-lo (o ar) pelo reto.

O Danta Dhauti, segundo subtipo dos quatro que compõem a família Dauthi, consiste em limpar os dentes, as gengivas, a língua e os ouvidos.

O Hrddhauti tem por objetivo a limpeza da garganta e do tórax, e é subdividido por mais três técnicas:

i) Danda dhauti: consiste em introduzir no esôfago um talo de planta para limpeza de muco.

ii) Vamana dhauti: manda induzir ao vômito por meio da água.

iii) Vastra dhauti: engole-se uma fita de tecido fino de cinco a sete metros e, em seguida, retirá-la totalmente.

iv) Mula shodhana ou Cakri karna: introduzir um “talo de planta de cúrcuma ou com o dedo médio e água, uma e outra vez”, para promover a limpeza do reto.

(...) a função de apana (uma das formas prana), responsável pela excreção, estará perturbada enquanto o reto não estiver limpo. Então, com grande perseverança, deve-se limpar o intestino grosso. (GRIEGO, 2008, p.6)

O Jalabasti, o primeiro kriya da segunda ação transfisiológica depuradora, diz para introduzir um tubo de madeira lubrificada no reto, deve-se submergir o corpo em água até ao umbigo e sugá-la pelo ânus. Segundo o texto, esta prática purificante pode liberar o iogue de “enfermidades urinárias, intestinais e flatulências (...) têm seu corpo sob controle e parece formoso como Kamadeva (Deus do Desejo no panteão hindu)” (ver I.46; SOUTO, 2009, p.280).

O segundo kriya da família Basti, conhecido por Shuska ou Sthala basti, funciona basicamente como o anterior, mas absorve-se o ar ao invés da água (Ibid., p.280).

O Kriya Neti, terceira ação de limpeza dos nadis, é realizado introduzindo “em uma das narinas um fino tubo de vinte centímetros de comprimento e retirá-lo através da boca”. Este processo, segundo a escritura, dá clarividência e elimina as desordens da fleuma (ver I.50-51, GRIEGO, 2008, p.7; e I.49-50, SOUTO, 2009, p.281).

Lauliki, a quarta ação dos satkarmas do GS, é sinônimo do nauli, que foi descrita nos comentários ao HYP, e consiste em após uma expiração profunda, sugar o abdomem e o diafragma para dentro e para cima e fazer girar os órgãos interno com a força do abdomem.

O trataka funciona fixando o olhar, sem piscar, em algum objeto até que as lágrimas comecem a escorrer. Neste kriya, o iogue treina para o shambavi mudra (ver tratado sobre samadhi no HYP), considerado o mudra mais importante do HY, e se livra das enfermidades visuais, bastando para isso, fixar firmemente o olhar no chackra entre as sombrancelhas (I.52-53, SOUTO, 2009, p.283-284).

O kapalabhati, a última ação transffisiológica ioguica do período medieval indiano da seção dos kriyas, consiste basicamente em inspirar e expirar rapidamente pelas duas narinas por força do músculo diafragma, podendo ser praticado de três formas diferentes:

1) Vatakrama: alternado-se o uso das narinas;

2) Vyutkrama: popularmente é conhecido como Jalaneti, introduz-se água por uma narina e expele-se pela outra;

3) Sitkrama: introduz-se água pela boca e expele-se pelo nariz.

Segundo os sutras, este kriya cura os distúrbios de fleuma, referentes a um dos doshas (kapha) do ayurveda.

Alguns autores mostram que o processo de limpeza transfisiológica sutil do conduto auditivo, por exemplo, outorga ao seu praticante a possibilidade de ouvir sons místicos internos, e a limpeza do palato relaciona-se diretamente à clarividência (ver sutra 32 em SOUTO, 2009, p.275; ver sutras 33-35 em GRIEGO, 2008, p.5).

