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Dr.Roberto Simões

A fisiologia humana ocidental como se entende aqui e referida algumas vezes como “padrão” ou “orgânica”, é uma ciência que estuda e integra funcionalmente o corpo humano nos seus mais diversos sistemas (bioquímicos, neuromusculares, endócrinos, cardiorrespiratórios, imunológicos e neurofisiológicos) (McARDLE; KATCH & KATCH, 2003, p.xv-lix). A corporeidade que se refere a como o corpo e as práticas religiosas podem ser investigadas por meio da fisiologia, estabelecerá o meio como este complexo psicofisiológico mente-corpo-alma interage dinamicamente com o meio sócio-político-cultural e religioso em que vive, participando ativamente na formação do pensamento humano[1].

Os estudos sobre a corporeidade e a filosofia do corpo ganharam notoriedade por meio das pesquisas cognitivas e neurocientíficas, sobretudo alicerçaram o entendimento conceitual e não apenas orgânico das investigações fisiológicas. Para o linguista da Universidade de Califórnia, Berkeley, George Lakoff e o filósofo da Universidade de Oregon, Mark Johnson (2002), a mente seria “corporificada” fruto das interações do corpo e das suas experiências no mundo (Id., 1999; SANTOS, 2009; ASSMANN, 1995; OLIVIER, 1995; QUEIROZ, 2001a; Id., 2001b).

A preocupação do ser humano, no entanto, com o funcionamento do seu corpo e as possíveis implicações deste sobre a sua fisiologia sutil em consonância com o viver e a cultura não é algo recente e remete não só à Índia e ao Yoga como se viu, mas ao início da história filosófica ocidental também. Homero (séc.XVIII a.C.), por exemplo, já comparava a alma a um sopro vaporoso. Sócrates (469-399 a.C.) supôs a participação encefálica nos processos de sensação e de memória. Os pré-socráticos como Heráclito (540-475 a.C.), Anaxágoras (500-428 a.C.) e Demócrito (460-370 a.C.), que sob aspectos singulares se aventuraram igualmente a refletir sobre a relação corpo-mente-alma (DANUCALOV & SIMÕES, 2009, p.129-138). Platão (427-347 a.C.), descreveram a alma como sendo a essência do corpo vivo.

Para se narrar a origem de uma espécie da filosofia da fisiologia ocidental, deve-se resgatar, segundo o fisiologista M.R.Bennet e o filósofo P.M.Hacker, Aristóteles (384-322 a.C.) e os seus escritos sobre a psychê e a contração muscular voluntária. Ele compara as relações do corpo com a alma como às relações entre a visão e o olho: o corpo existe para o bem da alma, assim como o olho para o bem da visão (BENNETT & HACKER, 2003, p.25-56). Mas são as observações sobre o gesto humano de Cláudio Galeno (129-200 d.C.), filósofo e médico romano, que inauguram uma nova perspectiva para o funcionamento do corpo como se conhece hoje.

Galeno percebe que a medula espinal e o cérebro estão diretamente ligados aos movimentos voluntários e aos reflexos, associando o cérebro inteiro às capacidades mentais dos seres humanos, como a percepção, e não apenas aos ventrículos cerebrais e ao coração como havia feito Aristóteles. Nemesius (390 d.C.), um bispo da Síria e autor do tratado De Natura Hominis, por sua vez, desenvolve e amplia o conceito da localização ventricular aristotélica a partir das análises de lesões encefálicas e, ao contrário de Galeno, localiza a percepção e a imaginação nos dois ventrículos laterais, atribuindo ao do meio nossas aptidões intelectuais, pois “se os ventrículos frontais sofrerem qualquer tipo de lesão, os sentidos ficam diminuídos, mas a faculdade intelectual continua como anteriormente”, observa Nemesius.

É a partir dos estudos do médico francês Jean François Fernel (1497-1558), numa obra intitulada De Naturali parte Medicine, publicada em Paris em 1542, que a palavra physiologia é citada pela primeira vez. Nesta obra define-se que “a fisiologia se refere as causas das ações do corpo” e estuda o que são os processos ou funções do corpo, diferindo de anatomia que, segundo Fernel, faz referência apenas aonde os processos têm lugar. O livro de Fernel, em sua edição de 1554, foi reintitulado como Physiologia, e considerado por quase um século o maior tratado sobre o assunto.

O médico belga da Universidade de Lovaina, considerado o pai da anatomia moderna, Andreas Vesalius (1514-1564), nota a partir das análises de Nemesius e de desenhos ventriculares mais pormenorizados, que a anatomia cerebral dos ventrículos humanos era muito parecida com a dos outros mamíferos, sendo incorreto afirmar que as faculdades psicológicas como o raciocínio poderiam estar associadas aos ventrículos (Ibid., p.37). A fisiologia de Fernel, no entanto, vai perdendo a sua influência frente à física de Galileu (1564-1642) e Kepler (1571-1630) e às suas explicações mecanicistas. O médico britânico William Harvey (1578-1657) descreve, experimentalmente, a circulação sanguínea sendo bombeada pelo coração para todo o corpo, e a fisiologia padrão moderna é inaugurada definitivamente.

Porém, é René Descartes (1596-1650) o filósofo que modifica e influencia profundamente o pensamento ocidental frente ao corpo e à mente. Apesar de grande parte das suas investigações se revelarem incorretas à luz da psicofisiologia moderna, estas proporcionam fôlego à pesquisa fisiológica daquela época, pondo fim à doutrina ventricular encefálica, marcando uma concepção de mente e corpo bem distintos, Descartes afirma que a mente é um princípio do pensamento, consciência ou “alma”, e todas as outras funções essenciais para a vida animal são atributos da mecânica do corpo. Segundo ele, apesar da mente e do corpo estarem unidos de forma íntima, eles são substancialmente distintos[2].

Com o método científico moderno, Thomas Willis (1621-1675), a partir da análise fisiológica e anatômica dos seus pacientes com problemas neurológicos, fez a comparação dos seus cérebros em exames pós-morte. Estas observações permitem a este professor de medicina de Oxford concluir que a psique dos seres humanos está funcionalmente dependente do córtex cerebral, pelo que as alterações fisiológicas no cérebro são a causa dos problemas neurológicos e, portanto, comportamentais.

Estes fatos estimulam as idéias do médico inglês Robert Whytt (1714-1766), presidente da Royal College of Physicians of Edinburgh, que, na obra Essays on the Vital and Involuntary Motions of Animals, apresenta uma clara descrição de que o comportamento reflexo pode ocorrer na ausência de qualquer consciência. Whytt em 1751 demonstra que animais sem o cérebro, mas com a medula espinal intacta, podem responder a um estímulo de forma reflexa. A fisiologia dessa época, marcadamente mecanicista, caminha ainda com as descobertas sobre a eletricidade animal, do médico e pesquisador italiano Luigi Galvani (1737-1798), e com os fisiologistas Sir Charles Bell (1774-1842), considerado o pioneiro da neurologia clínica pela publicação, de Uma Ideia de uma Nova Anatomia do Cérebro, em 1811, e François Magendie (1783-1855) pela identificação dos nervos espinais como responsáveis pelo movimento motor voluntário.

Bell e Magendie, apesar de se ausentarem das discussões filosóficas sobre a mente ou alma humana, descobrem que o controle motor de alguns gestos animais é independente do cérebro, portanto, da glândula pineal, fato este vai contra o pensamento da época que se baseava na filosofia de Descartes, para quem a glândula pineal é a “morada” da alma. A “Hipótese de Bell-Magendie”, como ficou conhecida, levantou de certa forma a controvérsia de como ser possível sentir, portanto iniciar um movimento sem um cérebro, sem uma consciência ou alma.

Marshall Hall (1790-1857), médico e fisiologista inglês, na sua comunicação de 1833 intitulada Sobre a função reflexa da medulla oblongata e da medulla spinalis, retoma o assunto mente-corpo na fisiologia. Hall esclarece que existem nervos sensoriais que não produzem sensações e nervos motores, não se limitam a apenas mediar atos volitivos; pelo que há gestos que não precisam ir dos músculos para o cérebro para “gerarem” uma resposta reflexa. Ao invés disto, a própria medula espinal originaria esse movimento sem a intermediação do cérebro (BENNET & HACKER, 2003, p.45-52).

