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A cultura é um conjunto de costumes, ideias e comportamentos de um determinado coletivo. Já tradição, a transmissão cultural de uma geração a outra. Toda cultura é, portanto, uma invenção humana (ver WAGNER, 2010). Não obstante, culturas e tradições só se tornam visíveis, pelo "choque cultural" que produz ao estrangeiro. Este, em choque, de forma automática, inventa um jeito de entendê-la (Id.). Assim nascem todos os Yogas que conhecemos, e as tradições, são transmitidas. Yoga teve uma "raiz", mas muitas (MALLINSON & SINGLETON, 2017).


O "veículo" de transmissão das tradições yoguicas são também difíceis de serem classificadas, pois não são somente escritas ou orais, mas, corporais. A tradição védica foi oral por milênios e, só por volta do século II a.C., sedentarizou-se como escrita. Os hinos védicos eram (são ou deveriam continuar sê-lo ainda hoje) cantados e não apenas "recitados". É imprescindível incorporar uma tradição para compreender sua oralidade. No mesmo fio, é farta a contribuição da tradição hatha-yoguica medieval cantada em poemas (ver LORENZEN & MUÑOZ, 2011). Por isso que se diz, ser "uma ingenuidade ler um texto oral uma ou duas vezes" e supor que já o compreendeu, pois "ele deve ser escutado, devorado, digerido, como um poema, e cuidadosamente examinado" para que se possa apreender seus múltiplos significados (Fu Kiau apud VANSINA, 1980, p.140). No entanto, a religiosidade yoguica (tanto a erudita nas vozes da tradição yoguica védica, quanto a popular advinda da tradição hatha-yoguica medieval) "desaparece" a partir da modernidade, com algumas raras exceções de esforço em trazer o corpo do yogin moderno e contemporâneo de volta ao seu papel no conhecimento yoguico (NEVRIN, 2008, p.117-118).

É convencional pensar o yoga contemporâneo como uma sequência de posturas combinadas com respiratórios e até "limpezas corporais" para facilitar sua principal tecnologia espiritual - a meditação. Mas a Cultura do Yoga (que é perpassada pela hinduísta, jainista, budista, mulçumana e outras) e suas diversas tradições e tantas outras ordens e subordens religiosas, podem ser apreendidas como tradições corporais, muito mais do que orais e/ou escritas. Os yogins da tradição religiosa Natha, foram (e são) poetas (ver LORENZEN & MUÑOZ, 2011) e artistas do corpo. Toda arte expressa verbalmente, traz consigo uma rítmica de afecções (sensações, sentimentos, pré-sentimentos, emoções) que atravessa corpos do autor e seu próprio coletivo, condensados no corpo, antes, do verbo grafado (LOBO, 2015). Todo yogin-poeta ou artista do corpo, é lícito supor, se dispõe a observar atento a sua realidade (estrutura individual e social); e transforma-la ou transgredi-la, inventando uma nova forma de existir; e não seria isso mesmo a definição do que é ser (ou estar) yogin? (BEVILACQUA, 2017).


Não é que a origem do Yoga esteja "perdida" (e aguardando seres resgatadas por abnegados mestres, gurus ou acadêmicos), ela não existe, pois se esparrama pelo solo (muito mais próximo de rizoma do que raiz) e, produzindo infinitas dobras em si mesma; sendo, portanto, inventada, convencionada e reinventada inúmeras vezes (MALLINSON & SINGLETON, 2017). Por que seria diferente no atual panorama em que, pela primeira vez, yogas são transplantados para o mundo, sobretudo, à cartografias não-indianas? Seria muito ingênuo supor que, sempre plural, agora, yoga se tornaria singular e, qualquer desvio, uma experimentação incorreta, proto-yoguica ou menor.



Os yogins ascetas errantes (sadhus) pertencem a uma cultura e desenvolvem tradições distintas dos yogins da cultura e tradições védicas; são influenciados por, mas não se pode afirmar que sejam da mesma linhagem (e linguagem) espiritual, pois os hatha-yogins bebem do islã e da cultura não-ariana (LORENZEN & MUÑOZ, 2011, p.389-628). A crítica que realizam em seus poemas (e corpos sobretudo) à sociedade e política hindu e muçulmana já é bastante documentada e discutida (Ibid.). Ficou convencionado, nestes últimos 120 anos (desde Vivekananda), no entanto, o Yoga-Sutra de Patanjali como a base textual de todos os yogins do mundo - a "Bíblia do Yoga" -, mas isso não se sustenta pelo que apresentamos até aqui. É, portanto, uma cultura inventada, como bem sustenta Roy Wagner, e tornada hegêmonia e consensual. Em outras palavras, há um corpo yoguico sendo replicado como hegemônico ("perfeito em si-mesmo") na modernidade, mas há outros à margem sendo gestados fora do dossel yoguico indiano.


Segundo a pesquisadora Daniela Bevilacqua, investigando os yogins indianos sadhus contemporâneos, a imensa maioria dessa tradição nunca leu um sutra de Patanjali e, muitos, nem de sua própria tradição - como o Pradipika ou Gheranda. Seu relato nos apresenta uma cultura yoguica de milênios legitimada pelo corpo, nem oral ou escrita, mas corporal ou experimentada. Ou seja, eles não são intérpretes de seus textos, mas experimentadores de si-mesmos imersos na realidade social em que vivem (BERGER & LUCKMAN, 2004); não estão "fora da sociedade", mas embebidos dela, reinventando-a constantemente (BEVILACQUA, 2017). A tradição yoguica dos sadhus é nômade, vive e apreende a sua tradição híbrida peregrinando de cidade em cidade, entre seus festivais religiosos, do ensino direto com seus gurus, mas sobretudo, no convívio com outros yogins de sua e outras tradições, além de toda a população de leigos que os consagram santos e poetas. Eles incorporam costumes, práticas, gestos, regras e saberes (jnana) nas experimentações que realizam (Ibid.).

DISPUTA

O interesse aqui está no saber sendo erigido por yogins vivos e não os históricos, sejam asiáticos, europeus ou americanos, por isso nos interessa menos como eles viveram (o que não desmerece quem se dedica ao estudo arqueológico e filológico - até teológico - de seus textos, costumes e comportamentos), e muito mais como estão hoje se relacionando com a realidade social que os cercam e as soluções espirituais criativas que inventam, operando e adaptando suas culturas, tradições e comunidades morais. Por isso, me perguntei o porquê algumas formas de yoga (e yogins) se tornam legítimas e outras não?


