Resumo
O Ioga como conhecemos hoje sofreu encontros e desafios que obrigaram aos iogues do início do séc. XIX na Índia a se ajustarem às novas racionalidades que surgiam, sobretudo no seu contato com a ciência moderna ocidental. A fisiologia, a neurociência e a biomedicina trouxeram soluções que antes eram monopólio exclusivo da fisiologia sutil, mágica ou espiritual ioguica surgida entre os séculos II a.C. e XIV d.C. O Ioga moderno e a sua prática incorporada ao ritmo das grandes cidades de consumo e em contato com a ciência ocidental conquistou novos adeptos, mas parece ter direcionado o seu caminho de salvação na busca por uma espécie de cura espiritual pelo relaxamento, o que ao mesmo tempo em que desencantou a sua prática para alguns, transformando-a em técnica terapêutica secular, para tantos outros a elevou ao nível de “científica” uma religião mística. Demonstro o caminho histórico-social que acarretaram essas mudanças e os iogues que ressignificaram o Ioga que conhecemos hoje.
Palavras-chave: ioga, fisiologia, religião, ciência, salvação.
Abstract
Yoga as we know it today has faced encounters and challenges that forced yogis from the beginning of the XIX century in Índia to adjust to new rationales that have arisen, especially in their new contact with western modern science. The physiology, neuroscience and biomedicine brought solutions that were previously exclusive monopoly of a subtle or spiritual yogic physiology arisen between the 2nd b.C. and 14th a.C. centuries. The modern yoga and its reframed practice to the rythm of the consuption cities and yet in touch with western science conquered new practitioners, but it seems to have directed its salvation paradigm to a kind of spiritual healing through relaxation, which at the same time disenchanted some of the yogis transforming it into a secular therapeutic technique, for many others raised a spiritual mystic to the level of “scientific”. I am willing to set forth the sociohistorical path that led to these changes as well as the yogis writings responsable for all the yoga literature available today.
Keywords: yoga, physiology, religion, science, salvation.
Introdução
Em nosso último censo do IBGE lemos que o Brasil abriga mais de 5 mil hindus, 155 mil adeptos de “novas religiões orientais”, sendo que destes, 52.235 se autointitularam crentes de “outras” novas religiões orientais. Também apareceram adeptos de tradições esotéricas estimados em 74 mil, e mais de 11 mil de brasileiros disseram professar “outras religiosidades” que não conseguiram identificar entre as opções oferecidas pelo recenseador. Cerca também de 14 milhões de brasilerios declararam-se “sem religião” mas não ateus, o que denotam que professam alguma fé ou crença mas que não estão ligadas a nenhuma instituição identificada ou constituída (ainda), além de 124 mil brasileiros classificados como agnósticos. Isso sem contar os mais de 640 mil praticantes de “múltiplas crenças” e 61 mil declarados “espiritualistas”, que se diferem dos espíritas.
O que pretendo com esses números é demonstrar que podemos pensar em mais de 14 milhões de brasileiros (cerca de 7% de nossa população) compreendendo-se professar crenças e fé de origem “oriental” de uma forma ou de outra e, dentre estas, há talvez uma parcela expressiva de brasileiros que pratiquem e sigam a doutrina do Ioga considerado moderno, mas que por ser uma espiritualidade muitas vezes envolta na “nebulosa mística da Nova Era” ficam diluídos e desconhecidos em “outras crenças” ou “múltiplas crenças” sem uma identidade religiosa singular e desvinculado do hinduísmo. Nosso intuito se reduzirá, no entanto, em identificar aqui a influência da fisiologia moderna ocidental na ressignificação da doutrina ioguica. Cabe a novos estudos investigar o campo religioso ioguico no Brasil e suas próprias ressignificações e sincretismos.
O início
Para o ocidente, o Ioga desembarca oficialmente nas suas terras com o Swami Vivekananda (1863-1902), em 1893, na cidade de Chicago nos Estados Unidos. A sua visita foi, por convite do Primeiro Parlamento Mundial das Religiões, como o representante do hinduísmo nesse evento. No seu discurso apresenta já um Ioga com distintos sincretismos dos seus tempos pré-modernos (pós-clássico ou medieval), tanto em termos ideológicos, religiosos e fisiológicos . Para Vivekananda, o Ioga é então considerado como um ideal de “religião universal”, sendo ele um dos primeiros a ressignificar a fisiologia sutil do Ioga com termos científicos.
O Ioga que Vivekananda oferece aos emissários das principais religiões ali presentes, é o de uma tradição religiosa pautada em uma das formas pela qual o ser humano alcança a sua “verdadeira liberdade” e manifesta a sua “divindade interior”. Vivekananda procura demonstrar nos seus pronunciamentos e depois em outras palestras e livros que a religiosidade indiana, condensada por ele com o nome Ioga, se sustenta tanto filosoficamente quanto cientificamente e está à altura de qualquer outra religião ali representada.
O seu discurso ficou bastante popular, o que lhe possibilitou fundar organizações ioguicas por cidades do mundo inteiro, tendo o seu pensamento, em relação à religião Ioga e a ciência formado a base intelectual de uma geração de iogues que veio depois dele. Vivekananda também ficou conhecido como um defensor da tolerância religiosa, tornando-se um dos grandes ídolos do hinduísmo moderno, além de um grande inspirador dos novos movimentos religiosos (principalmente da Nova Era) que primam, assim como o Ioga dito moderno, por assimilar os seus ensinamentos religiosos como científicos.
O Ioga, então, inicia as suas relações híbridas com novas culturas, sociedades, políticas, economias e geografias, como em outros momentos históricos. Contudo, agora, esse contato vai mudar o caráter do iogue renunciante do mundo de tempos passados, para um ascetismo que dialoga com o mundo nos tempos atuais, pautando-se em escrituras religiosas como o Bhagavad-Gita.
Consideremos agora a diferença entre um yogue-asceta e um monge samsari (que se propõe a participar do jogo exterior de maya). Diga-se desde já que o “samsari” não precisa jogar obedecendo ao ego. Com efeito, é grato por Deus e muito útil ao desenvolvimento espiritual participar do jogo divino sem recorrer ao ego, em vez de procurar envolvê-lo no processo.
Enquanto aqueles iogues clássicos e medievais abandonavam o convívio social e dedicavam a sua busca religiosa de salvação do sofrimento humano (avidya) por meio de rituais secretos para diminuição dos seus vrittis (“turbilhão da consciência) e de seus klesas (sentimentos de apego, aversão, medo da morte e orgulho) retirados em ashrams e cavernas isoladas (ver sutra I.16 do Hathayogapradipika), os iogues modernos se globalizam e adquirem a preocupação de difundir os seus ensinamentos para o mundo, abrindo mão da reclusão e sofrendo o risco da secularização de sua religiosidade. Esta passagem histórica de renúncia necessária ao mundo e agora, de participar do mundo e difundir as ideias religiosas de salvação aos outros se configura uma das características mais marcantes do Ioga que se conhece atualmente segundo Sarah Strauss. Assim sendo, de acordo com estudiosos contemporâneos, o Ioga atual precisou aprender a lidar com os acontecimentos, principalmente os advindos do nacionalismo indiano, do ocultismo ocidental, da filosofia neo-vedanta, dos sistemas de cultura físicos modernos, do islamismo, do cristianismo primitivo, da ciência moderna (principalmente a fisiologia e a biomedicina) e do movimento Nova Era para se autofirmar contemporaneamente. Este é o novo pano-de-fundo que configura o Ioga que se conhece atualmente.
Elizabeth De Michelis salienta os pontos-chaves que facilitam a compreensão do surgimento do Ioga moderno. Segundo ela, desde 1600, por intermédio da Companhia das Índias Orientais, que a Índia vem estabelecendo relação com os países da Europa e América, mas é a partir de 1750 que as sociedades ocidentais voltam o seu interesse para a economia, o sistema político e a cultura indiana. Com isto, desde 1830 que surgem os debates devido aos movimentos de reforma social na Índia Britânica, abrindo-se um diálogo entre os intelectuais e as autoridades sobre a “anglicização” da colônia. Os primeiros sinais de uma ocidentalização da religiosidade indiana ocorrem por volta de 1850, como se pode ler nos escritos do naturalista, poeta e transcendentalista norte-americano, Henry David Thoreau,.