Um dos pioneiros a pesquisar quais as áreas específicas do cérebro que influenciam o movimento e comportamento humanos é o médico, anatomista, cientista e antropólogo francês, Pierre Paul Broca (1824-1880) que, em 1861, investiga pacientes com afasia (incapacidade de falar), descobrindo a “área da fala” no cérebro, especificamente no lobo frontal, que ainda hoje em sua homenagem, é conhecida como a “área de Broca”.

Um outro personagem na história da relação mente-corpo é o operário ferroviário norte-americano Phineas Gage (1819-1861), que teve a sua personalidade e os seus comportamentos emocionais e sociais alterados bruscamente, após um acidente com uma barra de ferro que explodiu e transpassou o seu crânio, lesionando boa parte dos neurônios dos lobos frontais. Após este acidente, Gage altera completamente o seu comportamento de um pai de família atencioso e trabalhador responsável, para uma pessoa absolutamente “amoral” e violenta, que perde o seu emprego, a sua família, passando os seus últimos anos de vida, após “perder” células encefálicas, no meio de confusões, morrendo solitário e assassinado em uma briga de bar. As investigações sobre o seu acidente são uma referência clássica nos estudos neurocientíficos modernos sobre o comportamento e o corpo[3].

Esses trabalhos antecipam um importante artigo científico, publicado em 1910 na Journal of Physiology pelo cientista britânico Charles Sherrington (1857-1952), lembrado ainda hoje em todos os livros de fisiologia modernos. Sherrignton descreve pela primeira vez o “reflexo-flexão”, lançando o esquema que esclarece o papel da medula espinal no andar e a posição do pé e, ao fazer isto complementa as pesquisas de Marshall Hall, tendo como consequência a extinção definitiva da noção de “alma espinal”. Além disto, Sherrington lança as bases, sem equívoco, de que há uma região no cérebro que se comunica com todos os músculos e órgãos do corpo, estimulando as pesquisas em torno do mapeamento encefálico. Este fato possibilitou, em parte, à ciência construir a base empírica para os estudos sobre a corporeidade, a neurociência e a cognição como são entendidas hoje.

Edgar Adrian (1889-1977), fisiologista inglês, quase contemporâneo de Sherrington (com quem compartilhou o premio Nobel em 1932), complementando os seus estudos sobre a atividade elétrica das fibras nervosas motoras e sensoriais, reluta de certa forma em especular sobre como o cérebro se relaciona com a mente (BENNET & HACKER, 2003, p.61-62). Esta discussão reaparece somente com John Eccles (1903-1997), doutor em Filosofia e pós-doutorando com Sherrington[4]. Eccles, incitado pelas inspiradoras experiências sobre a hemisferectomia conduzidas pelo neuropsicólogo e neurobiologista Roger Wolcott Sperry (1913-1994), se junta ao filósofo Karl Raimund Popper (1902-1994) e escrevem Self and its Brain (1977), levantando hipóteses sobre como é a relação do ser humano com o mundo físico, mental e dos pensamentos[5].

Outros exemplos mais modernos que mantêm viva a contenda entre os pensamentos dualista cartesiano e não-dual atual são doenças como a depressão e os transtornos de ansiedade. Do ponto de vista psicofarmacológico estes são causados pela falta do neurotransmissor serotonina (ou dos seus receptores), e da resposta reflexa de “luta-fuga” pela ação do hormônio cortisol que, em última instância, atua sobre os mecanismos de ação do neurotransmissor GABA (ácido gama-aminobutírico). As alterações nas concentrações de uma destas substâncias químicas ao corpo, alteram substantivamente a conduta do ser humano para uma vida sem sentido no caso dos depressivos, e de absoluta falta de atenção e estresse crônico no caso dos ansiosos, impossibilitando, tanto um como o outro, de viverem plenamente (STAHL, 2006, p.191-324).

Embora alterações no corpo modifiquem a mente, mudanças no ambiente também influenciam a estrutura neural e, consequentemente o comportamento e a cognição dos seres vivos. Imagine se dois grupos de gatos nascidos da mesma ninhada, mas desde o seu nascimento dispostos em dois ambientes visuais diferentes, portanto a experiências distintas. Os gatos do grupo I são criados em uma caixa somente com linhas horizontais e os do grupo II com linhas verticais, ambos em determinadas horas do dia durante algumas semanas. As únicas informações visuais que possuem são ou as linhas verticais ou as horizontais, nada mais eles “conhecem” (visualmente), pois as outras horas do dia vivem em absoluta escuridão (sem estímulo visual). O resultado desta pesquisa publicada na revista Nature, em 1970, esclarece que o desenvolvimento do cérebro (pelo menos dos gatos estudados) depende do ambiente visual. Os gatos criados em recintos “verticais” desenvolveram neurônios específicos que não “identificavam” linhas horizontais, ao contrário do que acontecia com os gatos “horizontais” (BLAKEMORE & COOPER, 1970).

O que se pretende com os exemplos acima é demonstrar que, mesmo segundo a psicofisiologia padrão, o funcionamento do corpo age diretamente na formação de quem se é, do que se pensa e de como se age. Também se é fruto das células herdadas e das construídas ao longo da vida. A mente/alma/Self (seja o que se chame), interage com a fisiologia, e a corporeidade tem papel culminante na formação dos seres humanos também (PINKER, 2008, p.9-16).

[1] Corporeidade, é entendida aqui como a maneira pela qual o cérebro reconhece e utiliza o corpo como instrumento relacional com o mundo (LAKOFF & JOHNSON, 2002, p.28).

[2] Para maior aprofundamento sobre a influência cartesiana na fisiologia, ver BENNET & HACKER, 2003, p.40-44.

[3] Para um aprofundamento moderno sobre o caso de Gage e as neurociências ver DAMÁSIO (2001), p.23-76.

[4] Eccles é quem fez os primeiros registros intracelulares dos potenciais pós-sinápticos dos neurônios motores que permitiram a descoberta das microanatomias funcionais entre o cerebelo, o tálamo e o hipocampo, completando o programa de investigação descrita por Sherrington em seu The Integrative Action of the Nervous System cinqüenta anos antes (BENNET & HACKER, 2003, p.63-64).

[5] Pormenores sobre os conceitos e críticas sobre os três mundos de Eccles e Popper ver Ibid., p.63-71 ou POPPER & ECCLES (1991).


Vivemos em uma sociedade ocidental do consumo, desde pequenos somos educados a construir, consumir e jogar fora “coisas”, nada dura muito tempo. Já cunharam vários nomes para esse modelo desde sociedade líquida-moderna, passando por ultramoderna ou simplesmente uma continuação da sociedade moderna. No entanto, o que é certo, é que produzimos um novo ethos e visão de mundo nas sociedades ocidentais contemporâneas, independente da denominação que adotemos. As religiões, como constructos humanos, estão também em constante mudança frente ao processo histórico da humanidade.

A ligação entre saúde, cura e religião é algo bastante evidente e sempre constante nos estudos sobre religião, assim, é lícito pensar que mudanças no conceito de saúde de uma sociedade também influencia na compreensão que os religiosos fazem de suas próprias religiões. O yoga desde o período medieval indiano viu-se envolto em processos de cura, inicialmente com a sua medicina tradicional, o Ayurveda, e agora modernamente, com a biomedicina e fisiologia ocidental. Contemporaneamente, o yoga viu os seus rituais serem investigados pelas maiores universidades do mundo e os seus benefícios psicofisiológicos dissecados de forma ímpar, não visto por nenhuma outra religião.

Durante a sua prática uma série de neurotransmissores, endorfinas e hormônios podem conduzir os seus adeptos a estados "alternativos" de consciência, atenção e relaxamento, cunhado por alguns cientistas como hipometabolismo, onde alguns praticantes mais experientes conseguiram alcançar e manter por períodos longos, ondas eletroencefálicas alfa, tetha e delta, registradas por qualquer ser humano "normal" apenas durante o sono, e não de forma consciente como os yogues durante (e após) os seus rituais obtém, com resultados para a saúde impressionantes, desde tratamentos para ansiosos, depressivos, dores musculares, melhora da atenção, dentre tantos outros. No entanto, nada foi mais evidente, do que a produção do relaxamento muscular e da lógica, tanto que o yoga tem sido um “remédio” barato e bastante eficaz a um mal que acomete a maioria dos indivíduos das grandes cidades, o estresse.