Conclui-se que, enquanto os iogues antigos (pré-clássicos e clássicos) propõem alcançar o kaivalya pela purificação dos pensamentos, os hatha-iogues ou iogues medievais preferem antes (ou em conjunto) a purificação transfisiológica ou sutil (FEUERSTEIN, 1998, p.541; SOUTO, 2009, p.287).

Discussão

Dessa forma, apesar de se hoje em dia atribuir uma importância muito grande aos aspectos terapêuticos do ioga à luz da fisiologia biomédica, a apresentação - até exaustiva propositadamente - das escrituras ioguicas medievais acima em que apresenta-se as limpezas transfisiológicas ou kriyas, mostra a força e importância - e centralidade por que não - do corpo no ioga. Os kriyas serviram e servem ainda aos iogues para “limpá-los” de suas impurezas tanto físicas, mas sobretudo, espirituais. É quase um exorcismo de energias "desajustadas" e uma luta por harmonizar a sua vitalidade. A prática de purificação ultrapassa os benesses orgânicos e, segundo a doutrina apresentada, praticada antes do início dos ásanas.

O interessante é pensar por quê, atualmente, os kriyas foram quase desconsiderados em salas de ioga, onde se dedicam muito mais importância às posturas físicas. Seria um reflexo de uma sociedade com foco no estético e pautada em uma cultura materialista que preza muito mais o que se vê do que se sente? Ou apenas uma adaptação na confrontação com uma nova perspectiva de fisiologia?

A eficácia simbólica dos kriyas está não na biomedicina e as suas repercussões fisiológicas da ciência, mas no livre fluir da energia vital ou prana e da crença de uma fisiologia sutil ou espiritual, invisível aos olhos de cientistas, mas absolutamente ao alcance aos iogues e praticantes de ioga de todos os tempos que buscam a libertação de uma ilusão e vivem na esperança de uma outra realidade, mesmo na imanência.

Referências

FEUERSTEIN, G. 1998. A tradição do yoga: história, literatura, filosofia e prática. 12ª.Edição.

São Paulo: Editora Pensamento.

SOUTO, A. 2009. A essência do Hatha-Yoga. São Paulo: Phorte Editora.

GRIEGO, F.E. 2008. El Gheranda Samhita. Versión y Traducción de Dharmachari Swami Maitreyananda. Buenos Aires: Recopilación del Curso de Yoga y Hatha Yoga dictado en CCRRR. Extensión Universitaria de la Universidad de Buenos Aires, Fundación Aurobindo de Yoga Integral, Aurobindo Sivananda Ashram® y Federación Internacional de Yoga.


Artigo com base no texto de Gregorry Bassham[1]

Com sua colcha de retalhos de várias religiões e tradições espirituais, o filme The Matrix apresenta um pluralismo religioso que muitos de seus espectadores podem achar atraente - no caso do microuniverso do ioga especialmente. Não está claro se os irmãos Wachowski pretendiam endossar as várias idéias religiosas e filosóficas que eles apresentaram no filme. É mais provável que quisessem fazer um filme de ação intelectual que retratassem alguns mitos interessantes e relevantes. Contudo, como o tipo de pluralismo retratado pelo filme é tanto envolvente como atraente, vale a pena considerar se essa interpretação estaria correta.

As pesquisas de opinião mostram que as visões pluralistas de religião desfrutam de grande apoio hoje em dia, sobretudo pelo público Nova Era. Num recente levantamento, por exemplo, 62% dos adultos americanos concordaram com a afirmação: “Não importa que fé religiosa você segue, porque todas ensinam lições semelhantes de vida.” Como veremos, porém, é muito difícil formular uma versão de pluralismo religioso que seja coerente e plausível.