Em outro lugar investiguei como as escrituras antigas do yoga se ressignificaram no seu encontro com a Ciência, sobretudo a biomédica. Dissertei ali, que muito da fisiologia "sutil" havia sido redesenhada com os contornos da fisiologia científica: nadis como sistema nervoso e chackras ao sistema endócrino e etc (SIMÕES, 2011). O objetivo não estava na investigação mística e, muito menos, em "desmascarar" os yogins modernos que pesquisávamos, desvelar suas "apropriações" para tornar suas práticas mais "comerciais" ao público "ocidental". Apresentei suas estratégias soteriológicas e inovações religiosas frente a uma nova realidade social que se apresentavam a eles (Ibid.). Algum praticante, acadêmico ou devoto pode até pensar outros jeitos de aproximação, transplantação yoguica mais "eficiente" (ou mesmo, afastamento completo) às cartografias espirituais europeias e americanas, por exemplo. Este hipotético observador, poderia até julgar ter sido melhor, mais "moral" ou menos neoliberal, que os yogins contemporâneos se se mantivessem ascetas errantes como os sadhus, conservando suas estéticas de existência yoguicas incólumes ao mercado espiritual "ocidental". Contudo, não foi isso o que ocorreu. Foi assim que yogins como Vivekananda, Yogananda, Kuvalayananda e outros, traçaram linhas-de-fuga singulares dos yogins do passado. Foi se tornando notório que eles não pertenciam à tradição daqueles e hoje, abriram suas próprias comunidades morais e tradicionais. O Yoga Postural Moderno possui seus, aproximadamente, 122 anos de vida (a partir de1897 com Vivekananda, até hoje, 2022) e, gostando ou não, disseminaram e continuam crescendo como sentidos de vida para muitos.



Em outro momento, saí a campo entrevistando yogins brasileiros que se dedicavam a "formar novos professores de yoga" (ou yogins) no Brasil (SIMÕES, 2015). Ficou nítido que novos mitos estavam sendo construídos, onde o estresse, o relaxamento e a homeostase, por exemplo, conceitos da fisiologia biomédica, estavam sendo incorporados em experimentações singulares aos antigos conceitos klesas, samadhi e kaivalya, respectivamente. O yoga, entre os praticantes brasileiros ao menos, vinha auxiliando brasileiros a solucionar problemas reais que os atormentavam socialmente (Ibid.; Id., 2018). Assim como entre os yogins ascetas (sadhus) contemporâneos ou medievais indianos, que subvertem a estrutura de castas e lei dos karmas (LORENZEN & MUÑOZ, 2011, p.464; BEVILACQUA, 2017); os yogins brasileiros também pareciam estar estabelecendo relação entre seus sofrimentos psicofísicos (como ansiedade, depressão, ideações suicidas e fibromialgia, por exemplo), mas operando-os de formas singulares (SIMÕES, 2018).


Quando Mircea Eliade descreve a tradição dos yogins sadhus como yogins feiticeiras, cínicos, libertinos, devotos de escolas terríveis "com ritos provenientes de níveis espirituais inferiores e grupos subalternos" (ELIADE, 2001, p.245). Ele segue uma perspectiva moralista que busca descredibilizar todo Yoga desviante do darsana-yoga de Patanjali. Sua definição do que ele denomina de "Yoga erótico", define bem o que busco apresentar:

[o yoga erótico e sua] livre expressão dos cultos orgiásticos secretos e dos maníacos licenciosos que, sem o prestígio do maithuna tântrico e das técnicas hatha-yóguicas, teriam prosseguido sua existência obscura à margem da sociedade e da vida religiosa comunitária. Como toda gnose e toda mística que se difundem e triunfam, o Yoga tântrico não consegue evitar a degradação, penetrando em camadas sociais cada vez mais vastas e excêntricas. (...). É o risco de toda mensagem espiritual assimilada e vivida por massas sem uma iniciação preparatória (Ibid., p.245-246).

Curiosamente o mesmo autor conclui, corroborando conosco, que os mestres surgem, renovando de tempos em tempos, a mensagem yoguica, pois essa:

sofre a erosão das massas (pois a aparição das massas [populares no yoga] é a característica do kali-yoga) e acaba por degradar-se e ser esquecida. Mais exatamente, em certo nível "popular", todo Mestre espiritual acaba por reunir a imagem arquetípica do Grande Mago, do "liberto em vida" e do possuidor de todas as siddhi [poderes mágicos ou extraordinários] (Ibid., p.246).

É lícito supor que há uma disputa pela gênese e estrutura do campo espiritual yoguico, e Mircea Eliade representa o acadêmico que inventa (tornando-o hegêmonico) a cultura yoguica, onde Patanjali e seu Yoga-Sutras, se torna a própria personificação ideal e absoluta do Yoga, e as demais tradições "aborígenes" yoguicas como coalescentes e degradadas (Ibid., p.281-290). É só por volta dos anos de 1990, que uma nova perspectiva se anuncia com a pesquisadora De Michelis que, de certa forma, "funda" a Tradição Yoguica Moderna (ver DE MICHELIS, 2005). Quase toda a população de yogins modernos, pertencem à tradição descrita pela pesquisadora. Mais simples, enquanto Eliade descredibiliza os yogins desvinculados da cultura védica, e elege Patanjali como régua moral de toda a "Cultura Yoguica", De Michelis legitima os yogins modernos. Entrementes, ambas perspectivas acadêmicas ignoram completamente as inovações nascentes que se desdobravam para além da cartografia espiritual yoguica indiana - seja Eliade em seu tempo aos yogas, a partir de Vivekananda, e De Michelis dos yogas "pós-modernos" que surgiam de sua transplantação (SIMÕES, 2022).

CORPO

Quais as semelhanças que fazem as diferentes tradições yoguicas serem identificadas como Yoga? Há uma resposta fácil e outra longa. A fácil é, pois, aquelas "convencionais" ou que gozam da hegemonia numa determinada realidade social, são as dominantes e, por isso, ditam as regras e tudo o que for diferente, não é bem yoga ainda. A longa é compreender que esta ou aquela tradição ou sistema de representações e práticas religiosas se torna dominante, sobretudo, pois goza de círculos de consagração de poder que perpetuam a reprodução da ordem social sancionando-a ou santificando seus atores sociais (BOURDIEU, 2011, p.52-56). Os grupos dominantes de uma dada Cultura se organizam em torno de símbolos que aumentam o seu valor, tornando suas invenções culturais, como naturais, absolutas, "perfeitas em si-mesmas" ou habitus (Id. 1983, p.65; WAGNER, 2011).