Por ativação do CPF (córtex préfrontal - causada pelo aumento da atenção), durante o ritual yoguico, é possível minimizar a "entrada" sensorial do mundo externo ao LPPS (lobo parietal posteriol superior, área encefálica responsável por nos fornecer a nossa dimensão espacial corporal), por meio da hiperpolarização do tálamo, produzindo a estranha percepção de não sentir mais o corpo, o que poderia ser responsável pelos relatos subjetivos dos seus praticantes de uma sensação de profundo vazio ou expansão corporal. Continuada a prática, pesquisas sugerem, que a diminuição dos ciclos respiratórios associados ao foco de atenção faria com que uma região específica do tronco cerebral (locus ceruleus) diminuísse a secreção de NE (noradrenalina) para o resto do córtex, arrefecendo pensamentos intrusos, pois, associado com a hiperpolarização do LPPS, a menor secreção de NE, uma menor quantidade de estímulos sensoriais seriam percebidos. Isso ajudaria ainda mais no quadro geral de relaxamento reclamado pelos praticantes de yoga durantes os seus rituais. Esse relaxamento repercutiria no organismo diminuindo, via parassimpático, a pressão arterial (PA) do praticante a níveis prejudiciais ao organismo. Para reestabelecer a PA a níveis aceitáveis, o organismo secretaria AVP (arginina vasopressina), hormônio responsável também pela vasoconstrição. No entanto, a AVP também está associada a consolidação de novas memórias, facilitação geral da aprendizagem e à diminuição da sensação de fadiga, gerando assim, ainda maior percepção de relaxamento.

As sensações de bem estar e aumento do vigor associados ao yoga está vinculado, provavelmente, à secreção de serotonina, beta-endorfina e dopamina. Essas substâncias neuroquímicas estão associadas a uma consciência singular de aumento da euforia, da felicidade, da menor sensação de medo, o que significa, psicologicamente, menor ansiedade, estresse, cansaço e depressão por meio do relaxamento produzido pelo ritual do yoga. Além disso, por meio da grande atividade neuronal (despolarização) do CPF, devido ao esforço do praticante de yoga em manter-se focado em seu ritual, uma grande quantidade glutamatérgica é produzida. O interessante é que em grande quantidade, o glutamato pode se tornar neurotóxico. Assim, o organismo mais uma vez atua de forma autônoma, na ânsia de manter a sua homeostase, limita a produção glutamatérgica no cérebro inibindo a enzima que o "fabrica". Essa situação, sugere Andrew Newberg e colegas, produz outra substância em abundância, o NAAG (n-acetil-aspartil-glutamato) durante o ritual do yoga, pois é a partir do NAAG que o cérebro sintetiza o glutamato. O NAAG, no entanto, é análogo à algumas substâncias alucinógenas, como a quetamina, ao óxido nítrico e a fenciclidina (pó de anjo ou pílula da paz - PCP). Alguns autores sugerem que a combinação do extremo relaxamento descrito acima, o extremo grau de atenção requerido na prática yoguica e o NAAG, os responsáveis pela manutenção também (e não exclusivamente) da plausibilidade da realidade “não vista”, como chackras, prana, kundalini, dentre outros, contruída pelas escrituras yoguicas.

Mas um Ser relaxado é diferente de um Estar relaxado dependendo da visão de mundo e ethos de um povo. O Ser relaxado, no senso comum de uma sociedade capitalista, aponta um indivíduo desleixado, sujo, maltrapilho e que não se incomoda com a própria aparência e corpo, alguém facilmente identificado pelo olhar comum como marginal. Agora, um Estar relaxado, para a mesma visão de mundo, significa, por outro lado, segurança, saúde, confiança e alguém absolutamente ambientado (ou pertencente a um grupo, sociedade, ou seja, "socializado", dentro dos moldes). O primeiro é negativo, o mal; o segundo é positivo, o bem! Assim, praticar algum tipo de técnica, ritual ou prática de "relaxamento", pode vir a ser associado de forma ambivalente, tanto a fazer o bem quanto ao mal a si mesmo e aos outros. Segundo esse mesmo ethos e visão de mundo, o relaxamento "positivo" é aquele que conduz o seu praticante a um relaxamento temporário, a um Estar relaxado por algumas horas ou dias, do contrário, o indivíduo (e toda a sociedade a que ele pertence, e influencia) corre o risco de se transformar em um Ser relaxado, ou seja, não voltar mais do estado de relaxamento, o que aponta, como vimos, o mal!

Um indivíduo no estado de relaxamento não produz, não consome e não joga fora "coisas", ou seja, não contribui para o mercado/ambiente/sociedade contemporânea. No entanto, alguém "estressado" (o contrário de "relaxado") também não tem forças para girar as manivelas do consumo rápido que mantém as "coisas" em movimento nas prateleiras das lojas e nas latas de lixo reciclável. Assim, o “mercado” precisou construir um equilíbrio entre essas duas forças nos indivíduos que o mantém funcionando. O relaxamento, para o modelo capitalista moderno, é o indivíduo no Estar e não no Ser relaxado, pois “estando” por apenas algumas horas ou dias relaxado, o indivíduo recupera a sua saúde e, assim, está apto a produzir, consumir e jogar fora “coisas”.

Na Índia, no entanto, berço do yoga, a visão de mundo e ethos são (ou eram?) diferentes. É só pensarmos em Gandhi, que pelo “não-fazer”, um verdadeiro Ser relaxado, lutou pela independência do seu país. Enquanto os modelos ocidentais de independência sempre foram associados a luta armada, indivíduos verdadeiramente “não relaxados”, mas em absoluto estado de estresse. Para o yoga então, o Ser relaxado é algo positivo, benfazejo e correto, pode edificar indivíduos que desenvolvem discernimento cognitivo para refletir sobre o seu estado psicofísicossocial e dos outros, além de conscientizar-se e compreender os seus hábitos e condicionamentos, e livrar-se deles. Enquanto, para o ethos do ocidental moderno, é Ser relaxado é incompátivel com a altivez dos seus indiíduos. Em uma palavra: alguém cansado, deprimido, ansioso e/ou estressado não produz, não consome e não joga fora “coisas”, criando um colapso na visão de mundo capitalista ocidental. Assim, o relaxamento pode, dependendo da visão de mundo religioso que estudemos, ou arruinar com o ethos desse povo (talvez, no máximo, contribuir para este modelo “recuperando” os seus indivíduos cansados, ansiosos, deprimidos e estressados), ou solidificar o ethos de um povo.

O termo homeostase, o equilíbrio dinâmico do organismo para se manter saudável foi criado estresse foi cunhado por Hans Seyle (1907-1982) recentemente, o seu conceito era desconhecido, ninguém era diagnosticado como “estressado” antes do advento da revolução industrial.

Sob um ponto de vista bastante pragmático de um fisiologista, um ser relaxado indica um indivíduo livre de tensões, tanto musculares quanto mentais. Alguém tenso é alguém com algum grau de medo, pois o reflexo inato do medo nos conduz, de forma autônoma, a lutar ou a fugir, ambos fomentam um quadro clássico de estresse, que não necessariamente é algo ruim, muito pelo contrário, sem esse reflexo inato em nós, morreríamos cedo e, provavelmente, já teríamos nos extinguidos como espécie. O estresse possui três fases bem distintas: a fase aguda, a adaptativa e a crônica. As duas primeiras são benéficas e nos ajudam a sobreviver, pois nos alertam ao perigo, tanto imaginado quanto real. Já a terceira, se instala quando o agente estressor não consegue ser “combatido”, como por exemplo, num dia de extremo calor. Nosso corpo reage ao calor suando e nos fazendo sentir sede para beber água. A terceira fase aparece quando não conseguimos nos adaptar ao estresse. No caso acima, é provável que os nossos vasos saguíneos se dilatem, diminuam a nossa pressão arterial e desmaiamos por força da fase crônica do estresse, para que diminuamos o nosso metabolismo até que o “socorro” apareça.

Tanto um agente estressor externo, como o calor, aciona o eixo do estresse, quanto um agente interno, como um pensamento nefasto, como por exemplo, a culpa por ter cometido um pecado, o não cumprido as exigências de um ritual ou 12 horas de trabalho! Assim, a ansiedade causada pelo estresse de um pensamento ruim pode nos conduzir a um quadro de depressão, que é quando a resposta que damos a um agente estressante não alcança o seu intento, o seu organismo entra na fase crônica, não se adapta, gera ansiedade e possíveis sintomas depressivos. A saída é terapia para descobrir a causa e remédios para diminuir a ansiedade ou depressão. Um indivíduo nesse quadro de burn out não consegue exercer as suas funções na sociedade e é afastada das suas funções sociais, ou seja, é marginalizada. Alguém que não produa e não consome não é bem visto nas sociedades ocidentais contemporâneas.