O que exatamente é pluralismo religioso? O pluralismo religioso pode ser definido com a visão segundo a qual todas as religiões são igualmente válidas e verdadeiras. Essa definição, porém, não é precisa nem estritamente correta. Na verdade, o pluralismo religioso é mais bem compreendido não como uma teoria única, mas como uma família de teorias relacionadas. Quatro principais variedades de pluralismo religioso podem ser distinguidas:

  • Pluralismo extremo: todas as crenças religiosas são igualmente válidase verdadeiras;

  • Pluralismo dos ensinamentos fundamentais: os ensinamentosessenciais de todas as principais religiões são verdadeiros;

  • Pluralismo de cafeteria: a verdade religiosa está numa misturade crenças extraídas de muitas religiões diferentes;

  • Pluralismo transcendental: todas as principais tradições religiosas estão em contato com a mesma realidade Divina suprema, mas essa realidade é experimentada e conceituada de maneiras diferentes dentro dessas várias realidades.

Examinemos sucintamente cada uma dessas variedades de pluralismo religioso.

O pluralismo extremo – a afirmação de que todas as crenças religiosas são verdadeiras – é evidentemente incoerente e pode ser descartado logo. O antropólogo Anthony Wallace calculou que nos últimos 10.000 anos os seres humanos construíram nada menos que 100.000 religiões.[2]

Muitas dessas religiões ensinam posições que são logicamente incompatíveis com aquelas ensinadas por outras religiões. Deus é ou não é trino? Deus é pessoal ou impessoal? Deus é ou não é criador do universo físico? Jesus é ou não filho divino de Deus? O Alcorão é ou não a revelação definitiva de Deus? Cada uma dessas afirmações é defendida por algumas religiões e negada por outras. A lógica básica nos diz que duas afirmações contraditórias não podem ser verdadeiras; a conclusão, portanto, é que o pluralismo extremo é falso.

Segundo o pluralismo dos ensinamentos fundamentais, nem todas as crenças religiosas são verdadeiras, mas os ensinamentos essenciais de todas as principais religiões são verdadeiros. A idéia é que embora as grandes religiões possam divergir em pontos relativamente menores (como a permissibilidade de comer carne de porco, a existência de energias transfisiológicas, se há ou não uma geografia religiosa que não "vemos" ou a existência de um purgatório), elas concordam em todas as questões realmente importantes, tais como a existência de um Ser Supremo (mesmo que seja Buda), a importância da devoção religiosa e de conduta será recompensada e a má conduta, punida, mesmo que não seja, exatamente, por Deus, mas por viver fora de uma "ordem cósmica". São esses ensinamentos essenciais ou centrais que essa forma de pluralismo alega serem válidos e verdadeiros.

O problema principal com essa versão de pluralismo religioso é que em qualquer definição plausível do que pode ser considerado “fundamental” na crença ou convicção religiosa ou espiritual, as grandes religiões claramente diferem em seus fundamentos. Os muçulmanos, por exemplo, acreditam na absoluta unicidade e unidade de um Deus pessoal, e insistem veementemente (e com razão) que essa doutrina é “fundamental” para o Islã. Mas essa doutrina entra em conflito com a crença budista theravada, segundo a qual não existe um Deus pessoal, e com a fé cristã de que Deus é trino. Essa negação de um deus pessoal pode ser parte da religião de Matrix, que tem uma ênfase definitiva no espiritual, mas nenhuma referência ao Divino.

Outra forma popular de pluralismo religioso é o pluralismo de “cafeteria”, a visão segundo a qual a verdade religiosa pode ser encontrada, se vasculharmos e escolhermos crenças de muitas e diferentes tradições religiosas. A religião de Matrix é um bom exemplo de pluralismo de cafeteria. Chamaremos essa tendência especifica do pluralismo de “neopluralismo”. É a religião do aspirante da Nova Era, atraente para aqueles que anseiam pelo "espiritual", mas que não se sentem à vontade com a religião na qual foram criados. Apesar de sua atratividade e do fato de combinar bem com Matrix, o pluralismo de cafeteria – e, portanto, o neopluralismo – apresenta duas grandes dificuldades.