Rapidamente, aprendemos que Mircea Eliade, este cientista europeu - naturalizado norte-americano e uma autoridade conquistada pelos círculos de consagração social acadêmico, (Id. 2011, p.116-135) por meio de suas pesquisas sobre religiões indianas - se alia a Surendranath Dasgupta, sacerdote da religião dominante da Índia, mas colonizada por europeus e, igualmente acadêmico com doutoramento em Cambridge, consagram Patanjali como autor da obra mais "clássica" sobre yoga de todos os tempos históricos (ver SINGLETON, 2008, p.77-99). Essa invenção moderna que Eliade constrói, se alia ao rebaixamento das demais tradições e culturas yoguicas, como "manuais preparatórios" ao Yoga Real ou da Realeza (Raja Yoga) que eles inventam.


Isso, de forma alguma, desmerece Patanjali e muito menos os yogas modernos que se baseiam na cultura hinduísta em que o Yoga-Sutras se constrói como Tradição, ou mesmo toda a importante obra de Mircea Eliade. Mas fica evidente que o Yoga-Sutras é só mais uma escritura dentro da vasta literatura, práticas e práxis yoguicas, igualmente, inventadas em suas diversas tradições, sobretudo, as advindas de outras culturas, como as jainistas, sikkhistas, budistas, islâmicas, dravídicas e suas vastas bricolagens (LIBERMAN, 2008, p.100-116; LORENZEN & MUÑOZ, 2011).


Defendemos que as tradições yoguicas a cada tapasya, sankalpa e sadhana yoguica se atualizam nos corpos de suas comunidades (ou sanghas), seja Natha, Naga, Vinyasa-Flow, Vedanta e/ou Darsana-Yoga. São nos corpos dos yogins, autorizados pelos seus círculos de consagração de poder, portanto, de suas próprias experimentações, ao mesmo tempo, singulares e coletivas, que se outorga o carisma deste adepto yogin, autorizando nele transmitir sempre a "verdade" de sua cultura que carrega no corpo que experimenta, e não no livro que interpreta. Mais simples, a eficácia das experimentações corpóreas yoguicas, validam a palavra das escrituras muito mais do que seu oposto (SARBACKER, 2008, p.166-177).


Os textos yoguicos estão escritos, mas antes de tudo, se passa no corpo a transmissão de suas experimentações. O yoga precisa ser digerido, para depois, transmitido de mestre para discípulo (parampara). Considerando o corpo não apenas como transmissor, mas sobretudo, construtor do yoga-conhecimento, eliminamos a hermenêutica dos textos, expondo o corpo-yogin-experimentador. Talvez daí se explique a falta de interesse dos yogins-sadhus contemporâneo, entrevistados por Bevilacqua (Ibid.), no saber dos livros consagrados das tradições yoguicas que, segundo eles, relata a autora, "são para os leigos do yoga". O pensamento material yoguico (e não materialista) é contra a interpretação, pois não há um sentido oculto a ser conquistado ou corpo a ser dominado, reprimido e controlado em direção a um centro "essencial", mas é tudo uma questão de operacionalidade das práticas (tapasyas, sankalpas e sadhana propriamente dito); ou seja, é fazer algo funcionar (ou fazer passar) no corpo pré-reflexivo - não o biológico, psíquico ou "sutil", pois todos estes corpos invenções da cultura e suas tradições científicas, psicanalíticas e religiosas, por exemplo.



Aqui, toda a tecnologia corporal yoguica (seja só sentar-se em sidhasana ou executar um complexo conjunto de "ferramentas": combinação de pranayama, kriyas e asanas, tudo isso enterrado vivo, permanecer em sob uma perna só durante todo o dia ou meditar imerso em água fria no inverno) é uma questão de estabelecer uma relação (encontros). Poucos yogins se interessaram em definir conceitos como samadhi, kaivalya, klesa ou viveka; e raríssimos aqueles que se debruçam em elucubrações filosóficas. Não que estes sejam irrelevantes ou menores cognitivamente para tal desafio, mas parece, com o exposto até aqui, ser esta uma tarefa é irrelevante. Os yogins orbitam e produzem conhecimento de suas experimentações e não interpretações anti-estruturalistas - muito mais das anamneses, operam esquecimentos: é preciso ir mais longe, pois yogin é aquele que disposto a desfazer seu eu (DELEUZE & GUATARRI, 2015, p.13). Suas práticas (sadhanas) são potentes produtores de verdadeiras "máquinas-desejantes" produtoras de afectos (DELEUZE & GUATARRI, 2017, p.11-71). As escrituras e toda a oralidade, poesia e prosa advindas depois e não antes de seus corpos-laboratórios, inventores de materialidades.


É possível agora comparar o programa masoquista que fabrica um corpo, e depois faz circular, passar ou ser "povoado por intensidades", seja por ondas doloríferas, intensidades de frio e etc (Ibid., p.15; BEVILACQUA, 2017). Um "programa de yoga" (ou tapasya), como de um "programa masoquista" não é a busca pelo prazer de forma desviada, suspensiva e/ou repressão (ou controle) do corpo, muito pelo contrário, pois faz parte da "produção de um corpo ainda não organizado pelo socius onde foi (e está) domesticado. Todo tapasya ou produção do corpo (hatha)yoguico há um Lugar, a Potência e o Coletivo para fazer passar algo novo (DELEUZE & GUATARRI, 2015, p.15).


Deste modo, a cultura yoguica (com seus textos, poesia, tecnologias de acesso ao divino e obtenção de "poderes extraordinários" e etc) não foi criada para se buscar um sentido oculto a elas, mas para que seus corpos operacionalizem suas potências com eles. Não há passividade, mas todo yogin é um corpo que intervém como produtor de um novo corpo (adamantino), ou como exemplifica muito bem num texto antigo da tradição hatha-yoguica, "é preciso cozer o corpo no fogo do yoga" (MUÑOZ, 2016). Portanto, há aqui uma produção social dos conceitos yoguicos através dos processos corporais e seus campos construindo e sendo construindo culturas e tradições num processo dinâmico. A literatura hatha-yoguica pré-moderna, mas que convive hoje ainda com os yogins posturais modernos na Índia, dissolvem as barreiras entre o corpo iletrado, ignorante e pária indiano operar na sociedade altamente estratificada indiana como um filósofo, poeta e santo, aproximando-o da mais alta intelectualidade de seu país (ver LORENZEN & MUÑOZ, 2011).