As facilidades impostas pela melhora da tecnologia no mundo moderno têm gerado seres humanos cada vez mais sedentários, e paralelamente tem ocorrido um aumento das doenças crônicas degenerativas. Pouca importância tem sido dada às alterações que esse sedentarismo provoca no sistema imunológico.

Uma das áreas mais fascinantes e de rápido desenvolvimento na fisiologia moderna compreende a ligação entre a mente e o corpo. Embora muitos renomados cientistas tenham zombado deste tópico durante muitos anos, a interação entre as nossas emoções e as doenças somáticas tem sido descrita por séculos. Muitas sociedades descrevem histórias de pessoas que perderam a alegria de viver e mais tarde morreram sem nenhuma doença aparente, ou de pessoas que desistiram da morte e tiveram uma recuperação notável.

A interação entre a mente e os demais sistemas de integração, como o nervoso, o endócrino e o imunológico, permite-nos postular a existência de um sistema psiconeuroimunendócrino, responsável pela manutenção do equilíbrio interno de nosso organismo, e cuja existência nos permite entender como modificações em um dos elos levaria ao desarranjo dos demais. A base de sustentação para a existência deste eixo seria a possibilidade de troca de informações entre os diferentes subsistemas, através da liberação de uma grande quantidade de substâncias químicas, como citocinas, peptídeos, monoaminas, glicocorticóides, radicais livres e opióides. A assunção de tal pressuposto nos permite compreender melhor as ligações entre a incapacidade de se enfrentar o estresse e o desenvolvimento de enfermidades.

O estresse é um fenômeno biológico comum e conhecido por todos nós através de nossas próprias experiências. A vida moderna tem sido caracterizada pelos altos índices de estresse, e tem levado uma grande quantidade de pessoas a procurar abrigo em spas, academias de ginástica, livros de auto-ajuda e, neste contexto, o refúgio no yoga, nas práticas meditativas, assim como no seio de diversas religiões, também encerra importância fundamental. Sendo assim, é lícito compreender melhor os mecanismos envolvidos na geração do estresse, assim como a possibilidade de diminuí-lo através de tais práticas.

Em sua etimologia o verbete estresse tem como sinônimo o termo strain e remonta às origens das línguas Indo-Européias. No grego antigo, era a raiz de strangale e do verbo strangaleuin que significa estrangular. Em latim, a raiz formou o verbo stringere que significa apertar. Logo, as raízes do estresse remetem à idéia do empenho de forças fundamentalmente contrárias.

A percepção do estresse é bem antiga. Para os homens primitivos, a perda de vigor e o sentimento de exaustão que experienciavam após um trabalho intenso ou exposição prolongada ao frio, ao calor, perda de sangue, medo ou doença, teriam alguma semelhança entre si.

Claude Bernard, fisiologista francês considerado o pai da ciência moderna, introduziu o conceito de milieu interieur ou o princípio do equilíbrio fisiológico interno dinâmico, dependente do líquido orgânico que circunda e banha todos os tecidos. Bernard foi primeiro a observar que o meio interno dos organismos vivos não era meramente um veículo para levar alimento às células, mas que da estabilidade do meio interior dependia o nosso bem estar geral. A partir da noção de meio interno constante, Walter Cannon, um fisiologista americano, desenvolveu o conceito de homeostase, do qual depende a qualidade de vida do ser humano. Entende-se por homeostase o conjunto de mecanismos regulatórios que mantêm a constituição do meio interno dentro de limites adequados para a sobrevivência do organismo, permitindo sua funcionalidade pela adaptação às condições externas variáveis da natureza. Tais mecanismos são os responsáveis pela detecção e correção de variações em diversos parâmetros orgânicos, tais como pressão arterial, volume sangüíneo, temperatura corporal interna, concentração de sais minerais, pH, entre outros. A existência desses mecanismos de regulação permite o funcionamento do organismo nas condições externas presentes na natureza.

Segundo Selye, o estresse é definido como um estado de diminuição da homeostase, onde o organismo apresenta diversos sintomas que demonstram sua crescente dificuldade em adaptar-se aos agentes físicos ou patológicos.95 Este mesmo pesquisador foi o responsável por introduzir o conceito de Síndrome da Adaptação Geral, que pode ser definido como a resposta não-específica estereotipada do organismo sadio a sinais estressores de diversas origens. A reação de adaptação aumentaria o poder de resistência do organismo aos agentes estressores e à sua capacidade de moldar-se às mudanças ambientais. O fator limitante da adaptabilidade de um organismo é a chamada energia de adaptação, ou seja, a capacidade de resistir às influências adversas do meio ambiente, que é limitada e declina com o aumento e/ou a contínua exposição ao agente estressante, levando a um desajuste da referida capacidade adaptativa e ao surgimento das doenças.

Ao longo da vida, a capacidade de adaptação do indivíduo vai se deteriorando, processo conhecido como senescência, provocando a queda da qualidade de vida. Em situações extremas, ou então quando o organismo não consegue reagir de forma adequada às situações do dia-a-dia, sobrevém o estado comumente chamado de estresse crônico. O estresse crônico pode atingir qualquer pessoa, independente da idade: atletas sobrecarregados com inúmeras sessões de treino, crianças sobrecarregadas com tarefas cotidianas, trabalhadores presos diariamente nos engarrafamentos da avenida Brasil no Rio de Janeiro ou das marginais em São Paulo etc. Um indivíduo nessas condições passaria por três estágios: no primeiro momento a experiência parece ser muito dura, é a reação de alarme do organismo, em seguida acostuma-se a ela, é o estado de resistência, e finalmente não se pode mais suportá-la, é o estado de exaustão.

É sabido que estressores físicos são capazes de influenciar a funcionalidade do sistema imunológico. Além desses fatores estressantes citados acima, as injúrias térmicas, traumáticas, cirúrgicas, o infarto do miocárdio e o choque hemorrágico também são capazes de influenciar a funcionalidade do sistema imunológico.

O exercício físico também tem sido classificado como um agente estressor, pois se sabe que este é capaz de alterar o estado de equilíbrio do eixo psiconeuroimunendócrino, influenciando a saúde do indivíduo. Devido a isso, inúmeros cientistas têm feito uso do exercício quando querem testar algum medicamento ou alguma terapia que supostamente possa combater o estresse, pois caso a intervenção seja eficaz, o indivíduo que se submete a ela deverá realizar o mesmo exercício com um menor gasto energético. O exercício também é reconhecido como um potente influenciador do sistema imunológico, muito embora os mecanismos por detrás de tais efeitos não sejam totalmente conhecidos. Sabe-se, porém, que a prática de exercícios em diferentes intensidades e segundo diferentes protocolos de execução e duração pode exercer efeitos positivos ou negativos sobre diversos parâmetros do sistema imunológico, uma vez que pode aumentar algumas células deste sistema, ou ainda, reduzi-las sensivelmente.

Logo, exercícios moderados como um jogging na praia estimulam o sistema imunológico, ocorrendo justamente o oposto com exercícios mais intensos. Deve-se salientar que além da intensidade com a qual o exercício é realizado, a freqüência com que se pratica o mesmo (agudo ou crônico) também é fundamental na promoção de seus efeitos. Portanto, ao se estudar os efeitos do exercício sobre o sistema imunológico deve-se obrigatoriamente distinguir os resultados que são característicos de sessões agudas, daqueles decorrentes do exercício crônico, repetitivo, intenso, demasiado.

Se a compreensão dos mecanismos pelos quais o exercício atua no sistema imunológico ainda está em seu estado embrionário, muito menos se sabe a respeito da influência das práticas yoguicas, meditativas ou das orações sobre a dinâmica do sistema de defesa do corpo. Dentro em breve comentaremos mais sobre esse tópico. Todavia, compreender, ao menos que parcialmente, como o exercício influencia o sistema imunológico, é um prérrequisito para iniciarmos nosso discurso sobre os benefícios da prática do yoga e da meditação na aquisição de uma resposta imunológica mais eficaz. Sabe-se que, apesar do yoga ser muito mais do que um mero exercício, algumas escolas partem do trabalho corporal com o intuito de atingir estados conscienciais mais elevados, e talvez no futuro, os pesquisadores associem tais práticas ao conhecimento que hoje se constrói da relação exercício-sistema imunológico. Todavia, de compreensão muito mais difícil é a influência da meditação por si só sobre o sistema imune, pois, em geral, a meditação é a prática do nada fazer, do estar conscientemente em silêncio profundo, da contemplação pacífica dos pensamentos vagantes. Como o nada fazer pode, supostamente influenciar de forma benéfica o sistema imunológico é uma questão deveras intrigante.