Primeiro, é difícil obter uma mistura coerente de crenças quando se escolhem crenças religiosas segundo o estilo cafeteria. Muitas doutrinas religiosas ficam mal transplantadas fora da estrutura de sua religião nativa, na qual elas evoluíram. A reencarnação, por exemplo, encaixa-se bem no hinduísmo, com suas doutrinas de dualismo mente-corpo, um “eu” espiritual substancial, e a eternidade do mundo temporal. Já não se encaixa tão bem no budismo, que rejeita a noção de um “eu” substancial. E como vimos, não é coerente com o cristianismo, com seus claros ensinamentos bíblicos de um Juízo Final e a compreensão do ser humano como uma unidade psicofísica.

Em segundo lugar, mesmo que o pluralista de cafeteria consiga montar uma mistura coerente de crenças, como ele (ou qualquer outra pessoa) pode saber que elas são verdadeiras? As questões aqui são complexas, mas a dificuldade básica pode ser afirmada de maneira bem simples. A maioria dos filósofos e teólogos contemporâneos concordaria que poucas doutrinas religiosas (se é que alguma) podem ser justificadas racionalmente sem recorrer, em última instância, à relevância Divina. Com a religião presumivelmente não-teísta de Matrix, é difícil entender como tal recurso existiria. Parece altamente improvável que Deus espalharia suas revelações entre as várias grandes religiões – revelando essa verdade-chave aos antigos israelitas, aquela outra verdade-chave aos hindus, e assim por diante. Então, que motivos – além do pensamento tendencioso ou do apelo implausível à experiência religiosa pessoal – o pluralista de cafeteria tem para achar que a sua mistura pessoal de crenças religiosas é a Verdade, enquanto o resto do mundo está errado?

Se o pluralismo de cafeteria em geral, e o neopluralismo em particular, não funciona, talvez haja outra alternativa. Recentemente, John Hick defendeu o pluralismo transcendental, uma sofisticada forma quase-kantiana de pluralismo religioso[3].

Hick admite abertamente que as grandes tradições religiosas são igualmente válidas e verdadeiras. Sua solução apela para a vasta distinção kantiana entre as coisas como elas existem em si e como são interpretadas e experimentadas por nós. De acordo com Hick, Deus (Realidade Suprema, o Real), existindo em Si mesmo, é uma realidade totalmente transcendente e inefável que excede todos os conceitos humanos. O Real é percebido por meio de diferentes “lentes” religiosas e culturais, algumas o experimentando, por exemplo, como um Ser pessoal (Deus, Alá, Shiva, Vishnu ou Zé Pilintra) e outras como um Absoluto impessoal (Brahma, o Tao, o Dharmkaya, o Sunyata ou até Isvara para alguns iogues). Além disso, argumenta Hick, julgadas por seus frutos morais e espirituais, todas as grandes religiões parecem ser mais ou menos igualmente eficazes na meta comum a toda religião: transformação salvífica ou liberadora do egocentrismo em uma amável e altruísta união com a realidade. Assim, Hick conclui, todas as grandes religiões são igualmente válidas e verdadeiras em dois sentidos importantes: primeiro, estão todas em contato com a mesma Realidade de maneiras radicalmente diferentes), e segundo, constituem, todas, em caminhos igualmente eficazes para a salvação.

Assim como o neopluralismo, o pluralismo de Hick enfrenta sérias dificuldades. Primeiro, sua coerência é duvidosa. De acordo com Hick, nenhum de nossos conceitos se aplica ao Real, existindo em si. Não podemos dizer que o real é “um ou muitos, pessoa ou coisa, substância ou processo, bem ou mal, proposital ou não-proposital”. Mas que sentido há numa suposta entidade religiosa que não é um nem nenhum; que não é o sustentador do Universo nem o não-sustentador do Universo; que não é a fonte da autêntica experiência religiosa nem a não-fonte da autêntica experiência religiosa? Diante de tudo isso, um conceito assim é simplesmente ininteligível.