Isso só é possível pela corporalidade de sua tradição. A sofisticação da transmissão corporal da cultura yoguica, por meio de suas multifacetadas e inconstantes tradições, que, por milênios, libertam yogins das castas e leis cármicas que os aprisionam, assujeitam e docilizam corpos indianos não pelo intelecto, o que seria quase impossível pela própria estrutura religiosa que mantém a moralidade das castas funcionando na sociedade, mas na metamorfose de seus corpos em "adamantinos" ou "santos".


Essa é uma linha-de-fuga que se repete o modelo, mas operacionalizadas de formas diferentes, em novos contextos sociais a partir da transplantação do yoga desde o início do século XX (DE MICHELIS, 2008, p.17-27). E, na América Latina, isso se vem sendo operacionalizado, a construção de novos corpos yoguicos, portanto, novas experimentações e estéticas de existências yoguicas quase que ao mesmo tempo que Europa e América do Norte (SIMÕES, 2018).

RITO


O yoga opera sua libertação de corpos a partir da concepção de que todo eu-social pode ser destruído por uma transformação do corpo (LORENZEN & MUÑOZ, 2011, p.457-64). O samadhi, antes de ser definido, é um conceito indeterminado onde se está livre de todos os laços cármicos, grande objetivo e resultado de todos os yogas (JOHNSON, 2010, p.281). Não obstante, De Michelis faz uma aproximação entre o processo ritual de Turner com a prática de yoga propriamente dita, onde o samadhi se configura como próximo da experiência limiar de V.Turner (DE MICHELIS, 2005, p.252-260; SARBACKER, 2008, p.166-177). A liminaridade, caracterizada por um "afastamento que lhe [ao yogin, no caso] fornece conhecimento e lhe revela a arbitrariedade das convenções" sociais – como as leis cármicas, e toda a estrutura de castas, por exemplo -, numa tomada de consciência anti-estrutural (SARTIN, 2011). Indivíduos liminares – yogins em samadhi, portanto – estariam à margem da sociedade (mas não fora dela), numa postura (ou im-postura) de ações renovadoras, desagregadoras e revolucionárias (Id.). Talvez mais simples, todo yogin é potencial transgressor, o que fica evidente e está corroborado pelas atitudes yoguicas ao longo da história, como algumas tradições tântricas (ver WHITE, 2007), hatha-yoguicas pré-modernas (SINGLETON, 2020, p.120-126) e até os yogins posturais modernas e suas diferenças às formas pré-modernas de yoga (ver DE MICHELIS, 2008, p.17-27).


Tradições yoguicas corroboram suas transgressões e seus modos de existir marginais, quando afirmam a "consciência" e todos os "atributos individuais" do yogin dissolvidos no processo meditativo de volta ao "ground of being" ou brahman e, nesta experimentação, o karma, as "distinções de casta e sexo não operam mais" (LORENZEN & MUÑOZ, 2011, p.457-64). Mas será que a experimentação deste não-lugar-samadhi-liminaridade opera em corpos yoguicos fora das cartografias tradicionais indianas (jainistas, budistas, tântricas, hinduístas, sikkhistas e etc)? Dito de outra forma, quais transgressões corpos yoguicos mexicanos, brasileiros, argentinos e uruguaios operam na liminaridade de seus processos rituais yoguicos? Será que a eles buscam o fim dos karmas e das castas estruturando suas vidas socialmente organizadas, assim como os yogins indianos? Estariam os yogins latino-americanos, buscando o mesmo que os yogins-sadhus indianos, aqueles mesmos entrevistados por Daniela Bevilacqua? Certamente que não.


Então o que se passa nos corpos yoguicos postutrais modernos além dos clichês aumento da saúde, diminuição do estresse, ansiedade e desejos neoliberais? Estaria fadado apenas aos corpos indianos o samadhi? Esse entre-lugar revolucionário, desagregador e renovador de novas formas de vida extraordinários? Seríamos, todos yogins sem matriz espiritual indianas, condenados a replicar modelos yoguicos asiáticos em corpos construídos aos moldes de uma outra realidade social que nos organiza?

YOGA LATINO-AMERICANO, EXISTE?


Os yogins latino-americanos são apresentados ao Yoga, quase ao mesmo tempo em que se inicia a sua transplantação no mundo com Vivekananda. É ainda no início de 1900 que a América Latina faz suas primeiras experimentações yoguicas, mas não intermediado por corpos indianos, mas via europeus, uma norte-americana e outro chileno (SIMÕES, 2018). Podemos afirmar que os primeiros yogins, verdadeiramente latino-americanos não pertenciam nem a "tradição" postural moderna do yoga e nem às pré-modernas, viviam num espaço entre (Id.). Quando as primeiras escolas posturais modernas de yoga chegam entre cubanos, argentinos, mexicanos e brasileiros, já existia Yoga, mas sincretizado e hibridizado pela própria cultura latino-americana. Destarte, é lícito afirmar que, especificamente no Brasil, entre os anos 1950-1980, por mais que o yoga no país possa ser compreendido com forte influência indiana, sobretudo da cultura hinduísta, não pertencia à "tradição postural moderna", como descrito na literatura acadêmica (DE MICHELIS, 2008), mas um yoga híbrido entre a religiosidade espírita kardecista, católica, afro-brasileira e a magia ocultista (SIMÕES, 2018). Os yogas posturais modernos, como o Iyengar-Yoga e Asthanga-Vinyasa, vão se tornar hegemônicos entre os yogins brasileiros, só a partir do final dos anos de 2010. E, atualmente (2022), já é possível se perceber novos desvios yoguicos, aquelas escolas de yoga sem matriz espiritual (ou tradicional) indianas alguma, como já descritas em outra pesquisa (SIMÕES, 2022).


Isso, entrementes, não faz esses novos yogas (ou pós-modernos, aqueles que surgem como dobras dos posturais modernos) sendo gestados na América Latina (ou em outras partes do mundo) serem melhores, piores, "em tradição", inautênticos, comerciais ou apropriações culturais só por serem diferentes e com matizes culturais fora do sul-asiático. Defendo que talvez haja experimentações liminares yoguicas acontecendo fora do espectro indiano (e acadêmico), mas promovendo tomadas de consciência anti-estruturais tanto válidas e "autênticas" quanto a dos yogins-sadhus relatados contemporaneamente (BEVILACQUA, 2017).