Baseado nas hipóteses acima descritas, pesquisadores tem sugerido que o exercício de intensidade moderada aumentaria a resistência contra infecções ao liberar fatores imunomoduladores na circulação, como hormônio do crescimento, prolactina e citocinas. Portanto, de acordo com essa proposta, o exercício moderado para apresentar efeitos positivos deve ser realizado em intensidade que corresponda a pelo menos 60% da capacidade aeróbia máxima de um indivíduo, que é a capacidade associada ao ato de correr, nadar, pedalar, caminhar etc. Isso se deve ao fato de que alterações significativas de hormônios como adrenalina, noradrenalina, hormônio do crescimento, e beta-endorfina, assim como aumentos da temperatura corporal, ocorreriam a partir dessa intensidade. O exercício de alta intensidade por sua vez, não apresentaria esses mesmos efeitos positivos devido ao fato de promover a liberação de diversas substâncias imunossupressoras em quantidades elevadas, os glicocorticóides O cortisol é um hormônio glicocorticóide que pode ser nocivo para o sistema imunológico, principalmente quando suas concentrações plasmáticas são mantidas elevadas por longos períodos de tempo. Este fato é comumente visto em pessoas que sofrem com o estresse crônico, seja ele advindo de cargas excessivas de exercício, ou de preocupações exageradas com os problemas do cotidiano.

Portanto, o exercício físico agudo ou crônico, por se tratar de um fator estressor, tem seu papel sobre o sistema nervoso e endócrino. Mas, como dito anteriormente, com relação aos seus efeitos sobre o sistema imunológico, sua função ainda não está firmemente estabelecida. Esta dificuldade em se estabelecer o papel do exercício sobre a imunidade está relacionada ao grande número de variáveis diretamente ligadas à prática da atividade física, tais como: intensidade, duração e cronicidade. Os mecanismos envolvidos na resposta do sistema imunológico ao exercício englobam alterações hormonais, notadamente nas concentrações plasmáticas de alguns hormônios e do aminoácido conhecido como glutamina, pois é sabido que este é essencial no metabolismo dos leucócitos.

O exercício e suas conseqüências fisiometabólicas causam profundas mudanças no número e distribuição de leucócitos na circulação e podem induzir mudanças na resposta proliferativa dos linfócitos. A redistribuição dos leucócitos tem sido atribuída às mudanças hormonais ocorridas durante e imediatamente após o exercício. Já no começo do século XX, se demonstrou que participantes da maratona de Boston, apresentavam leucocitose, que é o aumento das células do sistema imunológico no sangue, após o exercício. A leucocitose é uma das mudanças consistentemente observada durante o exercício. O número de leucócitos na circulação pode crescer quatro vezes, e continuar aumentando após o término do exercício, e ainda permanecer elevado por períodos prolongados, após alguns tipos de atividade. No geral, a magnitude da leucocitose parece estar diretamente relacionada à intensidade e duração do exercício e inversamente relacionada ao nível de aptidão do indivíduo. O aumento do número dos leucócitos se deve predominantemente ao aumento nos neutrófilos e, num menor grau, linfócitos, apesar do número de monócitos também aumentar. Ao contrário, durante exercícios muito longos, tais como 24 horas de caminhada, o número de leucócitos aumenta progressivamente após 16 horas, e então diminui e continua baixo até 62 horas após a caminhada.

Indivíduos não treinados também exibem leucocitose durante e depois de vários tipos de exercício. A magnitude da leucocitose induzida pelo exercício em sujeitos não treinados é semelhante àquela dos atletas, quando o exercício é realizado na mesma taxa de trabalho relativo, ou seja, com intensidades semelhantes quando se respeita a individualidade biológica de cada esportista. Isso por si só já nos faz hipotetizar os benefícios que uma aula de yoga poderia trazer para a aquisição de um sistema imunológico mais eficaz, uma vez que mesmo aquelas linhas de Hatha-Yoga menos vigorosas podem, para algumas pessoas, caracterizar-se como um exercício moderado. Em alguns momentos, dependendo do indivíduo em questão, o exercício corporal pode ser até mesmo classificado como pesado ou extremo como no caso das escolas do Asthanga-Vinyasa Yoga ou do Power Yoga. Contudo, no presente momento isso é somente especulativo, uma vez que não encontramos na literatura científica mundial nenhum trabalho que tenha intencionado averiguar as respostas imunológicas advindas da prática do yoga corporal.

Em condições de repouso, menos da metade dos leucócitos maduros do corpo está circulando no sistema vascular. O resto é seqüestrado para perfusão de microvascularidades nos pulmões, fígado, e baço. O mecanismo exato pelo qual os leucócitos são lançados dentro da circulação durante o exercício permanece desconhecido, mas pode envolver fatores mecânicos, assim como o aumento do rendimento cardíaco, bem como mudanças nas interações entre leucócitos e células endoteliais dos capilares. O exercício ainda influencia o número de linfócitos. A linfocitose, que é o aumento do número de linfócitos, ocorre durante e imediatamente após o exercício, realizado nas mais diversas condições como, após 10 minutos de subida de escadas ou após uma corrida de maratona. Tal como o observado com relação aos leucócitos totais, o número de linfócitos sobe progressivamente com o aumento da taxa de trabalho, e a magnitude da linfocitose está relacionada à intensidade do exercício.

Vários subgrupos de linfócitos podem responder diferentemente ao exercício. Em geral, todos os subgrupos aumentam em número, mas as células B e natural killer (NK) podem atingir número proporcionalmente maior que as células T. O exercício intenso e breve, recruta as células T da circulação114, mas seu número pode ser restaurado logo após a atividade. O número aumenta mais em indivíduos não treinados do que em treinados após exercício intenso e breve. Já o número de células B aumenta dramaticamente durante o exercício, mas retorna rapidamente ao nível basal logo após o seu término.

Trabalhos realizados com animais de laboratório mostraram que a produção de anticorpos (imunoglobulinas) pelas células B também é reduzida pelo exercício exaustivo, sugerindo supressão da proliferação de células T e subseqüente estimulação da diferenciação das células B. Por outro lado, indivíduos que praticaram meditação por alguns meses demonstraram aumentos significativos na produção de anticorpos específicos. Esta pesquisa sobre meditação é a única na literatura científica mundial que investigou os efeitos da prática meditativa sobre a função imunológica no ser humano, e seus achados são deveras interessantes. Sendo assim, mais adiante versaremos sobre ela com um maior grau de profundidade.

Todavia, algumas coisas ainda devem ser faladas sobre o sistema imunológico humano. Os linfócitos fazem parte do eixo neuroimunoendócrino, responsável pelo controle da homeostase, e necessitamos conhecer melhor esse tipo celular. Os linfócitos são células com diâmetro variando entre 6-10 m, e isso significa dizer que são pequenas; muito pequenas. No corpo humano existem cerca de 2x1012 linfócitos, e isso significa dizer que temos muitos linfócitos; bastante mesmo. O número total é tão grande que o sistema imunológico pode ser comparável, em massa celular, ao fígado ou ao encéfalo, representando cerca de 2% do peso corporal. Os linfócitos originam-se a partir de células primitivas localizadas na medula óssea. Os linfócitos B adquirem maturidade na própria medula óssea, ao contrário dos linfócitos T, que o fazem no timo. As células B, quando estimuladas por citocinas, passam a se dividir e podem dar origem às células produtoras de anticorpos. As células T não sintetizam imunoglobulinas, mas atuam como moduladoras da resposta imunológica.

Os linfócitos T estão intimamente envolvidos na iniciação e regulação da maior parte das respostas imunológicas, graças a sua capacidade em modular a atividade de algumas células deste sistema. Exemplos dessas modulações são: a ativação de células B para proliferação e produção de anticorpos; a morte de células tumorais e células infectadas por vírus; e secreção de fatores solúveis que modulam a atividade de outras células do sistema imunológico.