No início do século XX presenciam-se o surgimento do movimento Nova Era e a rápida modernização das religiões asiáticas, as quais dão início a um produtivo diálogo com outras crenças e culturas, fato que continua até hoje. Entre 1914 e 1945, devido às duas grandes guerras mundiais, a disseminação das idéias modernas do Ioga diminui a sua influência, sendo retomada novamente a partir da independência da Índia em 1947. Por intermédio de iogues carismáticos e convidados pela onda contracultural que acontece nos anos sessenta, várias organizações do Ioga se popularizam por todo o mundo. Após um período de certa indiferença pelo Ioga, na década de oitenta, nos anos noventa surge uma entusiástica aculturação por uma geração de praticantes e de devotos seguidores da sua proposta de salvação espiritual e de saúde.
O Ioga, principalmente por meio de alguns iogues, entre tantos outros, como Swami Vivekananda, Sri Yogendra, Paramahansa Yogananda, Swami Kuvalayananda, Swami Sivananda e Krishnamacharya. Os métodos ioguicos mais populares e praticados contemporaneamente se devem aos iogues mencionados acima, tendo as suas ideias edificado algumas das inúmeras escolas, tradições ou organizações ioguicas religiosas no mundo atual como The Yoga Institute (1918), de Sri Yogendra; Self-Realization Fellowship (1920), de Paramahansa Yogananda; Kaivalyadhama Yoga Institute (1924), do Swami Kuvalayananda; “Yoga de Krishnamacharya” (1924), de Krishnamacharya; Sivananda Yoga: The Divine Life Society (1936), do Swami Sivananda; e o Vivekananda Kendra Yoga Research Foundation (1972), fundada por Eknathji Ramkrishna Ranade (1914-1982), organização esta baseada nos princípios de Vivekananda.
Todas estas organizações ioguicas, de uma forma ou de outra, fomentam e divulgam as suas religiosidades também nas pesquisas fisiológicas dos seus métodos de ensino ioguicos. Elas se orgulham de terem artigos publicados em revistas científicas sobre os benefícios das suas práticas para a saúde. Para Iyengar por exemplo, iogue contemporâneo e discípulo de Krishnamacharya, bastante conhecido por adaptar seu método ao público ocidental, principalmente por introduzir “utensílios” como almofadas, fitas e outros nas salas de práticas, afirma que “a pessoa indisciplinada é alguém sem religião; a pessoa disciplinada é religiosa; a saúde é religião; a doença é falta de religião”. O interessante aqui é o apelo que acontece à saúde como compensador fisiológico que a prática oferece e a sua correspondência com a religião. Para se entender o que permitiu esta configuração atual, que transformou a religiosidade ioguica bastante mística e hermética de outrora em uma prática secular de cura incorporada pelos sistemas de saúde pública no combate ao estresse é necessário voltar para 1750, período histórico em que o continente indiano inicia um processo que veio mais tarde ser chamado de “Renascença” Indiana, quando a cultura deste país principia um diálogo maior e aberto com o mundo ocidental e os intelectuais indianos visando alcançar a sua independência dos ingleses.
“Renascença” Indiana
É no período “renascentista” em que alguns indianos vão estudar na Europa e percebem que o seu país, apesar da grandiosidade da sua cultura e história, sofre com a precariedade do seu sistema de saúde, com as crenças populares supersticiosas que envolve sua religiosidade, com uma educação ineficiente e pela economia explorada pelos britânicos. Muitos destes jovens, na sua maioria da região de Bengala - área do nordeste indiano onde se localiza Bangladesh, Calcutá e Daca - entendem que seu povo poderia (e deveria) se beneficiar também dos avanços da ciência, da tecnologia e da medicina ocidental que eles testemunham, geralmente nos centros acadêmicos do mesmo país que os colonizava.
Os intelectuais de Bengali, como ficaram conhecidos, abriram o diálogo com os ingleses, instituindo uma ideologia que seria incorporada pelos iogues e que conduziu a modernização do seu país. Esse processo veio a influir na formatação de um Ioga menos místico e mais condizente com o pensamento racional ocidental, sobretudo dos cristãos ingleses. Entre aqueles que deram início a esse processo, merece destaque Raja Ram Mohun Roy (1772-1833), filósofo filho de um pai vaishnava e de uma mãe shivaísta, que causou grande impulso no surgimento da Índia “Renascentista”. Raja Ram fundou o primeiro movimento religioso Neo-Vedanta, o Brahmo Samaj (Comunidade de Devotos a Brahma), em 1828.
Politicamente Roy influenciou bastante as reformas sociais e religiosas do povo indiano. Ele entendia que o sistema hindu de então não estava bem ajustado em promover os interesses políticos do país de acordo com o pensamento ocidental. Seria necessário que algumas mudanças ocorressem na sua religião também. A experiência de Roy trabalhando com o governo britânico lhe ensinou que a tradição religiosa hindu muitas vezes não era respeitada para os padrões intelectuais ocidentais, por isso tentou demonstrar que as “práticas supersticiosas” que, para o europeu, configuravam a religião hindu como “primitiva”, não correspondiam à sua real tradição como ele a entendia. Tais práticas religiosas, ditas “primitivas” eram frequentemente a razão oficial para que os britânicos afirmassem que tinham uma certa superioridade moral sobre a nação indiana. As ideias sobre religião que Raja Ram Mohan Roy buscou então construir, por meio da implementação de práticas semelhantes aos ideais cristãos, eram a de uma sociedade justa e humanitária para que assim, fosse possível autenticar a entrada do hinduísmo e o ioga no mundo moderno,.
Swami Dayananda Saraswati (1824-1883) foi um religioso e asceta hindu que também se envolveu no movimento de reforma da Índia. Ele acreditava na autoridade infalível dos vedas, no ceticismo do dogma, além de se posicionar contra a idolatria religiosa. Ele tentou reavivar o sistema das idéias védicas lutando pela tradução dos vedas do sânscrito para o híndi para que todos, mesmo às pessoas comuns, tivessem acesso aos seus ensinamentos. Um dos seus princípios foi o respeito e a reverência para todos os seres humanos, pois na doutrina védica, dizia ele, todos os indivíduos possuem uma natureza divina, sendo o corpo o templo da essência humana ou atman. Fundou também, em 1875, assim como Raja Ram, uma organização religiosa conhecida como Arya Samaj (Sociedade dos Nobres) mas, ao contrário de Roy, desferiu fortes golpes contra as tentativas de aproximação entre o hinduísmo e as outras religiões.
O Arya Samaj condena inequivocamente a adoração de ídolos, o sacrifício dos animais, o culto dos antepassados, as peregrinações, as “embarcações” de sacerdote, as oferendas em templos, o sistema de castas, a “intocabilidade”, o casamento infantil e a discriminação contra a mulher, pois, segundo o Arya Samaj, a todas estas práticas falta à sanção dos vedas,.
Paramahansa Ramakrishna (1836-1886) foi um dos líderes religiosos mais carismáticos do movimento de modernização da Índia. A sua vida religiosa se inicia como devoto à Deusa Mãe, mas ele queria, sobretudo, conhecer o que as outras religiões ensinavam de Verdadeiro e em comum. Ramakrishna foi iniciado no advaita vedanta por um monge peregrino chamado Totapuri, na cidade de Dakshineswar, e enfatizava que a realização divina era o objetivo supremo de todos os seres vivos, sendo que para ele, a religião servia como meio para atingir esta meta. A realização místico-religiosa de Ramakrishna levou-o a crer que todas as religiões são caminhos para alcançar Deus(a), e que a Realidade nunca poderia ser expressa em termos humanos. Isto estava de acordo, segundo ele, com o que declara o rigveda: “A verdade é única mas os sábios a chamam por diversos nomes”. Como resultado desta Verdade, Ramakrishna passou momentos intensos da sua vida praticando, de acordo com seu entendimento, o Islã, o Cristianismo, vários tipos de Ioga e de seitas tântricas dentro do hinduísmo. Mas o ceticismo também permeava os seus ensinamentos tanto que passou muito tempo se perguntando se estava adorando uma pedra ou a própria Deusa em sua imagem, questionando assim a razão na adoração de ídolos.