Talvez seja possível que adaptações venham ocorrendo e operando, circunscritas aos seus próprios contextos sociais, econômicos, políticos e espirituais nas ruas da Índia, do Nepal ou Coréia, mas também nas praças, nos centros de assistências psicossociais (CAPS), morros e favelas das periferias urbanas brasileiras. São yogas com influências dos posturais modernos, sem dúvidas, mas não meras cópias daqueles, pois estão ligados à tessitura da cultura de rua, como a do funk carioca e do axé baianos, da pajelança dos povos originários, da capoeira dos quilombolas, das teorias sociais marxistas (como as da teologia da libertação católicas) e filosofias da diferença (DE FRANÇA & GNERRE, 2016; SIEGEL & BASTOS, 2020; SIMÕES, 2022). Se estas novas experimentações yoguicas de matrizes não-indianas são Yoga, mesmo que não pertencentes às tradições e da cultura sul-asiática, isso não há dúvidas. Mas serão aceitas ou continuarão sendo ignoradas ou vistas como "exotismo", isso depende da mudança de paradigma da academia e do próprio campo Yoga (BOURDIEU, 2011, p.27-34).

PERSPECTIVISMOS

Todos as formas de yoga que conhecemos hoje visam eliminar o Eu que o nosso coletivo edificou em nós. A antiga tradição dos yogins sadhus errantes indianos, se dedicam a romper os laços com a família, se tornam celibatários e devotam suas vidas ao guru e sua ordem religiosa (sampradaya), com a promessa de "zerar" seus karmas e libertá-los do sistema de castas que os assujeitam viver uma única e definitiva estética de existência possível. Yogins da tradição postural moderna obedecem à outra ética, mas a operacionalidade liminar é a mesma, alcançar um "novo Eu". Ambos, entrementes, acreditam que a ordem social em que vivem os alienam (avidya), nutrem-se da fé ou propósito (sankalpa) no yoga os conduzir a uma geografia espiritual sem sofrimento, libertos em vida.


Por exemplo, há yogins brasileiros que convivem no centro de assistência psicossocial (CAPS ou serviço público de saúde mental brasileiro), e experimentam, sistematicamente, o Yoga Restaurativa - um método idealizado por uma brasileira sem lastro "tradicional" com nenhuma escola yoguica postural moderna. Este yoga desenvolveu seu método como um operador de mudanças psicossociais (e não apenas um "docilizador de corpos" para arrefecer sintomas de estresse, ansiedade ou depressão) (ver DERZETT, 2017; SIMÕES, 2022). O yoga restaurativo - da yogin e psicóloga brasileira Miila Derzett - estimula ao diálogo pós-prática, onde o savasana é o único ásana a ser executado, em média de 90-120min, de processo ritual liminar em total quietude (ver DERZETT, 2017).


Um dos usuários do CAPS que participa dos processos rituais yoguicos restaurativos, indaga ao grupo em uma das sessões: "Que lugar é esse que fui parar, onde eu não me sentia mais um doente mental com esquizofrenia?". Ele, provavelmente, vivenciou um espaço liminar, o mesmo que um sadhu da cultura ascética ou um darsana-yogin da cultura védica, mas no contexto psicossocial público brasileiro. O seu "Eu esquizofrênico" - assim como o "Eu preso às castas e suas leis kármicas" -, aquele sujeito organizado pela sociedade normativa que exclui o diferente, abandonando-o em hospitais psiquiátricos, assim como uma indiana mãe solteira de uma relação com um homem casado de uma casta superior também possui seu lugar social. Mas este corpo marginal e minoritário, mesmo que por apenas 120 minutos, perdeu (ele se percebeu assim, não foi uma simples imaginação, pois incorporado) sua pertença no mundo em que fora estruturado como "doente mental" (ou "pária", "mãe solteira da casta sudra"). É neste instante de lucidez (viveka?) que seu conhecimento (jnana?) se expande para novos afectos de tudo o que ele pode ser, abrindo-se para uma possível nova realidade: um "novo Eu" talvez, um eu não mais organizado por qualquer estrutura social, política, econômica ou religiosa surge em potencial.


Poderíamos pensar, pelo exposto até aqui, que todo Yoga é uma potente produção de corpos em novas afecções, portanto, afectando e sendo afectados de outros jeitos o mundo que o organiza, por isso, um transgressor das assujeições de seu campo social – seja na "transcendência" da lei dos karmas e castas, ou "estresse", "ansiedade" e "depressão".


Yoga aqui neste pequeno ensaio, pretende, alargar a superfície conceitual, cultural, política e tradicional do Yoga para experimentações corporais de dissolução (ou afastamento temporário) do Eu-social, para uma tomada de consciência libertária e possível outras estéticas de existência yoguica que não apenas a hegemônica, pois como vimos, são invenções humanas. Ciente que muitos mais estudos e debates devem ser realizados, espero ter conseguindo contribuir com mais um seixo na ampla discussão sobre yoga no mundo e suas intersecções com a sociedade, a política e a religião de nosso tempo.

Bibliografia:

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DE LIMA, S. 2016. A relação corpo e movimento no aprendizado do canto: uma experiência com circlesongs. Trabalho de conclusão de curso, apresentado ao curso de Licenciatura em Música do Departamento de Música da Universidade de Brasília, como requisito para obtenção do título de Licenciado em Música.

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Atualizado: 18 de out. de 2022


Todes yogins nômades (não os sedentários) - urbanos, campesinos, florestais, naturais - nascem e crescem do confronto com a floresta|natureza (e suas populações): os que se transformam sendo, são sempre “uma vitória com floresta”. Floresta é O Todo, Deuse(s), os Encantados, Sidhantas… Isvara nunca estiveram fora, em moksa's delirantemente eugênicos, pois só há um CORPO em que somos todes modificações apenas. E todas as nossas ideias, inclusive essa aqui, desenvolvida parcamente neste texto, são isso mesmo, apenas ideias deste corpo que sou agora embolado com o Corpo Todo da Floresta.