Os estudos sobre os efeitos do exercício na função de linfócitos B e T realizados até o momento, utilizaram-se de protocolos de treinamento e exercícios variados, não havendo uma sistematização desses resultados. Menos sistematizado ainda está o ramo da ciência que investiga os efeitos sobre o sistema imunológico advindos da prática da prece e da meditação. Entretanto, Richard Davidson, a pedido do Dalai Lama, iniciou uma série de pesquisas com monges budistas e com praticantes menos versados em meditação. Uma de suas pesquisas investigou os efeitos da meditação sobre o sistema imunológico de seus praticantes. Tal pesquisa, conduzida de forma extremamente elegante, fez uso de vinte e cinco voluntários treinados em técnicas meditativas durante oito semanas. Dezesseis outros voluntários serviram como grupo controle da experiência, e não passaram pelo treino em meditação. Richard Davidson e seus colaboradores realizaram eletroencefalografias em ambos os grupos, e perceberam que o grupo praticante de meditação apresentou durante a prática meditativa, assim como, em períodos posteriores, uma maior ativação de seu córtex pré-frontal esquerdo. Ativações eletroencefalográficas nesta região têm sido correlacionadas com a presença de emoções mais positivas.

Outras pesquisas ainda correlacionam tais ativações assimétricas do córtex pré-frontal esquerdo, com melhores funções imunológicas refletidas através de maiores atividades das células natural killers (NK). Como algumas recentes pesquisas têm demonstrado, o estresse da vida cotidiana pode interferir na resposta imunológica à algumas vacinas. Em outras palavras, quanto maior o nível de estresse, menor os benefícios advindos da imunização medicamentosa, como por exemplo, da vacina que combate o vírus da influenza. Richard Davidson e seus colaboradores hipotetizaram que a prática meditativa poderia melhorar a resposta imunológica. Para testar tal hipótese, os dois grupos participantes da pesquisa receberam uma vacina contra o vírus da influenza, logo após o término das oito semanas de treino meditativo. Após quatro meses, a quantidade de anticorpos específicos para esse vírus foi medida, e o grupo praticante de meditação mostrou efeitos mais positivos em seu sistema imunológico, uma vez que a contagem de anticorpos foi significativamente maior do que a do grupo controle.

Os autores ainda demonstraram que aqueles indivíduos submetidos à prática da meditação, e que apresentaram uma maior ativação cortical esquerda, apresentaram também uma maior contagem de anticorpos. A pesquisa conclui que a meditação, mesmo aquela realizada em curto espaço de tempo, pode produzir efeitos significativos no cérebro e no sistema imunológico. Futuras pesquisas são necessárias para que se possa investigar com mais profundidade tais achados, uma vez que a reprodução dessas pesquisas pode ser de grande valia para todos os profissionais atuantes na área da saúde.

Os caminhos neuroquímicos do estresse

Como vimos, a experiência do estresse é comum a todos nós. Expectativas positivas, assim como expectativas negativas, geram um espectro muito grande de alterações fisiológicas necessárias para a manutenção da homeostase do organismo. Versamos que uma das adaptações mais fundamentais é a liberação de glicocorticóides pelas glândulas adrenais, mais especificamente o córtex de tais glândulas. Todavia, a hipersecreção de glicocorticóides pode desencadear uma disfunção psicofisiológica no organismo em questão. Desequilíbrios das cascatas regulatórias do estresse estão associados à patogênese de diversas doenças, como colite, hipertensão, asma, depressão, ansiedade etc; assim como algumas doenças neurodegenerativas, tal qual o mal de Alzheimer.

A secreção de glicorticóides é desencadeada através de um eixo neuroendócrino conhecido como: eixo hipotálamo-hipófise-adrenocortical (HHA). Em contrapartida, o eixo HHA é controlado por uma grande quantidade de neurocircuitos associados à percepção do estresse. O principal núcleo hipotalâmico relacionado a esse eixo é o núcleo paraventricular (NPV). Sob condições do estresse, esse núcleo libera um hormônio conhecido como: hormônio liberador de corticotropina (CRH), além de arginina-vasopressina (AVP). Tais hormônios induzem à liberação do hormônio adrenocorticotrópico (ACTH) da glândula hipófise anterior, sendo que este é o responsável pela liberação de glicocorticóides do córtex das glândulas adrenais. Estresses prolongados correlacionam-se positivamente com os aumentos da liberação de CRH, AVP e ACTH, e isso induz uma liberação crônica de glicocorticóides, o que afeta negativamente o sistema imunológico do organismo, privando-o de suas defesas naturais contra agentes patogênicos.

Não são poucas as cascatas bioquímicas associadas ao estresse. Há aproximadamente trinta anos atrás falar de doenças produzidas pela mente era algo destinado aos cursos voltados à psicologia e auto-ajuda, que as caracterizavam como doenças psicossomáticas. Atualmente, as neurociências têm corroborado as afirmações realizadas há décadas por tais profissionais, na medida em que tem descoberto os caminhos neuronais que intermedeiam o pensamento, as emoções e a liberação de neurotransmissores e hormônios que podem patrocinar a saúde ou a doença.

Alguns estados autonômicos correlacionam-se com determinadas experiências espirituais. Em seu livro Why God won´t go away, Andrew Newberg e Eugene D´Aquili sugerem diferentes tipos de ativações autonômicas. Muito embora o consenso geral é de que o SNA trabalhe ora tendo o ramo simpático no comando, ora tendo o ramo parassimpático no domínio das ações, algumas recentes evidências sugerem que em determinados momentos ambos podem atuar conjuntamente, produzindo interessantes estados conscienciais. Segundo os autores acima citados65, as quatro possibilidades de atuação do SNA são:

1) Super-relaxamento: o super-relaxamento é um estado extraordinário de tranqüilidade e paz. O corpo experiência tal fato somente durante o sono profundo. Logo, não temos consciência desse estado. Todavia, esse acontecimento pode ser vivenciado no decorrer de algumas fases do processo meditativo, e em alguns rituais religiosos. Durante essa experiência o ramo parassimpático é ativado produzindo um estado de tranqüilidade, bons pensamentos, agradáveis sensações corporais etc. Budistas têm narrado tal estado, e usam o termo upacara samadhi para descrevê-lo.

2) Superexcitação: é um estado mental caracterizado pelo fluxo incessante de neurotransmissores advindos do SNA simpático, produzindo um crescente senso de excitação, alerta e, em alguns casos, um alto grau de concentração. Muito embora, dependendo da pessoa em questão, esse acontecimento possa ativar reflexamente uma grande quantidade de neurônios do sistema nervoso central, perturbando assim a manutenção da concentração. O estado de superexcitação é atingido durante atividades motoras rítmicas e cíclicas. Maratonistas, dançarinos e esquiadores olímpicos têm relatado tal estado consciencial.

3) Super-relaxamento associado a superexcitação: Sob certas circunstâncias muito especiais, a ativação do ramo parassimpático pode ser tão intensa, que o ramo simpático acaba por ser ativado conjuntamente. Segundo alguns relatos, assim como algumas poucas evidências científicas, esse cruzamento pouco comum seria o responsável por alguns dos intensos estados alterados de consciência atingidos durante meditações profundas ou preces verdadeiras. A franca ativação do ramo parassimpático produziria estados de calma, tranqüilidade e benevolência, e a subseqüente ativação do ramo simpático, somaria a essas sensações a percepção de alerta e argúcia extrema. Budistas têm denominado tal estado de appana samadhi.

4) Superexcitação associado ao super-relaxamento: Este estado é semelhante ao descrito acima, todavia tem seu inicio de forma inversa. Danças ritualísticas rápidas, êxtases sexuais, assim como engajamentos esportivos intensos, podem gerar grandes liberações de neurotransmissores advindos do SNA simpático, deflagrando assim, muito provavelmente de forma reflexa, sua contraparte parassimpática, responsável pelas sensações conscienciais já descritas nesse texto.

É, eu sei, está parecendo o discurso de algum "eco-chato" ou estudante ciências sociais pronto para detonar o sistema capitalista. Não, apenas busco investigar uma espiritualidade advinda da Índia e adaptada a um outro modelo cultural. Farei isso por meio da biologia como uma ciência auxiliar no entendimento do fenômeno religioso do Yoga no mundo contemporâneo.