Ramakrishna teve como um de seus discípulos mais importantes e conhecidos, o filósofo Narendranath Dutta, mais popular como Swami Vivekananda (já mencionado no início do artigo). Este, como se viu, foi o pioneiro em propalar o Ioga para o ocidente, mas como representante do hinduísmo (e de todo esse “renascimento” indiano) ele não foi “sozinho”, levou na sua bagagem toda a religiosidade da Índia do seu tempo com elementos cristãos, esotéricos ocidentais, científicos e neo-hindus, distintivos da efervescência dos pensadores libertários com quem convivia, principalmente do seu guru, Ramakrishna. Nos comentários de Yogananda (outro importante iogue moderno) sobre o Bhagavad-Gita, está muito claro o sincretismo com a ciência fisiológica ocidental, a mística e o cristianismo, além de uma busca por uma universalidade religiosa que, segundo ele e outros, o Ioga é o seu maior representante nos tempos modernos. O modo crítico como estes intelectuais de Bengali trataram as suas escrituras religiosas, marcou profundamente a maneira como o Ioga atual repensou também a fisiologia sutil dos seus tratados religiosos.
Keshab Candra Sem (1838-1884), outro importante religioso de Bengali, foi um dos primeiros a procurar instituir a universalidade religiosa pelo Ioga. Em meados de 1876, Sem, já convertido ao cristianismo e também avesso ao misticismo e à idolatria, se encontra com o até então desconhecido iogue Ramakrishna Paramahansa, identificando nele um verdadeiro santo. Do encontro destas figuras do “renascimento” indiano surge mais uma sincrética organização religiosa chamada Nabo Bidhan ou New Dispensation, a qual almejava unir os princípios cristãos, hindus e as tradições místicas ocidentais, forjando uma síntese neo-vedanta da Índia tradicional com o ocidente.
Lokmanya Tilak (1856-1920), assim como todos os anteriores, nasce em uma família brâmane. Ele entendia que a religião e a vida cotidiana não eram diferentes, portanto, para se tornar um sanyasa (religioso renunciante) não era preciso isolar-se do mundo, mas viver nele. Não seria preciso, dessa forma, abandonar a sua família para obter a salvação prometida pelo Ioga. Este pensamento seria uma característica importante que facilitaria a expansão ioguica pelo ocidente, fato tão comum entre os iogues e os praticantes de hoje em dia. Para Tilak, a vida religiosa não consistia em se alienar do mundo cotidiano, pelo contrário, cada um deveria harmonizar a sua existência. Um reflexo disto pode-se ler nos textos do iogue Iyengar, em que para ele “bramacharya é a vida conjugal feliz”, o oposto do que era definido como bramacharya no contexto histórico-social e religioso da Índia antiga, onde se pregava a absoluta castidade e isolamento social,.
Tilak graduou-se em matemática, mas foi como jornalista e educador bastante ativo e adepto das causas nacionalistas indianas que participou da independência indiana. Ele fundou, junto com amigos, a Deccan Education Society, escola com um novo sistema de ensino afiliado com os ideais de independência da época. Em 1903 lança o livro The Arctic Home in the Vedas, em que propõe um modo radicalmente novo de determinação do momento histórico exato dos vedas, bem mais lógico do que mítico. Também outros livros como o Shrimadbhagwadgeetarahasya, que analisa o karma Ioga apresentado no Bhagavad-Gita, tratado fundamental da tradição hatha-ioguica.
Outra figura importante, dentro da educação e da política no movimento nacionalista indiano, é Sri Aurobindo (1872-1950), intelectual que em Bengala de 1906 comanda uma tentativa de revolução contra os ingleses. Durante a sua prisão pelo governo inglês passa por diversas experiências místicas e, depois de libertado, devota a sua vida ao caminho religioso de salvação pregado pelo Ioga. Entre os seus livros que influenciaram a geração atual de iogues está O Yoga de Sri Aurobindo, Renascimento, Yoga, Mantra e Oração. Viveu até aos setenta e oito anos, tendo a sua atuação política e religiosa sendo muito relevante entre os intelectuais da época.
Os intelectuais e religiosos que se seguiram, buscaram preservar as tradições culturais indianas e divulgá-las ao mundo mas tentanto retirar-lhes toda a carga mítica, mística e de magia presentes no Ioga medieval. Entre as suas conquistas, sempre embasadas na exegêse das suas escrituras religiosas, estão a luta pelos direitos das mulheres, a extinção constitucional das castas, da poligamia e das crenças populares religiosas, assim como a obrigatoriedade do ensino da língua inglesa nas escolas (fato este que permitiu um salto qualitativo no ensino para os jovens indianos). Além disto, eles tentaram instituir um Deus único dentro do panteão hindu, tendo sido os primeiros a traduzirem a literatura védica para o inglês, permitindo um debate inter-religioso saudável, ecumênico e crítico.
Foi assim, por meio de uma verdadeira reforma social, política, cultural e religiosa que muitos iogues da Índia procurou construir e expor a sua nova face ao mundo moderno. Com isto, o Ioga, como um emblema da sua religiosidade, sofreu influências que transformariam o seu sistema de crenças e de práticas sofrendo ressignificações e propiciando o advento de diversas outras organizações ioguicas, sendo algumas bem mais seculares do que outras. Um dos resultados dessa abertura foi o embate entre o racionalismo pragmático desse novo pensamento liderado por intelectuais e religiosos reformadores da Índia moderna e a mística do Ioga.
Assim, os custos morais e ideológicos que a religiosidade ioguica medieval carregavam nesta época já não valiam mais a pena para os iogues modernos. O secularismo ocidental estava levando a Índia, altamente mística e mágica, a não ser respeitada pelo seu colonizador, o que representava, entre outras coisas, o ocidente e os desenvolvimentos industrial e acadêmico. O progresso, segundo Stark e Bainbridge, pode estimular o “descrédito das crenças religiosas tradicionais” produzindo novos problemas enquanto resolve outros para que só as religiões tradicionais vigentes (no caso o hinduísmo e o Ioga para o povo indiano) dispunham de compensadores.
A secularização significa a perda de poder por parte das organizações religiosas, o declínio concomitante da coerção em nome da tradição religiosa, o descrédito progressivo das explicações religiosas tradicionais e o abandono, por parte das igrejas-padrão, da parcela da magia que elas previamente ofereciam a seus participantes [no caso aqui da fisiologia sutil do Ioga, sobretudo].
Desta forma, o Ioga medieval, pautado altamente pela fisiologia sutil e pelas crenças populares perde espaço frente ao progresso e o renascimento do continente indiano e, com ele, todos os problemas também que o acompanham, obrigando aos iogues da geração moderna ressignificarem a sua fisiologia sutil frente aos avanços da fisiologia científica ocidental que tomavam contato agora e impunham o seu poder dominante de conhecimento sobre o conhecer religioso de outrora.
Os Primeiros Iogues da Geração Moderna
Um dos primeiros iogues da nova geração, discípulo agora de Vivekananda a se destacar no cenário ioguico moderno foi Sri Yogendra (1897-1989), jovem estudante que desde cedo atua como educador em uma das primeiras escolas modernas da Índia. Incentivado pelo seu guru, mescla, ainda em 1917, a educação formal com os preceitos éticos e religiosos ensinados por Ramakrishna. Um ano mais tarde (1918), Yogendra inaugura a primeira organização moderna de ensino ioguico do mundo, com a missão bem clara que seria o “mantra” dos iogues de sua geração: difundir a “ciência” do Ioga. Ao mesmo tempo Yogendra procura manter-se fiel a sua tradição religiosa que se revelará um artifício importante para a difusão da doutrina e práticas ioguicas de salvação.
O Instituto de Ioga de Yogendra desde a sua fundação se vincula, assim como todas as organizações ioguicas posteriores, ao bem-estar físico, mental e espiritual que o seu método de ensino propaga, bem como à cura de infinitas enfermidades como o diabetes, a hipertensão, o estresse, problemas cardíacos, ortopédicos e respiratórios,. Revela-se já uma presença muito mais marcante de elementos da fisiologia científica do que a sutil de outrora.
Outro indiano a fomentar o Ioga que se conhecem atualmente é Mukunda Lal Ghosh, um destacado desportista que também se alinhou com a ciência e o Ioga. Mukunda nasce em uma abastada família bengalês, ficando mais conhecido pelo seu nome iniciático, Paramahansa Yogananda (1893-1952), e por ser o responsável por fundar as primeiras organizações ioguicas fora da Índia. A sua história se inicia após se formar pela Universidade de Calcutá, onde dedica a sua vida à divulgação religiosa do Ioga. Em 1920, a convite de um congresso com líderes religiosos nos Estados Unidos e incentivado pelo seu guru, Swami Sri Yutkeswar (1855-1936), viaja para Boston com a intenção de proferir uma palestra sobre a “Ciência da Religião” e divulgar o método do Kriya Ioga (método ioguico da tradição hatha-ioguica). No mesmo ano, após um ciclo de palestras em diversas cidades norte-americanas funda a sua própria organização religiosa, a Self-Realization Fellowship (SRF), localizada nos Estados Unidos e hoje com sedes espalhadas por todo o mundo.