Está tudo sendo agora, se repetindo e diferenciando-se, dentro das gentes humanas e não-humanas; pois até os desumanos reacionários e pequeno-fascistas não saem do rolê. - mesmo ignorando quem são, ainda estão imersos nessa rede infundada que fundam, se afundam e emergem, é tudo parte do Corpo Dela. Os yogins avidyanos, ou alienados, esses indiana-jones caçadores de Self's, de Si's, Eu-Maiores, na bem da verdade, yogam contra a Floresta-Yoga que são (e estão). Não há nada nos habitando, por isso mesmo, nada falta: cessa a busca e perdem tudo o que nunca serão, nunca terão! E é só quando se sentirem perdidos, que iniciarão a virada de chave de Camelo para Leão, para, enfim, Crianças de novo: esses inventores de vida.


Sempre estranho ouvir yogins afirmarem trabalhar seus yogares (sadhanas) para controle de corpos (seus e de seus alunos ou discípulos) para alcançar um algo que não existe. Estes desejam dominações, controles, submissões. Eles sentam e esperam seus delírios se confirmarem no corpo do outre, e quando o outre corpo não percebe ou sente algo novo, correm para interpretar "corretamente" o que se passou. Os seus opostos, os yogins em nomadismo e marcados pela Terra| Floresta, vivem entre a Natureza. Yoga como floresta em [in]constantes intercâmbios selvagens.


Todes yogins selvagens e em nomadismo vivenciam um estado de lucidez permanente, pois visitam o passado, para atualizar o presente e inventar futuros.

Tode yogin, portanto, é pertencente à Natureza, à Floresta, pois modificações, somos Ela. Compreender a Natureza não é ter que escolher entre rejeitar-aceitar o divino dentro ou fora, mas se encharcar Dela, perceber (dar significado aos sentidos que somos).


O Yoga é uma mulher.

E isso não é retórica, mas existência. Yogins nômades e selvagens são criadores de sentidos que vivem em corpos perigosos atualizados de sonhos lúcidos. Yogins sedentários, são acumuladores de coisas sobre yoga. Eles, os sedentários, são invenções recentes, modernos. Se deslocam no mundo por dois afectos: o medo e o ódio. Medo por perder tudo o que acumularam e se acostumaram a chamar de seu; e ódio por tudo aquilo que acreditam ameaçar seus delírios paranoicos e|ou neuróticos. São do agronegócio yoguico, ou seja, extraem, arrancam e grilam do Yoga-Floresta-Mulher. Por isso tanto Yoga-MEU, Yoga-SEU, Yoga-DAQUELE. São uma espécie de Marie Kondo do yoga, mestres da organização pessoal. Desconhecem ainda que yogar tem mais a ver com a poética do swami Tom Zéananda.



A lógica conservacionista não é a do equilíbrio sattvico. Sattva se torna entendiante em pouco tempo. Não há homeostase que aguente sempre a mesma coisa. A eternidade é estresse crônico, puro cortisol-fel sendo secretado em nadis e chackras. Yoga tem mais a ver com vocábulos hindis do que sânscrito.


A realidade é um banzeiro só, e surge do nada, pois “não somos senhores de tudo que fazemos”. Há muito que se passa entre que não percebemos; e há também àqueles em que nada passa ou passa muito e nada fica de resíduo, e os que não sabem do que estou falando agora. Não é raro, entre os sedentários, se tornarem aditos por yoga - a neurobiologia é a mesma Alguns tomam álcool, outros cocaína, e hoje em dia, muitos, tomam yoga para arrefecer seus sintomas de não-pertencimento ao mundo. Claro, inventam um que não existe. Que tal estar na vida e não em moksa, samadhi, nirvana ou o Céu? Que tal a Terra?


Tornar-se yogin é aceitar a Natureza| Floresta que somos. É um ato (lento e gradual) de reflorestamento de si: se florestar aliado ao yoga.

Um professor de yoga, então, é um reflorestador de almas desincorporadas? Para quem é natural nada falta, pleno: tem seu barco para pescar, sua roça para cuidar, sua rede para dormir e amar, e a floresta-yoga para estar sendo. Yogin rico é todo aquele “que não precisa do dinheiro” para ser, e yogin pobre, todo “alienado de seus próprios desejos”. Yoga, nesta perspectiva, é enfrentar seus banzeiros e viver num estado de lucidez permanente. E tu pensa ser fácil e deseja muito isso né? Mas só até vislumbrar uma fresta do que estar assim sempre: "Yoga| meditação não é pra mim", ou "só medito para... criatividade, dormir melhor, ser mais produtivo e o clássico, "ter saúde".


Tocar de leve essa geografia de lucidez assusta, pois temem sentir e perceber com seus próprios corpos. Mas como inculcaram que seus corpos são apenas invólucros, voltam a desejar ser fantasmas-selfs-issos-e-aquilos que nunca serão; sempre em falta, retornam ao samsara do consumo-nosso-de-cada-dia: cultuam técnicas e não seus resíduos, idolatram guris e devotam-se a escrituras, ao invés de filosofias humanas, demasiadasmente humanas.


Todo yogin nômade e selvagem (não o yoga nômade, pois isso não existe: yoga-alguma-coisa será sempre sedentário, ou seja, imaginário) sofre do excesso de lucidez.

Todes mergulham à terceira margem, mas só os yogins-ricos (todes aqueles que não precisam de seus {dinheiros} ou capital simbólico que lhe dão status|comendas) acham morada nos corpos em nomadismo, preservando a vida selvagem (ou florestal) que lhes garantem potência para ser tudo aquilo que desejam. Mas ser tudo o que deseja não tem nada a ver com tudo que se imagina. Desejo é corpo, imaginação, uma ideia do corpo desejante. São errantes estes yogins, condenados à lucidez permanente (como não ser, é um contrassenso), se metamorfoseiam em criadores de sentidos, inventores de mundos, construtores de realidades. Vivem com o contraditório, coexistem com a diferença e a repetição que retorna, mas nunca a mesma.


Sim, eu sei que tudo isso lhe causa espanto, asco e/ou falta de ar como que saltando pro nada (que somos), pois afasta você do convencional obedecer e vigiar. Eu apenas anuncio uma nova dobra. Estes inconstantes yogins não desejam o mesmo que a casta sacerdotal, pois amantes das bruxas, xamãs e feiticeiras, convocam a pajelança com seus xapiris, encantados, sidhantas, poetas e orixás dos cemitérios e encruzas - aqui Goraksa vive ao lado de Paulo Leminski. A lucidez permanente mora no coração 💓 e distante do cérebro 🧠.