Parto logo, e sem rodeios, ao que me trouxe aqui. O yoga, como outras religiões da salvação, divide o mundo entre o “visto” (ou ilusório) e o “não visto” (sobrenatural ou real). O mundo “visto” é um "mundo de passagem" ou “local de provação”, o lugar aonde devemos aprender a nos livrar da dor. O sofrimento assim, passa a ser valorizado, pois justifica o mundo “não visto” que nos espera e, por força da distinção agora constituída entre o profano e o sagrado, abre-se um espaço para a rejeição religiosa do mundo “visto” (ou ilusório) na medida em que o elemento empírico da realidade profana passa a ser desvalorizado pela realidade sagrada do "sobrenatural". O religioso então refugia-se do mundo “visto” para alcançar a sua salvação no mundo “sobrenatural”. Cria-se aí uma "teodicéia do sofrimento", sim, pois é o nosso karma ou "vontade divina" sofrermos antes de termos o merecimento do "reino dos céus" ou de kaivalya (ou ser “liberto em vida”); ou ainda, ter o direito de voltar em outra vida na condição de um brâmane e não de um dalit, por exemplo, um intocável dentro do sistema de castas indiano. No entanto, apenas os especialistas religiosos possuem a chave para a cura dessas almas enfermas, em geral, vinculados aos interesses materiais dos sacerdotes, aos ideais do Estado e as "necessidades" da plebe, sob a visão deles, é claro.

A soteriologia do yoga dita que o sofrimento humano (ou ignorância - avidya purusa) é causado pelo aumento das "atividades mentais ou da consciência" (yogacittavrttinirodha), além do sentimento/comportamento/hábito de apego, aversão, medo da morte e orgulho (os chamados klesas); que, em um ciclo vicioso, se retroalimenta produzindo mais sofrimento, a não ser que o indivíduo, a partir disso, obedeça e siga o caminho óctuplo estipulado como soteriologia por Patanjali em seu Yoga Sutras, famosa escritura religiosa do Yoga, conhecida como Asthanga Yoga (não confundir com Asthanga Vinyasa Yoga, um método, tradição ou escola de Yoga moderno).

Mas, se o "turbilhão da mente" e os klesas são o que nos causam sofrimento/dor/doenças, o contrário disso, é lícito pensar, nos trará felicidade e paz, saúde e felicidade ao espírito humano! Dessa forma, diminuir o “turbilhão da mente/consciência” pelo desenvolvimento da auto-atenção, viver com maior desapego, compaixão, fé/coragem pela vida (ou no viver) e humildade são os meios seguros para os yogues alcançarem a "libertação" (kaivalya, moksa ou o último estágio do samadhi, experiência mística/religiosa do Yoga). Mas até esse discurso releva-se ambíguo, pois a teoria dos klesas pode ter ajudado aos governantes indianos manter o sistema de castas funcionando muito bem, obrigado. Sim, pois é muito conveniente um dalit não se revoltar por sua condição de limpador de excrementos, cremador de cadáver putrefatos e, muito menos se indignar, por ver os seus filhos serem menosprezados e até mesmo punidos fisicamente por simplesmente sua sombra ter cruzado o corpo de um brâmane, quando ele crê que deve atenuar o seu sentimento de orgulho, apego, aversão e medo da morte, pois se ele fizer o seu trabalho menor de forma correta pode ir dormir ao lado de ratos esgoto aonde mora e sonhar que próxima vida terá a sorte, se cumprir com as suas oferendas aos deuses, de nascer em uma casta mais elevada na próxima reencarnação.

Mas o que tudo isso tem a ver com a ciência da religião o yoga e o relaxamento? Veja bem, o meu intuito por trás de tudo isso é revelar o poder explicativo que a fisiologia possui em ajudar um cientista da religião em compreender um fenômeno religioso, assim, recapitulemos tudo até agora: o ritual do yoga produz os seus praticantes/devotos a um estado de relaxamento, a sua soteriologia nos deixa bem claro que o que causa o sofrimento humano são o “turbilhão da sua mente/consciência” e os comportamentos de apego, aversão, medo da morte e orgulho, e também sabemos que tudo isso é advém de um processo histórico e continua ocorrendo.

Pois bem, quando do início da luta da Índia por sua independência das mãos dos ingleses, a partir de 1858 até 1947, os indianos precisavam se firmar como um país "moderno", ou seja, menos místico, mais "racional" e se livrar da mediação "mágica" do sobrenatural frente ao pensamento ascético protestante anglo-saxão ideal dos ingleses. Foi nesse momento histórico e cultural, que os indianos conduziram os seus yogues a laboratórios de fisiologia para "provar" aos seus colonizadores que a sua espiritualidade “mágica” e excessivamente “ritualística” poderia também ser “empírica”, produzindo saúde nos moldes que a biomedicina ocideental acreditava. Foi aí (especificamente com o discurso de Vivekananda no Parlamento das religiões em Boston e das pesquisas seculares do yoga em fisiologia com Kuvalayananda) que o yoga marca a sua entrada em seu período considerado moderno, e daí surge toda uma ressignificação da sua doutrina e soteriologia por meio do pensamento biomédico ocidental.

O yoga moderno sintetizou os seus rituais em sessões curtas e intensas, adaptando as suas práticas para o modelo de saúde estipulado pela OMS desde 1949, onde a saúde é o bem estar físico, mental e social dos indivíduos. Leia "bem estar" como um estado de absoluta e perfeita homeostase, ou seja, sem estresse, o que significa, Estar relaxado, pois amanhã, este indivíduo precisa estar pronto para voltar ao trabalho, às lojas de departamento e sacos de lixo.

A minha crítica não está no yoga em si como proposta religiosa de salvação, mas o que se tem feito com o yoga como proposta de salvação. A salvação pode não estar mais em livrar os indivíduos do sofrimento humano, como propôs Patanjali e seus predecessores, mas na cura do estresse, da ansiedade, da depressão e das dores nas costas por meio do Estar relaxado; enquanto que a proposta soteriológica do yoga reside em construir Seres relaxados, no sentido de romper com os seus padrões e hábitos, no contentamento com a vida, na purificação dos seus pensamentos e atos, em estabelecer práticas de conduta corretas, na autoatenção e na entrega da sua vida à uma utopia ou à Deus, por meio de rituais de relaxamento a sua Salvação. Por fim, e quase esquecido pelos yogues modernos, a conduta do yogue sempre esteve em desenvolver comportamentos desapegados, compassivos, humilde e de fé e coragem frente a vida.


Resumo: O Yoga, na sua mais nova face nos tempos atuais, se vê envolto por uma cultura e sociedades que não conhecia. No contato com o ocidente o Yoga encontra novos desafios que transformam a visão da sua fisiologia em suas escrituras sagradas no contato com a ciência moderna. A fisiologia padrão, por exemplo, trouxe soluções que antes eram monopólio exclusivo da fisiologia “sobrenatural” do Yoga. Como agora explicar o poder terapêutico dos ásanas, dos pranayamas, e dos kryias por meio apenas de uma fisiologia erigida no período medieval indiano? Este artigo visa mostrar as influências que marcaram a construção ou ressignificação moderna da fisiologia yoguica.

Yoga Moderno

Para o ocidente, o Yoga desembarca oficialmente nas suas terras com o Swami Vivekananda (1863-1902), em 1893, na cidade de Chicago nos Estados Unidos. A sua visita foi, por convite do Primeiro Parlamento Mundial das Religiões, como o representante do Hinduísmo nesse evento. No seu discurso apresenta já um Yoga com distintos sincretismos dos tempos medievais, tanto em termos ideológicos quanto fisiológicos (STRAUSS, 2008, p.58-63). Para Vivekananda, o Yoga é então considerado como um ideal de “religião universal” (ver o seu discurso no Parlamento em VIVEKANANDA, 2007)[1], sendo ele um dos primeiros a ressignificar a fisiologia sobrenatural (ou sutil) do Yoga com termos científicos (KUVALAYANANDA, 2008, p.103-104 em notas; STRAUSS, 2008, p.63).

O Yoga que Vivekananda oferece aos emissários das principais religiões ali presentes, é o de uma tradição religiosa pautada em uma das formas pela qual o ser humano alcança a sua “verdadeira liberdade” e manifesta a sua “divindade interior”. Vivekananda procura demonstrar, nos seus pronunciamentos e depois em outras palestras e livros, que a religiosidade indiana, condensada por ele com o nome Yoga, se sustenta tanto filosoficamente quanto cientificamente e está à altura de qualquer outra religião ali representada.

O seu discurso ficou bastante popular, o que lhe possibilitou fundar organizações yoguicas por cidades do mundo inteiro, tendo o seu pensamento, em relação à religião Yoga e à ciência formado a base intelectual de uma geração de yogues que veio depois dele[2] (DESIKACHAR et.al., 1980). Vivekananda também ficou conhecido como um defensor da tolerância religiosa, tornando-se um dos grandes ídolos do Hinduísmo moderno, além de um grande inspirador dos novos movimentos religiosos (principalmente da Nova Era) que primam, assim como o Yoga dito Moderno, por assimilar os seus ensinamentos religiosos como científicos (NANDA, 2007; VALLE, 2008, p.200; STRAUSS, 2008, p.64-65).