Yogananda refere-se ao Ioga como o “caminho da espinha dorsal” e afirma que o prana (energia vital) “penetra no corpo através da medula oblonga, na base do cérebro”, o importante aqui está na inclusão da anatomia científica (medula oblonga) como correlação direta com anatomia sutil do Ioga.
(...) por meio dos exercícios (de Ioga) mantemos nossa flexibilidade e força da coluna vertebral, assim a circulação (sanguínea) é aumentada e os nervos mantém seus suprimentos de nutrientes e oxigênio (...) os ásanas também afetam os órgãos internos e o sistema endócrino.
Segundo relatado na sua autobiografia, o Ioga que trazia ao mundo era um renascimento da mesma “ciência” que Krishna deu a Arjuna (referindo-se ao clássico tratado religioso Bhagavad-Gita), sistematizado por Patanjali (Yoga Sutras) e trazido aos apóstolos por Jesus Cristo. Segundo o mesmo texto, a Libertação pode ser alcançada por meio da cessação dos nossos processos inspiratórios e expiratórios, assim, tanto a fisiologia e anatomia científica e sutil quanto o cristianismo recebem grande atenção nos seus trabalhos, práticas, pesquisas e divulgação de sua instituição e método.
Jagannath Ganesh Gune foi mais um universitário indiano a se entusiasmar com a efervescência nacionalista hindu, principalmente com as idéias de Sri Aurobindo, de Lokmanya Tilak e pelo conceito da Fraternidade Universal do educador físico Rajratan Manikrao (1878-1954), discípulo de Paramahamsa Madhavadas-ji (1800-1921) da tradição ioguica de Gauranga Mahaprabhu, e instituidor do Centro de Cultura Espiritual para Elevação da Humanidade. Gune, professor de educação física, mais conhecido como Swami Kuvalayananda (1883-1966), assim, desenvolveu grande conhecimento sobre fisiologia e anatomia sob o ponto de vista da ciência ocidental. Ele, empolgado pelo espírito de renovação cultural, religiosa e social que o seu país vivia e pela possibilidade de investigar academicamente as práticas fisiológicas ioguicas, e com isso aplicá-las gratuitamente à medicina convencional (ocidental moderna) do seu povo, se tornou o pioneiro na sistematização das pesquisas científicas das diversas técnicas físicas do Ioga que se conhecem hoje.
Kuvalayananda inicia suas pesquisas ainda em 1920 e, alguns anos mais tarde em 1924, inaugura o Kaivalyadhama Yoga Institute com o intuito de coordenar a ancestralidade do Ioga com a ciência moderna. Em 1929, Kuvalayananda inaugura uma pósgraduação em Educação Iogue para alunos do mundo inteiro, o Gordhandas Seksaria College of Yoga Cultural Synthesis, com uma proposta bem clara e fazendo jus ao pensamento “renascentista” indiano, ou seja, o desejo de desmistificar o Ioga por meio de análises científicas e aplicações a saúde. A sua revista de divulgação científica, intitulada Yoga Mimansa, se estabelece como a precursora das pesquisas fisiológicas sobre as práticas do Ioga desse período, sendo publicada e com fôlego até os dias de hoje.
Em seus livros, apesar da precisão e do volume de pesquisas laboratoriais com as práticas ioguicas e da vontade do Swami Kuvalayananda em desmisitificar o Ioga pela ciência da fisiologia e de aplicação biomédica, este recorre ambivalentemente muitas vezes à fé, à fisiologia sutil e a doutrina religiosa de salvação para justificar a sua prática.
[A intenção do Instituto de Kaivalyadhama é] desvencilhar [o Ioga] de toda uma capa de misticismo acumulada ao longo de séculos de transmissão oral (...) Isso só poderia ser conseguido com pesquisa exaustiva em textos e escrituras originais [doutrinas], e por meio de experimentação laboratorial [fisiologia científica].
Isso não significa que os ateus não possam praticar as posturas yoguicas. Queremos dizer, portanto, sendo todos os outros fatores iguais (doutrina e fé), um genuíno “teísta” poderá praticar os asanas com maiores vantagens que um ateu (?).
Kuvalayananda e os seus colaboradores investigaram fisiologicamente as implicações das práticas ioguicas como o nauli, o uddiyana e o basti, tendo descoberto as suas atuações positivas, tanto nas pressões intrapulmonares, intratorácicas e intraesofagal, quanto no músculo do diafragma e nos órgãos internos. Uma das descobertas que recebeu mais atenção nessas pesquisas iniciais foi a descoberta do Vácuo Madhavadasa.
É a primeira vez que a fisiologia sutil do Ioga são descritas com tanta agudeza e com a possibilidade de aplicação clínica na medicina ocidental. Os seus resultados, antes descritos pelos textos medievais em geral apenas com fins religiosos e portadores de uma fisiologia sutil, de cunho sobrenatural e mágica ímpar, podem agora também servir como excelentes promotores da saúde das vísceras abdominais (para casos terapêuticos de dispepsia), da prisão de ventre, dos males do fígado, do baço, do pâncreas e dos rins, além de curar casos de menstruação dolorosa. No entanto, são contraindicados, continua Kuvalayananda, algumas técnicas ioguicas para as pessoas com problemas circulatórios, pulmonares, apendicite crônica, hipertensão e perturbações abdominais. De certa forma, a partir dos trabalhos de Kuvalayananda o Ioga começa a ser respeitado nos meios médicos modernos ocidentais como tendo uma possível aplicação terapêutica comprovadamente pelos métodos científicos que fomentam a inclusão dos ásanas, dos pranayamas, dos kriyas e dos bandhas no que hoje se conhece como Medicina Integrativa e Complementar, possibilitando desvinculá-lo, pelo menos quando aplicados nos hospitais ocidentais, da sua fisiologia sutil e sobrenatural de outros tempos.
As primeiras pesquisas de Kuvalayananda publicadas na revista Yoga Mimansa foram muito bem recebidas não só na Índia mas também por psicólogos e médicos da Inglaterra, da França, da Alemanha e da América do Norte. A partir daí, Kaivalyadhama se expande e as suas pesquisas e atuações sociais também. Kuvalayananda provê novo fôlego ao caráter terapêutico do Ioga no mundo moderno. Para muitos iogues e leigos, este fato autenticou pela chancela da ciência, o que até então era considerado apenas como simbólico, superstição, primitivo e pertencente a uma fisiologia sutil, sobrenatural, mágica e da ordem da mística, totalmente desacreditada pelo pensamento secular da modernidade que batia à porta dos iogues da Índia do séc.XVIII que os ingleses encontraram andando nus e afeitos a práticas ainda não traduzidas a eles.
Outro destaque na consolidação do Ioga considerado moderno, foi Swami Sivananda Saraswati (1887-1963), um estudante de medicina do Tanjore Medical College e com gosto pelo desporto. Em 1936 ele inaugura o Sivananda Yoga: The Divine Life Society (DLS) na Índia, utilizando-se das pesquisas médicas nas suas práticas e traduzindo textos como o Bhagavad-Gita com uma evidente abordagem que já flerta a fisiologia ocidental com a sutil do Ioga, como citamos e vamos nos aprofundar a seguir.
A aproximação da ciência ocidental inicia uma ressignificação fisiológica dos textos medievais e clássicos ioguicos, que os iogues filhos da renascença indiana se encarregam de propalar mundo fora. Sivananda, por exemplo, incentiva os seus alunos a abrirem as suas próprias organizações religiosas (que ele as intitulava de “missões”) e a divulgar esses ensinamentos em outros países. Na sua autobiografia, Sivananda dedica um capítulo aos seus ideais ioguicos, intitulado “Minha Religião, sua técnica e disseminação”, em que ensina como os seus discípulos devem proceder para prosperar com as suas próprias organizações ioguicas. Esses seus ensinamentos ajudaram a fundar o International Sivananda Yoga Vedanta Centres (1959), estabelcido por Swami Vishnudevananda no Canadá; o Yoga da Linguagem Oculta (1956), escola desenvolvida pela Swami Sivananda Radha (1911-1995); e o Yoga Integral, desenvolvido pelo Swami Satchiananda (1914-2002), que foi quem apresentou este método, em 1969, aos hippies durante o festival de Woodstock.