Sabe aqueles yogins que você conhece como erráticos, errados, marginais, periféricos, gordos, loucas, histéricas, putas, viados, vadios, dorminhocos, drogados e vestidos de ar? Eles são estranhos, esquisitos, brisadeiros e lhe causam espanto. Estes, nunca estamparam a Yoga Journal, não foram aceitos nas Alianças, eles têm apelidos, não nomes iniciáticos. Vivem fora do padrão-ouro, são imorais, politizados, velhos e analfabetos do sânscrito, mas em suas andanças e dançanças, se perderam de si, para voltar a viver sendo. É sobre tudo isso que anuncio aqui.


Não me refiro aos da “realeza” (raja), mas aos Reais (satyam's), pois embebidos de um {nosso-conhecimento}, experimentam esquecimentos muito mais que interpretações. Não acham, sabem.

Estar imerso em si não é sinônimo de solidão ou estar solitário, apartado do mundo e de todes. Isso, só entre yogins avidyanos de carreira e|ou desatentos, estes yogins alienades, delirantes, metafísicos e pobres - yogares pobres são os que ensinam a in_desejar.


No fundo do rio, todes humanes (yogins, putas, vadios e santos) são nômades. Entre os nômades, só os beiradeires se arriscam mais; talvez por serem exímios remadores, vão à frente abrindo caminho entre banzeiros, atravessando de uma margem à outra com um sorriso largo no peito, nadam de braçadas em busca do nada que somos, pois afundam “todo o corpo na realidade, sabem a verdade, e são felizes”.

Foto do escritorPhD. Roberto Simões

Dias atrás conversei com uma yogin capitalista. Fala assertiva, confiante de quem sabe onde quer chegar e o que está fazendo. Seu discurso é um misto de língua portuguesa, abreviações de conceitos do mercado digital e expressões do internetês: "Não acredito mais em resistir ao sistema, temos que nos infiltrar nele (sic)". Penso comigo: Mas quem disse que um dia estivermos fora? Depois, ela mesma percebe da velocidade que imprime no seu monólogo e dá boa tarde, enfim. Assenti com um olá.


Está me convidando, eu acho (ainda não entendi até agora), se para um evento com fins sociais ou me contratando para um job. Não obstante, o evento é pago via sympla. O público? Bati os olhos nas promos do insta: todes iguais as capas da Yoga Journal misturados com uma vibe hippie chic e recheados por depoimentos bem produzidos - fica evidente que há uma equipe em audiovisual profissional. Mais tarde me confirma, os quais são estes, os únicos trabalhadores pagos de forma fixa, ou seja, com salário.


Vi que seu curso não está bem ranqueado no Google, talvez seja uma oportunidade de alavancar suas vendas e subir no ranking da cidade.

Diz isso como algo "natural", fisiológico, talvez até um pensamento que realmente acredita. Confesso que demorei um pouco para entender o caminho da prosa. Na minha cabeça, estavam me contratando para dar uma aula e tentava entender como seria pago por isso. Começo era social, ok, pro-bono, irado, sem problemas. Mas vou doar meu trabalho enquanto 5 empresas grandes de yoga estão patrocinando o evento, com bilheteria, voltado para o nicho de privilegiados? Interrompi a palestra:

Mas, vem cá, vão pagar quanto?
Veja bem, é um espaço bem movimentando e colaborativo, assim você, ali, vai alavancar suas vendas. Vi que tem uma plataforma ead, né?
Sim. Respondi.

Tudo era como se fosse uma grande oportunidade para mim. Algo realmente inovador e único. Tempo é dinheiro, soltou umas 2-3x. Enquanto o outro lado falava sem pausas, tentava não ser grosseiro, entrar na vibe, mas eu não desejo fazer trocas por divulgação. Entendi serem 2 opções e inegociáveis: (1) receber R$150,00 fixo por 1h/palestra, ou (2) receber 35% da bilheteria.


Enfim, bilheteria foi a forma que eu me expressei aqui, pois há algum nome do internetês para isso. E todo mundo optava por esse segundo modelo colaborativo, deixou bem claro. Refletindo agora, acho que inventou aqueles R$150,00 só, pois insisti preferir receber fixo, igual aos profissionais que filmam. A minha insistência em compreender como seria controlado esse valor da bilheteria e a divisão da porcentagem aos colaboradores, irritou o outro lado.


Percebo que você está se sentido ofendido, então, dorme a ideia, deixa fluir com o universo.

Não. Respondi de boas. Não estou não.

Pensei comigo: é que preciso trabalhar e do dinheiro, afinal, minhas contas não fluem com o universo, mas com os bancos. Percebi que espanei o outro lado, porque ouvi: curte aí esse céu azul da tarde! Sim, estava bonito o céu azul, mas ainda assim, era um trampo. Senti-me ranzinza e velho, injusto, culpado e cometendo algum tipo de quebra de regras já pré-estabelecidas cosmicamente por todes. Será que eu estou por fora?


Só tentava entender e poder, quiçá (o que não cabia, definitivamente, no diálogo), até questionar, já que não era fixo, mas por porcentagem, o valor que receberia (ainda vago, e ainda agora, não sei quanto será): vai fluir com o universo, respondeu para mim em outro momento.



Como se não tivesse entendido a ironia do tempo, voltei a indagar, agora impaciente: Então, só para ver se entendi, se houver 200 pessoas inscritas no evento que custa R$70,00/pessoa, eu recebo R$4900,00, é isso? O outro lado gaguejou: Mas aí tem que ver, pois tem os descontos do gateway e também as meias-entradas. Ficou meio no ar que receberia 35% dos convites que eu vendesse de forma online e para o "meu público" que me segue (no insta).


E, com quem que vê? (a questão da grana, e de quanto, enfim, receberia para dar aula)
Comigo mesmo!

Sim, estou cara a cara com uma yogin capitalista. Seu corpo está absolutamente acoplado pelo capital. Não é uma má pessoa. Realmente se compreende solidária a mim, aos outros colaboradores do evento, a si mesmo, e ao cosmos, e óbvio - aquele, percebi, que realmente sairia ganhando. Como em qualquer empreendimento capitalista, serão as empresas ali presentes, e não, nós, os trabalhadores - inclusive este produtor\organizador ou algum outro nome mais hype.


Perguntei sobre qual aula gostaria que ministrasse, meio que mudando de assunto da grana e me focando no produto que venderia. Já estava conformado (cansado) de falar sobre dinheiro. Estava de boas fazer pro-bono e tudo bem. Cheguei a cogitar, que faria de graça essa participação e, na próxima, pensaríamos em um valor fixo para hora-aula. Mas não era aula, e sim um workshop ou outro nome também em inglês que não entendi. E mais, não haveria negociação, esse era o modo em que trabalhava: fixo-merreca ou 35% de algo que não sabia muito bem como funcionaria.