Em segundo lugar, mesmo que o Real completamente incognoscível de Hick exista, por que deveríamos achar que é o Real em si, por que pensaremos que ele tem alguma relação com experiências de culpa, perdão, conversão, iluminação ou outro fenômeno normalmente associado com religião, em vez de, por exemplo, preconceito de guerra ou racial?

E, finalmente, a espécie de pluralismo religioso de Hick se contradiz em dois sentidos. Para compreender isso, imagine que você é um típico cristão evangélico; lê o livro de Hick e o acha plenamente convincente. Como Hick, você agora acredita que praticamente tudo o que os cristãos tradicionalmente acreditam sobre Deus, Cristo e a salvação humana é apenas “mitologicamente verdadeiro”, ou seja, literalmente falso, mas ainda assim capaz de conduzir a uma relação correta com o Real. Você deve, então, deixar de ser cristão e se tornar outra coisa? De jeito nenhum, diz Hick, pois o cristianismo é um caminho tão eficaz para a salvação quanto o de qualquer outra grande religião; e uma pessoa pode alcançar os frutos espirituais do cristianismo mesmo reconhecendo que quase todos os seus ensinamentos fundamentais são literalmente falsos.

Há dois problemas com essa solução, um conceitual e outro prático. Primeiro, conceitualmente, será que é possível ser “cristão” sem aceitar praticamente nenhum dos ensinamentos centrais sobre Deus e Cristo que distinguem o cristianismo das outras religiões? Por mais vasta que seja a nossa classificação de “cristão”, a definição de Hick parece ampla demais. Segundo, como explica Alvin Plantinga[4], a espécie de pluralismo de Hick parece ser impossível sem uma dose de má fé. Como pluralista hickiano esclarecido, você acha que as crenças de sua tradição são, de fato, literalmente falsas. Ao mesmo tempo, porém, Hick diz que você deve continuar apegando-se a essas crenças por causa dos “frutos espirituais” que elas trazem. Mas como se pode continuar “apegado” a uma crença considerada não mais verdadeira do que aquela que a contradiz? E como alguém pode alcançar os frutos morais e espirituais de uma religião a menos que acredite que ela ensina a verdade?

Assim, os iogues que rejeitam a ideia do ioga como uma (nova?) religião - talvez não desenvolvida, mas certamente adaptada ao mundo moderno urbano ocidental - e o consideram "espiritualidade" pois uma das justificativas acima, lembre-se que todas elas possuem contraposições e, a única maneira de preservar o ioga como uma religiosidade/espiritualidade singular é assumir "todo o pacote" que ele carrega: sua doutrina, sua experiência mística-mágica fruto de suas práticas rituais, assim como as narrativas espirituais erigidas por sua (nova) comunidade que se instala, sobretudo, nos grandes centros urbanos ocidentais.

BIBLIOGRAFIA

IRWIN, W. Matrix: Bem-vindo ao deserto do real. 1ª Edição. São Paulo: Madras Editora Ltda., 2003. 296p.

Notas:

[1] Texto

extraído de Matrix: Benvindo ao deserto do real, org William Irwin

[2] Citado por Michael Shermer em: How

we believe: The search for God in an age of science (Nova York: Freeman, 2000),

p.140.

[3] John Hick, Na interpretation of religion:

Human responses to the transcendent (New Haven: Yale Univesity Press, 1989.

[4] Plantinga, Warranted Christian

belief, p.61-62.

Dr.Roberto Simões

Soteriologia é um palavrão da filosofia que significa uma área que investiga a salvação humana. E cada religião ou tradição espiritual construiu a sua. Vejamos a do Yoga em linhas gerais, lembrando que de forma alguma julgo ser essa a proposta definitiva (muito menos os conceitos em sânscrito), pois como sabemos cada praticante ou yogue tem a liberdade de edificar a sua, mas isso não impede que possamos traçar um "plano geral" para quem inicia a sua história no vasto universo do Yoga.