Swami Visnhudevananda, por exemplo, tomou conhecimento de Sivananda, aos vinte anos de idade após a sua carreira militar na Índia, por meio de um folheto que difundia o Ioga do seu futuro guru, que dizia que quem praticasse Ioga, uniria filosofia e religião, meio propício para se alcançar a Auto-realização. Após algum tempo dedicado ao ashram de Sivananda, ele é nomeado professor de hatha-ioga da instituição e, depois de dez anos ensinando Ioga é convidado pelo Sivananda a ir ao ocidente divulgar a sua prática e a sua doutrina. Funda então, em Montreal, no Canadá, a primeira organização ioguica de Sivananda fora da Índia, assim como já o haviam feito outros iogues.
No verão de 1961, Vishnudevananda realiza o primeiro retiro com alguns ocidentais e, em 1962, inaugura mais um ashram no Canadá, mas em Valmorin, nas Montanhas Laurentian. Cinco anos mais tarde em Nassau, nas Bahamas, Vishnudevananda expande ainda mais a organização ioguica de Sivananda, o Ashram Yoga Retreat: “O mar e os céus tropicais fazem este lugar ideal para a expansão da mente através da prática da yoga”, dizia um de seus panfletos de divulgação do ashram com perfil de hotel spa. Realizaram-se cursos de formação com um mês de duração, como o Teacher´s Training Courses, cuja função era propalar a sabedoria ioguica pelo mundo todo, tanto que o seu site tem uma agenda de cursos onde se pode escolher o país e a língua em que será proferida a aula. A proposta expansionista de levar o Ioga para todos os cantos do mundo é muito forte e nítida como o demonstra também a pesquisadora Sara Strauss.
Sri Turumalai Krishnamacharya (1888-1989), é mais um iogue e médico ayurvédico a se destacar na formação do Ioga moderno. Ele é considerado o “reformador” do Yoga e fundador do Modern Postural Yoga. Krishnamacharya, depois de focalizar os seus estudos na Universidade de Benares em Lógica e Sânscrito, volta para para a cidade indiana de Mysore, a sua cidade natal, e se aprofunda no vedanta. Em 1914 estuda filosofia indiana na Universidade de Patna mas, em 1924, a pedido do Maharajah de Mysore, começa a lecionar Ioga até à década de cinquenta. Após a independência da Índia os governos locais trocam de poder e Krishnamacharya perde a tutela do Maharajah. A partir daí, em 1952, muda-se para Chennai (antiga Madras), a quarta maior cidade da Índia, para tratar da saúde de um renomado político. Estabelece-se aí e professa o seu Ioga até ao final dos seus cem anos de vida.
Seus principais discípulos, Indra Devi (considerada a primeira-dama do Ioga nos Estados Unidos), B.K.S.Iyengar (Iyengar Yoga), Pattabhi Jois (Asthanga Vinyasa Yoga) e Desikachar (Viniyoga), fundam as organizações de Ioga considerados os mais conhecidos atualmente no ocidente. O sistema de prática ioguica ensinado por Krishnamacharya se consolidou com os seus livros Yoga Makaranda (1934), Yoganjali (1952), e Yogasanagalu (1973) e a popularização dos seus discípulos no ocidente.
O seu método torna-se bastante popular pelo vigor físico e pela combinação de posturas, de exercícios respiratórios e de meditação, tudo em uma única prática, criando um Ioga, como ele mesmo diz, “para quem tem pouco tempo livre”; além de possibilitar certa liberdade que permite aos seus alunos construírem a sua própria prática. Segundo Desikachar, a essência dos ensinamentos do seu pai está em adaptar o Ioga ao aluno e não o contrário, característica que caiu bem ao gosto do impaciente ocidental, mas sem perder a religiosidade devocional do Ioga.
A influência da Ciência Fisiológica na Fisiologia Sutil do Ioga
Demonstramos as condições histórico-sociais que conduziram os iogues modernos a associar-se com a ciência ocidental. A partir de agora, dissecaremos a doutrina erigida por eles ressignificando-a a partir da ciência fisiológica. Andrea R. Jain, professora assistente de estudos religiosos da Indiana University-Purdue University Indianapolis, avaliou que as formas como o Ioga moderno se apropria do discurso científico na sua doutrina, em particular das técnicas corporais e meditativas dos sistemas de Ioga clássicos e pré-modernos, está fundamentalmente baseada no discurso biomédico ocidental moderno. A autora percebeu que o corpo no Ioga investigado tornou-se uma “sutil metafísica somatizada” que utiliza-se da compreensão biomédica da ciência fisiológica para localizar e identificar as funções de partes do corpo sutil e os processos do corpo. Para a pesquisadora, esta reinterpretação não substituiu apenas a simbologia fisiológica antiga de caráter sutil ou sobrenatural pela científica, mas a reinventa, formatando uma nova fisiologia sutil ioguica.
O que se indicará a seguir, é que o fato mencionado por Jain não é algo isolado de um grupo religioso ou de um iogue específico, mas da própria história do Ioga moderno que se justifica pela aculturação que o complexo religioso ioguico sofreu no contato com os outras culturas e sociedades, na busca por manter a sua veracidade num mundo onde a razão parece prevalecer mais do que a fé. O antropólogo Tales Nunes defende em seu mestrado a ideia que houve quatro períodos marcando o desenvolvimento do Ioga que assistimos hoje. O primeiro seria o de “descoberta/encantamento”, o segundo da “psicologização/experimento”, o terceiro como a fase da “corporificação/desencatamento” e, por último, Nunes acredita que passamos atualmente por uma fase de “resgate/reencantamento” onde determinados iogues brasileiros, pesquisados por ele no Sul do Brasil, estariam na busca de resgatar a “essência” do Ioga por assim dizer, perdida ou esquecida.
O primeiro momento do Ioga (descoberta/encantamento), segundo Nunes, destaca-se sobretudo pelos filósofos e pelos escritores românticos como Schopenhauer e Thoreau com os primeiros textos orientais traduzidos, que possuem como centro uma busca pela “interioridade” e pela “essência pessoal”. O segundo período (psicologização/experimento), se pautaria na tentativa de tradução das doutrinas religiosas orientais para uma linguagem da psicologia ocidental e o uso destas enquanto terapias ditas como alternativas. O autor credita a este período a transformação das organizações religiosas ioguicas (ou “tradições ioguicas espirituais”) com objetivos iniciais na salvação dos seus adeptos do sofrimento humano em processos de cura orgânica apenas. Seria o início da profanação e secularização das práticas antigas do Ioga em “técnicas” como vistas abundamente hoje com a meditação. A terceira fase (corporificação/desencantamento) insititui-se no sentido de uma secularização que chega ao oriente devido à demasiada centralidade na biomedicina que investiga o Ioga pela perspectiva exclusiva da fisiologia científica, esquecendo-se da simbologia espiritual de suas prática com fins salvíficos. O último período (resgate/reencantamento) está subjugado à uma tentativa de alguns iogues mais devotos em resgatar a religiosidade ioguica na busca de um retorno à tradição diretamente da Índia.
Mesmo não tendo dados históricos que possam confirmar, é possível que o Ioga nos tempos medievais também tenha se “encantado” em algum momento quando os iogues do período pós-clássico precisaram reinventar-se por meio da alquimia, do tantra, do budismo e de outras influências, ressignificando as suas escrituras e atos como acontece hoje e reavivando a doutrina ioguica de então de acordo com a realidade social e religiosa da época. Atualmente, pode-se localizar organizações religiosas que ressoam daquele Ioga da Índia medieval num verdadeiro resgate das raízes da sua tradição, até escolas e linhagens ioguicas totalmente “desencantadas” como o Somatic Yoga de Thomas e Eleonor Hanna (1928-1990) e outras que negam a mística do Ioga, além das que buscam conciliar o conhecimento das mais recentes pesquisas científicas na fisiologia, na neurociência, na psicologia e nas ciências cognitivas com textos religiosos ioguicos medievais e modernos.