Eu argumentei, meio que no meu modo chorão, típico de professor do Estado que fui por 20 anos, também ser apenas um trabalhador como outro qualquer. Enganei-me de novo sobre mim mesmo, pois o outro lado soltou essa: você é muito mais. Sim, um professor tolo que estava sinalizando um sim para um trabalho que não saberia quanto receberia.


Estava difícil seguir o diálogo. Não estava irritado, mas me sentindo deslocado, fora do lugar, não pertencia àquilo. Entrementes, final do mês, precisava de algum para complementar, já que minha bolsa Fapesp está há meses em análise, as vendas com as aulas online oscilando, e que óbvio, não cobre todas as minhas despesas em casa. De todo modo, necessitava saber sobre o que o evento desejava que eu colaborasse? Pois, passados 20 minutos de uma conversa estranha sobre good vibes, evento-fluxo do universo e R$150,00, nem sabia mais o tema, enfim.


Sugeri Neurobiologia e Filosofia da Meditação, afinal é o título do meu livro que mais vende e está com mais de 10 anos no mercado. O outro lado me informou que não era de impacto, não daria engajamento, tinha que ser um título mais comercial, pois o pessoal, me disse:


[...] quer algo mais superficial.

Pensei comigo: superficial? Por que então não convida alguém nesse perfil, ao invés de um professor-pesquisador? Seria arrogância eu dizer isso em voz alta, eu acho. Já havia tomado várias invertidas.


Ouço na cabeça a voz da minha companheira dizendo que esse seu riso, misto de escárnio e ironia, é de uma falta de educação tremenda, retenho-o, mesmo que, acredito, ter soltado na rostidade que não percebi. Beleza, então que tal algo com Meditação, não é mesmo? Sugeri que ela pensasse com os outros colaboradores (sei lá), no tema então. Tentei argumentar, na minha total falta de jeito, que fosse algo sobre, pois qualquer coisa com meditação é tipo lavanda (cabe em qualquer espaço), sobretudo ao nicho espiritual nova era que orbita o evento. Diz que vai pensar, deixar fluir a vibe.



A ligação desliga e eu me sinto mal. Estou mal ainda. Não é intelectual ou cognitivo, é corporal, pré-reflexivo, no corpo perceptivo. Como se estivesse diminuindo uma energia tão alto astral do evento social e colaborativo com essa gente fina, elegante, sincera, magra, lindas em seus corpos tatuados, com piercings e regados à música eletrônica (adoro música eletrônica). E, sou eu mesmo o problema: o tiozão que fica segurando os chinelos da molecada entrando na água, e ele parado na areia.


Estar à espreita se tornou um habitus. Assisto a filmes de comédia, leio livros da coleção vaga-lume (referência de velho), ouço BTS, e não consigo me desligar do afastamento necessário de estar ligado que se estou ligado. E sim, viro o chato num sistema programado a desejar o capital sempre de bom grado e ser explorado agradecendo com as mãos em prece gratiluz.


É que no yoga o rolê do capital é sutil. São todos empreendedores embebidos na teologia da prosperidade e na moral do trabalho, mas não é salário, porcentagem de venda, hora-aula, faturamento, é energia contributiva. E você, que toca no assunto sagrado para eles (o capital é sagrado e o capitalismo, sua religião), se transforma no explorador que só pensa em dinheiro: apegado (o endemoniado) às coisas materiais. Isso é muito interessante parar um pouco mais para reflexão da contradição, pois é a própria alma do capitalismo, sobretudo no campo da espiritualidade.


O dinheiro é o que os move, mas não se fala muito nisso em público, pois sagrado, não pode ser dito em voz alta no plano do profano - não se pronuncia o nome Dele em vão. Aí, você é explorado de forma resignada e complacente, em compaixão por todos os seres que lhe exploram. Pode perceber, exploração só sai da boca de socialista, anarquista e comunista, os que se opõem de verdade, ao sistema capitalista. Estava "só pensando em quanto iria ganhar" e o outro lado, "na energia sendo movimentada" pelo evento espiritual.


Não, meu corpo sinalizava indignação de estar sendo explorado ou, ao menos, poder ter o direito em negociar um valor justo pelo trabalho sendo comprado pelo evento, entende?



Eu, professor, estava sendo contratado por uma empresa, e não convidado a participar de uma grande rede social de ajuda mútua. Isso ocorreria (rede social de ajuda mútua colaborativa), se os colaboradores sentassem para decidir juntos, como o dinheiro arrecadado pelo trabalho no evento, seria repartido. Se, as regras já foram estabelecidas antes de os trabalhadores serem contratados pelos empresários que estão financiando, colaborando com seus produtos e expondo suas marcas, então, que fique claro, uma parte dessa fatia empresarial, também precisaria ser repartida com os colaboradores, pois a minha aula (que não sei mais qual o nome do que faria lá) e imagem (que tem valor) vai agregar valor à marca do empresário.


Mas aqui é o pulo-do-gato, se inverte o rolê, pois "sou eu que irá se beneficiar" de ter o privilégio em doar a minha força-de-trabalho ao lado dessas empresas que, julgam, agregarão valor a mim, trabalhador, pois aumentará a minha exposição e, por conseguinte, volume de vendas dos meus cursos ead, aulas particulares, etc.


E você pergunta agora: ué, mas não é assim merrmo?

Não, eu e você, professores|trabalhadores de yoga, vendemos nossas aulas|práticas não somos empresas, somos profissionais liberais, tipo Uber sendo explorados por outras empresas maiores que lucram horrores com a gente. Ninguém paga um ingresso para festival de yoga e afins devido a uma empresa que vende tapete de borracha ou kombucha. É o nosso trabalho e capital simbólico que trará alguém para o evento onde eles serão expostas as marcas deles; sem os trabalhadores não há clientes para consumir nada. Alguém paga um ingresso para participar de um ritual temazcal, prática de yoga ou aprender um pouco mais sobre um tema da filosofia yoguica, nunca pra se expor as marcas de yoga, sacou?


Pósfácio: fui desconvidado na semana seguinte da ligação.





Seja Bem-Vinde

Você adentrou um espaço em desconstrução. Desacreditamos metafísicas, por isso bricoleurs ou feiticeiros do Yoga quebrando a demanda de todo maya que lhe enfeitiça. Mas entenda, tudo é maya.

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