O Yoga acredita que o contato dos nossos sentidos (indriyas) com o mundo (bhutas) produzem turbulências (vrittis) em nossa mente (citta). A mente afetada por essas turbulências pode nos levar inconscientemente a ficar presos a um apego excessivo ao que nos gera prazer, aversão a tudo e a todos que nos causam dor, um medo da vida e da morte (a única certeza absoluta que possuímos) e um sentimento egóico, de sermos os "últimos do pacote". Segundo o Yoga esses são os klesas, as causas da nossa ignorância, dor e sofrimento. Como nos livrar desse ciclo viciado? Eis a proposta salvífica do Yoga: por meio de preceitos éticos (yamas) e morais (niyamas), de posturas psicofísicas (ásanas), atenção a respiração (pranayamas - já que cada padrão emocional está ligado a um padrão respiratório também), o desenvolvimento de um senso de isolamento aos acontecimentos externos (prathyahara), graus de contemplação mais efetivos (dharana), a meditação propriamente diata (dhyana), podemos nos habilitar a experenciar uma comunhão verdadeira conosco, deus, deuses ou qualquer outra definição similar (samadhi).

Mas é isso? Não, isso é só o começo; e como é interessante notar como muitos parecem terminar por aqui somente, se maravilhar com experiências. Calma, antes que me apedrejem, não desmereço o samadhi, mas relembro que um grande sábio, o primeiro a sintetizar toda a sabedoria do Yoga ainda por volta do séc.II a.C., chamado Patanjali, escreveu em seu célebre livro (Yoga Sutras), 4 capítulos: Samadhi Pada, onde descreve o que é o samadhi; Sadhana Pada, onde esclarece o caminho do Yoga; Vibhuti Pada, que enumera os "poderes" que um adepto ao Yoga pode alcançar e, o mais importante e muito esquecido, o Kaivalya Pada. O que pretendo com isso? Apenas mostrar como é fácil se perder nos "milagres" que o Yoga pode proporcionar (descrito no 3º cap.) e esquecer-se do 4º capítulo.

O samadhi é apenas um estado no qual podemos vivenciar uma sabedoria discriminadora (viveka), livre das turbulências da mente (citta vritti nirodha), não é o fim do Yoga, o fim é ó Kaivalya, como bem Patanjali elencou em seus aforismos. Ainda há um árduo caminho entre muitos "samadhis", por assim dizer, até que a cada experiência integradora como essa ns proporcione novos "vivekas", novas sabedorias discriminadoras dispersando as névoas da ignorância vestidas de apego, aversão, medo e orgulho.

É, experienciar aquele "gostosinho" do fim de uma prática bem conduzida de Yoga não significa lá grande coisa se não conseguirmos cultivá-la pelas outras 23 horas do nosso dia. O Yoga não se limita ao nosso tapetinho. A prática é apenas uma tentativa de nos resgatar do profano dia a dia e abençoar-nos com o divino ou o sagrado que vive em nós. O que importa não é gabar-se da sua prática ser mais forte, lenta, antigravitacional, pura, como o seu animal de estimação, sincrética ou mais musical do que outras, mas o que ela muda em você. Longe do Yoga buscar acalmá-lo, diminuir os seus elevados níveis corticóides ou atuar em áreas do seu córtex pré-frontal ou seja lá qual região encefálica, o Yoga visa tirá-lo da sua zona de conforto habitual e de uma vida sem sentido e compaixão. O Yoga não objetiva nos tornar divinos, mas SER humanos.

Seja Bem-Vinde

Você adentrou um espaço em desconstrução. Desacreditamos metafísicas, por isso bricoleurs ou feiticeiros do Yoga quebrando a demanda de todo maya que lhe enfeitiça. Mas entenda, tudo é maya.

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