A Fisiologia Sutil do Ioga Revisitada à Luz da Fisiologia Científica Moderna
Depois de Vivekananda em 1893, outros iogues viriam para os países ocidentais com a intenção de divulgar os seus métodos de ensino e de difundir a religiosidade ioguica, nesta senda que Yoganananda abarcou nos Estados Unidos e a sua influência e discursos foram importantes rendendo-lhe diversas palestras, comentários e interessados em vivenciar o Ioga. Um de seus pronunciamentos é publicado no jornal Washington Post em janeiro de 1927, citando, dentre outras coisas, as suas aproximações entre a religião e a ciência, sobretudo, sobre a fisiologia sutil do Ioga e suas relações benéficas para a saúde e correlações diretas entre glândulas e chackras, por exemplo. No referido artigo, o autor também faz alusões à mudança química das células do corpo em uma “nova ordenação” dos neurônios, conquanto, diz ele, que o “receptor das ondas vibratórias” (referindo-se ao bulbo encefálico) esteja devidamente concentrado e imbuído de devoção pelo iogue durante as práticas religiosas.
Em seu livro Afirmaciones cientifícas para La curación, Yogananda busca correlacionar o poder terapêutico do Ioga por meio, segundo ele, de descrições científicas, investindo em uma argumentação sobre a fisiologia cardiorrespiratória justificando a prática ioguica, “cuja aplicação o ser humano pode alcançar uma experiência pessoal e direta com Deus (...) comum a toda religião verdadeira” no intuito de promover harmonia entre os diversos povos e os países do mundo. Não é apenas ele, mas outros como Iyengar também fazem frequentes referências a isso.
O pranayama é o elo de ligação entre o organismo fisiológico do homem e sua dimensão espiritual. Tal como o calor físico é o cerne de nossa vida, o pranayama é o cerne do ioga.
O Ioga moderno vai alicerçando-se, segundo os seus emissários indianos ao ocidente, como um “um conjunto de técnicas científicas utilizadas para alcançar a comunhão com Deus”. A sua doutrina parece encaminhar-se na legitimação da fisiologia científica e bioméfica para, assim como os iogues medievais o fizeram com as outras sabedorias, dialogar (ou ressignificar) com os conceitos fisiológicos sutis de outrora. Desta forma, para os iogues e seus adeptos modernos, a fisiologia científica e os tratados religiosos ioguicos se confundem.
Se estimarmos a quantidade de sangue expulsa em cada contração dos ventrículos do coração, soma ao redor de cento e dez mililitros, este órgão move um peso equivalente a oito quilogramas de sangue por minuto. Assim, no lapso de um dia, o coração impulsiona aproximadamente doze toneladas de sangue (...) Estas cifras demonstram o enorme trabalho do coração. (...) O controle consciente do sono – aprender a dormir e despertar com nossa vontade - forma parte do treinamento yoguico que capacita o ser humano em regular os batimentos cardíacos. Quando se é capaz de controlar conscientemente a frequência cardíaca, se alcança o domínio da morte. (...)
(...) a cortisona [principal hormônio do estresse] do ioga é vislumbrar a alma.
É evidente aqui uma apropriação da linguagem fisiológica científica para elucidar a representação sutil do corpo nos textos ioguicos. Assim como Kuvalayananda tentou aliar o valor religioso com o científico do Ioga, Iyengar também se dedica às correlações entre a anatomia, a fisiologia e a mística do Ioga. Segundo Iyengar, “ao controlar a respiração, você está controlando a consciência e, ao controlar a consciência, você dá ritmo à respiração”. Este iogue ainda faz uma releitura moderna do Hathayogapradipika (sutras I-41 e II-2), texto medieval e de forte caráter mágico e místico - com influência da alquimia mulçumana, do tantra, budismo e da mística hindu - dizendo que “quando não há movimento nas células, na mente ou em qualquer um dos vasos da alma, prevalece o que se chama de kumbhaka”. No entanto, os caracteres fundamentais do Ioga, e que fundamentam as suas recompensas religiosas de salvação parecem não se alterar, pois continua a ser preciso desobstruir os nadis para que prana flua e libere kundalini a ascender pelo sushumna, deixando uma dúvida que carece de maior investigação: será que há uma substituição de elementos mágicos pelos científicos e seculares ou apenas a apropriação e ressignificação destes?
Desde as primeiras traduções dos textos religiosos indianos, realizados pela geração atual de iogues, que estes vêm justificando a sua fisiologia sutil e adquirindo papéis mais orgânicos por assim dizer, o que nos direciona a pensar talvez, mais “verdadeiros” para os iogues modenos, pois podem ser explicados pelo ponto de vista da ciência. Este fato mostra uma preocupação em racionalizar a fisiologia sutil do Ioga já desde o início do século passado. Assim pode-se entender Sir John Woodroffe, britânico graduado em Direito por Oxford que, depois de alguns anos trabalhando na jurisprudência indiana, se interessa pela religiosidade e mística deste povo que o faz traduzir em 1917, diversos textos tântricos e ioguicos como o Tantra Sastra. Neste livro, Sir Woodroffe explica os nadis, por exemplo, como sendo nervos, artérias ou eixo cérebro-espinal, alertando que nas escrituras aqueles não possuem características físicas, eles representam canais sutis de energia. Esta representação é produto do seu esforço para tornar “lógico” o entendimento de uma fisiologia “irracional” para o padrão de entendimento da ciência.
No período pré-moderno ou medieval, os textos antigos também sofreram transformações, como adientei em diversos pontos do artigo até então. Mas para deixar mais evidente, lembro os tratados do iogue medieval Svatmarama, figura mítica que teria escrito um dos textos basilares desse período, o Hathayogapradipika. Neste livro, que se traduz como “Uma luz sobre o hatha ioga”, Svatmarama compara a mente (chitta) com o mercúrio, pois “ambos eram instáveis” (ver sutras 26-27 e 96) em clara influência alquímica. Mas, ao invés da alquimia agora como conhecimento “válido”, é a ciência que surge modernamente revigorando a doutrina ioguica.
(...) aplicando-se fundamentalmente a vontade (tapas [nota minha]), deverá fixar-se a atenção entre sobrancelhas (shambavi mudra [nota minha]); quando se utilizam afirmações do tipo intelectual, o centro da concentração será o bulbo raquídeo (centro da força vital inteligente); e as afirmações devocionais, a concentração se focará no coração (...) Por meio da prática dessas afirmações, adquire-se o poder de dirigir conscientemente a atenção para as fontes vitais da vontade, do pensamento e do sentimento.
Concentrar-se, com os olhos fechados, na região do bulbo raquídeo, e sentir que o poder da visão, presente nos olhos, fluem através do nervo óptico para a retina. (...) Fixar o olhar entre as sobrancelhas, imaginando que o fluxo da energia vital se dirige desde o bulbo raquídeo para os olhos, transformando estes últimos em dois focos de luz. Este exercício produz benefícios tanto físicos como mentais.
Yogananda, desta forma, faz uma releitura do clássico e importante mudra da doutrina medieval ioguica, o shambavi mudra, pelo prisma da fisiologia científica, citando regiões neuroanatômicas como o bulbo e o nervo óptico. Em outra obra, Kriyananda, comentando o seu guru Yogananda, volta a se referir ao bulbo (ou medula oblonga) e ao nadi sushumna como a espinha ou coluna verterbral e medula, e prana como energia.
(...) o caminho do despertar divino é, conforme dissemos, a espinha. A energia penetra no corpo através da medula oblonga, na base do cérebro. (...) A energia (...) transita pelos nervos [nadis] (...) até o cérebro, desce pela espinha (...). Quando, por ocasião da morte, a consciência se retira do corpo, a energia primeiro recua das extremidades para a espinha, sobe por ela e sai pela medula oblonga, deixando o corpo.
O bulbo ou medula oblonga para Yogananda possui também um pólo negativo e outro positivo. O primeiro, que corresponde ao ajna chackra, situa-se no próprio bulbo, e o segundo, que o reflete, localiza-se na confluência dos três principais nadis (ida, pingala e sushumna), que ele ressignifica como sendo os nervos da fisiologia sutil conhecida como shambavi mudra. A evocação reiterada ao bulbo não se refere à ciência da anatomia ou sua fisiologia correspondente, mas é absolutamente coerente dentro da compreensão sutil religiosa construída pelo Ioga, pois esta região cerebral é cientificamente responsável por inúmeros nervos motores e sensitivos cranianos. Logo, como no Hathayogapradipika, segundo Iyengar, o Ioga é prana-vrtti-nirodha (i.e. acalmar as flutuações da respiração), já no YogaSutras, doutrina que primeiro sistematizou o Ioga do período clássico, afirma que Ioga é citta-vrtti-nirodha (i.e. acalmar as flutuações da mente), para os iogues modernos parece lícito pensar assim, que dentro desta nova racionalidade fisiológica sutil do Ioga no encontro com a ciência moderna, que o bulbo tenha participação direta nesse processo, pois ele é o centro respiratório reconhecido pela fisiologia científica.
[O iogue] pode-se perguntar: o olho espiritual [ajna chackra] é puramente simbólico? Não, é real e constitui, de fato, um reflexo da medula, a partir da qual a energia desce a espinha por três nadis ou canais sutis de força vital [prana]. (...) A espinha é o canal principal por onde a energia flui. O fluxo ascendente da energia [que conduz kundalini] pode ser bloqueado por alguns plexos [chackras] na espinha, de onde ela passa para o sistema nervoso e daí para o corpo, sustentando e ativando os diferentes órgãos e membros. Quando em meditação profunda, o yogue transfere energia do corpo exterior [koshas] para a espinha e a faz subir para o cérebro [último chackra], ele encontra essa passagem bloqueada pelo fluxo externo de energia proveniente daqueles plexos (ou centros, mas que nos tratados yoguicos recebem o nome de chackras). A energia de cada chackra deve ser conduzida para a espinha a fim de prosseguir sua jornada ascendente.
Yogananda, na voz de seu discípulo Kriyananda, continua a sua argumentação questionando-se se a sua descrição é real ou puramente imaginativa, e dá a sua representação dos chackras aos plexos, e os nadis - canais da fisiologia sutil do Ioga - aos impulsos nervosos autônomos e centrais, além de, a todo tipo de passagem por dentro do corpo como o ar, a água, o sangue e aos nutrientes. Os chackras também sofrem ressignificações significativas na sua interação com ciência fisiológica e anatômica. Eles continuam a ser representados nos corpos sutis, mas ganharam correspondências das mais variadas dentro da perspectiva moderna do Ioga, como plexos, glândulas e junções celulares (gap junctions) como se observa nas pesquisas modernas, mas também na voz da doutrina ioguica.
Chakras são centros da energia espiritual. Eles estão localizados no corpo astral, mas eles possuem correspondência com centros no corpo físico também. (...) a certos plexos no corpo físico.
Mais de dois milênios atrás, Patanjali deu-se conta da importância do cérebro. Ele descreveu a parte frontal como o cérebro analítico, a posterior como o cérebro do raciocínio, a inferior com a sede do estado de graça (o que, a propósito, corresponde às descobertas da ciência médica moderna, segundo a qual o hipotálamo, situado na base do encéfalo, é o centro do prazer e da dor), e a parte superior como o cérebro criativo ou sede da consciência, a nascente do ser, do ego ou do orgulho, o berço da individualidade.
Por meio (...) das posturas do Yoga, podemos ajudar a suprimir e aliviar a congestão dos nervos ou das vértebras (nadis), facilitando assim o livre fluxo da energia vital (prana).
O iogue, segundo Yogananda, “faz circular mentalmente sua energia vital (prana) por meio das técnicas físicas, kriyas, ásanas, mudras e pranayamas, em direção ascendente e descendente ao redor dos seis centros da coluna vertebral (chackras), ou seja, plexos medular, cervical, dorsal, lombar, sacral e coccígeo”. Muitos iogues contemporâneos têm realizado paralelismos puros e simples, como associando diretamente os centros energéticos sutis de susumna aos plexos e a medula compreendidos pela ciência moderna. Mesmo o Swami Kuvalayananda, o mais afinado com a ciência fisiológica da sua geração, afirma que “havendo condições, os chackras poderão ser investigados cientificamente”. Condição que nunca houve até então, mas firme na crença ioguica dos nossos tempos.
Percebe-se que as aproximações das escrituras ioguicas modernas esforçam-se em estabelecer conjunções com a fisiologia científica como se elas precisassem destas para manter-se vivas, ultrapassando as simples analogias anatômicas. Me explico melhor, há tentativas de aproximações reais entre os dois saberes (ciência e religião) por parte também de cientistas, mesmo admitindo estes que os fenômenos religiosos associados a fisiologia sutil do Ioga não podem ser reduzidos a simples processos físicos. Estes argumentam que ignorar as possíveis repercussões físicas entre a fisiologia sutil com a científica seria tão contraproducente quanto ignorar os seus aspectos transcendentes dentro das práticas religiosas. Um fato semelhante também ocorre com a fisiologia sutil no espiritismo brasileiro, que compara há muito, a glândula pineal, por exemplo, com os chackras ou mesmo como a sede anatômica da mediunidade humana, assim como Descartes também o fizera em meados ainda de 1600.
No plano fisiológico, pingala corresponde ao sistema nervoso simpático; ida, ao parassimpático; e susumna, ao sistema nervoso central. (...) A frieza atribuída a ida (pois, corresponde dentro da representação simbólica da fisiologia do Ioga medieval como chandra-nadi, ou “canal da lua; e pingala como surya-nadi, ou “canal do sol”) no Hathayogapradipika é explicada, pela ciência moderna, em virtude de sua ligação com o hipotálamo, situado na base do cérebro, e que é o centro responsável pela manutenção da temperatura estável do corpo. Assim, o hipotálamo é o plexo lunar, do qual desce ida, assim como pingala ascende de sua base no plexo solar. (...) Susumna corresponde ao sistema nervoso central, e essa energia divina, produzida pela fusão de ida e pingala, é vista como energia elétrica (kundalini [nota autor]), segundo a fisiologia. (...) Susumna existe em todas as partes do corpo e não apenas na espinha, porque o sistema nervoso central age em todo o organismo.
Como se lê acima em um dos textos de Iyengar, que reúne uma série de anotações e transcrições das aulas e das palestras que proferiu na Índia, na Inglaterra, na França, na Itália, na Espanha e na Suíça, entre os anos de 1985 e 1987, é evidente a sua preocupação por associar a fisiologia científica à sutil do Ioga. Ele utiliza-se de um artifício dialético comum aos iogues modernos, que é associar as definições tanto fisiológicas quanto anatômicas de um órgão, hormônio ou região corporal à fisiologia que só existe em suas escrituras sagradas. Por exemplo, como o hipotálamo realmente possui relação com o controle da temperatura corporal dentro da fisiologia científica, o autor utiliza-se das investigações biomédicas sobre as práticas respiratórias ioguicas (os pranayamas) com os seus tratados religiosos medievais.
Algumas pesquisas científicas que avaliaram as repercussões fisiológicas com as práticas respiratórias ioguicas afirmam que, dependendo do pranayama executado, descargas elétricas nas narinas produzem potenciais diferentes. Iyengar afirma a partir daí, que o nadi pingala - que na fisiologia sutil do Ioga do séc.XI, está associado ao sol e à narina direita - corresponde ao sistema nervoso simpático (SNS) e possui ligação hipotalâmica, pois como ambos (SNS e hipotálamo) estão envolvidos com as mudanças da temperatura corpórea cientificamente demonstrado, insiste que tenham a correspondência anatômica e fisiológica sutil.
Para o mesmo Iyengar, toda a doutrina do Ioga está relacionada às posturas. Assim ele diz, que “talvez seu fígado esteja alongado, mas seu estômago está se contraindo, ou talvez o contrário”, e por isso, orienta a que se toquem em “partes relevantes” do corpo, “de modo que se movimentem harmonicamente” (órgãos e músculos físicos), complementando, que “eu toco de leve a parte em que as células estão mortas para que possa ocorrer uma certa germinação e elas ganhem nova vida. Crio vida nessas células por meio do ajustamento [corporal], que efetuo tocando meus alunos”, no que ele intitula de “ajustamento criativo”.
É preciso registrar que mensagens vêm das fibras, dos músculos, dos nervos e da pele do corpo, enquanto se está fazendo a postura. Você pode aprender. Não é suficiente vivenciar hoje e analisar amanhã.
Purusa, a alma, é o senhor do corpo, sua morada. O [músculo] diafragma, acima da sede da alma, é representado na história pela base da montanha. A montanha representa o peito, e o movimento de agitar as águas representa a inspiração e a expiração.
O pranayama está na fronteira entre os mundos material e espiritual, e o [músculo do] diafragma é o ponto de encontro dos planos fisiológico e espiritual do seu corpo (...) Lembre que kumbhaka não é segurar o fôlego; é reter energia [prana].
Kuvalayananda nos seus comentários faz extensas exposições fisiológicas e anatômicas precisas e condizentes com a biologia moderna, muitas dessas investigações conduzidas por ele e sua equipe. Ele tece duras críticas às descrições fisiológicas sutis das práticas ioguicas que ele considera como crenças populares, pois não estão pautadas em pesquisas laboratoriais, criticando assim toda uma gama de iogues sem conhecimento da ciência. No entanto, paradoxalmente, ao longo de seus principais livros (Asana e Pranayamas), não deixa de salientar o valor espiritual do ásana ou do pranayama descritos pela fisiologia das suas investigações laboratoriais.
A firmeza do pescoço e dos ombros, a vigorosa pseudo-inspiração precedida da mais completa expiração e o simultâneo relaxamento dos músculos frontais abdominais, que antes estavam contraídos, são as três ações que completam a técnica da Uddiyana.
[Paschimatana é executado quando] Sentado, o estudante mantêm as pernas esticadas e unidas. Inclina então o tronco um pouco para a frente, forma um gancho com os dedos indicadores e segura com eles os grandes artelhos com os dedos assegura não só o completo relaxamento, como também um completo estiramento dos músculos posteriores das pernas.
Esse exercício é chamado Uddiyana Bandha porque as contrações musculares, acima descritas, permitem a subida da força espiritual (essa força permanece presa na região inferior do abdomen. Uddiyana é um dos diversos exercícios capazes de libertar essa força e de fazê-la subir pela coluna espinhal – em notas). (...) Seu valor terapêutico, nos casos de prisão de ventre, (...) etc., é muito grande. Seu valor espiritual é maior ainda.
A Paschimatana é considerada de grande valor espiritual. São conhecidos casos em que sua prática por cultores espiritualistas permitiu que o praticante ouvisse o Anahata Dhvani, isto é, o som sutil. O tempo de permanência na Paschimatana deve ser criteriosamente regulado. Quando continuado por muito tempo, causará prisão de ventre. (...) Para finalidades espirituais, entretanto, esta Asana deverá ser praticada diariamente por mais de uma hora.
Como exemplo, selecionou do seu livro Asanas alguns trechos que esclarecem o paradoxo criado pelas pesquisas fisiológicas científicas na doutrina moderna no Ioga. Por intermédio das suas explicações científicas sobre o uddiyana bandha e paschimotanasana (ou paschimatana), Kuvalayananda se contradiz. Em Asanas por exemplo, ele dedica um capítulo inteiro ao Estudo científico das posturas yóguicas, dividindo os ásanas em “Meditativos” e “Culturais”.
O objetivo das posturas Culturais é puramente orgânico, segundo o autor. Kuvalayananda descreve toda a sua tradição da pesquisa fisiológica dos benefícios terapêuticos, em particular do fortalecimento e alongamento da coluna vertebral, assim como as posições anatômicas e as inserções articulares e os principais grupos musculares envolvidos. Como Iyengar e quase todos os iogues modernos, ele também se preocupa muito com o seu método de ensino.
No aspecto Meditativo dos ásanas, continua o Kuvalayananda, o alvo é estabelecer-se numa postura confortável para a execução dos pranayamas e dos estados contemplativos do Ioga (samyama), respeitando toda a tradição ioguica desde Patanjali, autor dos YogaSutras, já citado. No entanto, entre as narrações altamente versadas sobre a ciência e as suas observações, surgem demonstrações altamente pautadas na fisiologia sutil religiosa e não na fisiologia científica. Por exemplo, após descrever que os ásanas Culturais têm por objetivo fortalecer a coluna, influenciar as áreas cerebrais e produzir “o mais alto vigor orgânico para todo o corpo”, esclarece que isto deve ocorrer para que ambas “possam suportar a interação da força espiritual do kundalini, quando a mesma for despertada pelas práticas yoguicas adiantadas” (Ibid., p.147).
Esse aumento do suprimento sanguíneo e o consequente fortalecimento dos nervos é responsável até certo ponto pelo despertar de Kundalini (...)
Mas o que é a kundalini senão um preceito fisiológico sutil fruto do auto-estudo, da fé nas escrituras sagradas e das experimentações da religiosidade ancestral ioguica? É paradoxal intentar elaborar uma explicação empírica por meio da fisiologia científica para práticas religiosas. O empirismo da fisiologia científica não explica, por si só, a fisiologia sutil religiosa dos nadis, da kundalini e dos chackras. Então, por quê os iogues enverdaram por esse caminho?
Hipotetizo que para sobreviver à secularização talvez, pois entre cair na mística – fato já presente e condenado pela sua geração pelos custos elevados à moral da sua religiosidade e do seu povo frente aos ingleses, classe dominante da Índia moderna – e se debruçar sobre as bancadas de laboratório e na ressignificação da sua doutrina pela luz da ciência, que proporcionaria elevar o nível de sua prática de “primitiva” a científica – fato este inédito – optam (os iogues modernos) pelo segundo. Este foi o caminho mais árduo e paradoxal, mas talvez de outra forma, o Ioga teria sucumbido ao ostracismo. Por outro lado, obrigou toda a comunidade e organizações ioguicas modernas, gostando ou não e, sob o olhar crítico da ciência, mergulhar na ressignificação da sua fisiologia sutil religiosa.
Considerações finais
Estes iogues modernos, filhos da “renascença” indiana, representam o cerne da realidade ambivalente da religião versus ciência que se tenta revelar. Ao mesmo tempo em que estes se debruçaram sobre a decodificação científica das suas práticas e doutrinas, descrevendo cada músculo, nervo e fibra na execução dos ásanas e dos pranayamas de suas práticas e escrituras em conexões sistêmicas com a fisiologia científica em uma busca incessante pela desmistificação do Ioga, exigido por uma sociedade secularizada e laica que se mostrava, eles também se renderam à ssuas tradições espirituais de salvação, respeitando suas tradições religiosas.
O ambicioso objetivo de Swami Kuvalayananda, (...) era alcançar uma reconstrução espiritual da sociedade em escala mundial. (...) Estes experimentos [científicos] o convenceram de que a antiga ciência do Yoga, abordada pelos métodos experimentais da ciência moderna, poderia ajudar a humanidade a revivescer física e espiritualmente. Esta se tornou a missão de sua vida.
O que se percebe no entanto, é que a tentativa por reavivar a espiritualidade da humanidade pela explicação da ciência, fomentou práticas ioguicas completamente profanas também. O Ioga em muitos espaços se viu reduzido a meras técnicas terapêuticas e de condicionamento físico do treinamento desportivo que produziu uma geração de iogues “desencantados”. Por outro lado, alavancou a sua divulgação, com a quebra dos seus preconceitos e a abertura para muitos que percebem o Ioga hoje como uma “espiritualidade científica”. Atualmente, utilizam-se muito das práticas antes apenas circunscritas aos meios ritualísticos religiosos para a transcendência, aos hospitais ocidentais como terapia complementar no auxílio de pacientes com câncer, AIDS, depressão, insônia, ansiedade e tantas outras enfermidades.
O Ioga da geração moderna, conclui Sara Strauss, parece ter causado uma reorientação fundamental baseada numa “nova teoria para uma antiga prática”, convidando a sua comunidade a exercer a sua religiosidade ao lado também dos avanços da ciência, sobretudo da fisiologia biomédica, o que, como se viu, gerou uma certa ambivalência para os iogues de hoje. Os benefícios trazidos para a saúde orgânica, atestados pela fisiologia científica, são uma das principais compensações da religiosidade ioguica que sustenta esta como recompensa, seguindo a terminologia de Stark e Bainbridge. Isto pode ter contribuído para que os iogues modernos construíssem um significado novo para os conceitos fisiológicos sutis das suas escrituras, mas com olhos em não tornar sua religiosidade profanas.
O que me pergunto agora é quais as repercussões aos bens de salvação do Ioga moderno, em outras palavras, qual é a salvação do Ioga hoje, uma terapia espiritual pelo relaxamento ou uma nova religião mística desvinculado do hinduísmo e pretensões científicas?