O Yoga, então, inicia mais uma vez as suas relações híbridas com novas culturas, sociedades, políticas, economias e geografias, como em outros momentos históricos (ver SIMÕES 2011). Contudo, agora, esse contato vai mudar o caráter do yogue renunciante do mundo de tempos passados, para um ascetismo que dialoga com o mundo nos tempos atuais (STRAUSS, 2008, p.64), pautando-se em escrituras religiosas como o Bhagavad-Gita.

Consideremos agora a diferença entre um yogue-asceta e um monge samsari (que se propõe a participar do jogo exterior de maya). Diga-se desde já que o “samsari” não precisa jogar obedecendo ao ego. Com efeito, é grato por Deus e muito útil ao desenvolvimento espiritual participar do jogo divino sem recorrer ao ego, em vez de procurar envolvê-lo no processo. (KRIYANANDA, 2007, p.241)

Enquanto aqueles yogues clássicos e medievais abandonavam o convívio social e dedicavam a sua busca religiosa retirados em ashrams e cavernas isoladas (ver sutra I.16 do HYP)[3], os modernos se globalizam e adquirem a preocupação de difundir os seus ensinamentos para o mundo. Esta passagem histórica de renúncia necessária ao mundo e agora, de participar do mundo e difundir as suas ideias yoguicas aos outros se configura uma das características mais marcantes do Yoga que se conhece atualmente segundo Sarah Strauss (2008), antropóloga da Universidade de Wyoming nos Estados Unidos (p.63-64). Assim sendo, segundo estudiosos modernos, o Yoga atual precisou aprender a lidar com os acontecimentos, principalmente os advindos do nacionalismo indiano, do ocultismo ocidental, da filosofia Neo-Vedanta, dos sistemas de cultura físicos modernos (DE MICHELIS, 2008, p.20), do islamismo, do cristianismo primitivo, da ciência moderna (principalmente a fisiologia e a biomedicina) e do movimento Nova Era (LIBERMAN, 2008, p.100-117). Este é o novo pano-de-fundo que configura o Yoga que se conhece atualmente.

Elizabeth De Michelis salienta os pontos-chaves que facilitam a compreensão do surgimento do Yoga Moderno. Segundo De Michelis (2008), desde 1600, por intermédio da Companhia das Índias Orientais, que a Índia vem estabelecendo relação com os países da Europa e América, mas é a partir de 1750 que as sociedades ocidentais voltam o seu interesse para a economia, o sistema sócio-político e a cultura indiana. Com isto, desde 1830 que surgem os debates devido aos movimentos de reforma sócio-religiosa na Índia Britânica, abrindo-se um diálogo entre os intelectuais e as autoridades sobre a “Anglicização” da colônia. Os primeiros sinais de uma ocidentalização da religiosidade indiana ocorrem por volta de 1850, como se pode ler nos escritos do naturalista, poeta e transcendentalista norte-americano, Henry David Thoreau (p.30)[4].

No início do século XX, presenciam-se o surgimento do Movimento Nova Era e a rápida modernização das religiões asiáticas, as quais dão início a um produtivo diálogo com outras crenças e culturas, fato que continua até hoje. Entre 1914 e 1945, devido às duas grandes guerras mundiais, a disseminação das idéias modernas do Yoga diminui a sua influência, sendo retomada novamente a partir da independência da Índia em 1947. Por intermédio de yogues carismáticos e convidados pela onda contracultural que acontece nos anos sessenta, várias organizações do Yoga se popularizam por todo o mundo. Após um período de certa indiferença pelo Yoga, na década de oitenta, nos anos noventa surge uma entusiástica aculturação por uma geração de praticantes e de devotos seguidores da sua proposta salvífica e de saúde (DE MICHELIS, 2008, p.21).

O Yoga, no início da década de noventa, se lança no mundo, principalmente por meio de alguns yogues, entre tantos outros, como Swami Vivekananda, Sri Yogendra, Paramahansa Yogananda, Swami Kuvalayananda, Swami Sivananda e Krishnamacharya (ALTER, 2004; FEUERSTEIN, 2005, p.53-55; SINGLETON & BYRNE, 2008). Os métodos yoguicos mais populares e praticados atualmente se devem aos yogues mencionados acima, tendo as suas ideias edificado algumas das inúmeras escolas, tradições ou organizações yoguicas religiosas no mundo atual, como, The Yoga Institute (1918), de Sri Yogendra; Self-Realization Fellowship (1920), de Paramahansa Yogananda; Kaivalyadhama Yoga Institute (1924), do Swami Kuvalayananda; “Yoga de Krishnamacharya” (1924), de Krishnamacharya; Sivananda Yoga: The Divine Life Society (1936), do Swami Sivananda; e o Vivekananda Kendra Yoga Research Foundation (1972), fundada por Eknathji Ramkrishna Ranade (1914-1982), organização esta baseada nos princípios de Vivekananda.

Todas estas organizações yoguicas, de uma forma ou de outra, fomentam e divulgam as suas religiosidades também nas pesquisas fisiológicas dos seus métodos de ensino yoguicos. Elas se orgulham de terem artigos publicados em revistas científicas sobre os benefícios das suas práticas para a saúde[5]. Para Iyengar (2001), por exemplo, yogue moderno e discípulo de Krishnamacharya, bastante conhecido por adaptar seu método ao público ocidental, principalmente por introduzir “utensílios”, como almofadas, fitas e outros, nas salas de práticas, afirma que “a pessoa indisciplinada é alguém sem religião; a pessoa disciplinada é religiosa; a saúde é religião; a doença é falta de religião” (p.38). O interessante aqui é o apelo à “saúde” como compensador fisiológico que a prática oferece, e a sua correspondência com religião. Para se entender o que permitiu esta configuração atual, o que transformou a religiosidade yoguica também na prática física e terapêutica, é necessário voltar para 1750, período histórico em que o continente indiano inicia um processo que veio mais tarde ser chamado de “Renascença Indiana”, quando a cultura deste país principia um diálogo maior e aberto com o mundo ocidental.

“Renascença” Indiana

É no período “renascentista” em que alguns indianos vão estudar para a Europa e percebem o que seu país, apesar da grandiosidade da sua terra, a sua história e cultura, sofre, com a precariedade do seu sistema de saúde, com as crenças populares envoltas pela sua religiosidade, com uma educação ineficiente e pela economia explorada pelos britânicos. Muitos destes jovens, na sua maioria da região de Bengala - área do nordeste indiano onde se localiza Bangladesh, Calcutá e Daca - entendem que seu povo poderia (e deveria) se beneficiar também dos avanços da ciência, da tecnologia e da medicina ocidental que eles testemunham, geralmente nos centros acadêmicos do mesmo país que os colonizava.

Os “intelectuais de Bengali”, como ficaram conhecidos, abriram o diálogo com os ingleses, instituindo uma ideologia e a modernização do seu país, o que veio a influir na formatação de um Yoga menos místico e, assim, mais condizente com o pensamento racional ocidental. Entre aqueles que deram início a isto, merece destaque Raja Ram Mohun Roy (1772-1833), filósofo filho de um pai Vaishnava e de uma mãe Shivaísta, que causou grande impulso no surgimento da Índia “Renascentista”. Raja Ram fundou o primeiro movimento religioso Neo-Vedanta, o Brahmo Samaj (“Comunidade de Devotos a Brahma”), em 1828.

Politicamente Roy influenciou bastante as reformas sociais e religiosas do povo indiano. Ele entendia que o sistema hindu de então não estava bem ajustado para promover os interesses políticos do país de acordo com o pensamento ocidental. Seria necessário que algumas mudanças ocorressem na sua religião também. A experiência de Roy trabalhando com o governo britânico lhe ensinou que a tradição religiosa hindu muitas vezes não era respeitada para os padrões intelectuais ocidentais, por isso tentou demonstrar que as “práticas supersticiosas” que, para o europeu, configuravam a religião hindu como primitiva, não correspondiam à sua real tradição como ele a entendia. Tais práticas religiosas, ditas “primitivas” eram frequentemente a razão oficial para que os britânicos afirmassem que tinham uma certa superioridade moral sobre a nação indiana. As ideias sobre religião que Raja Ram Mohan Roy buscou então construir, por meio da implementação de práticas semelhantes aos ideais cristãos, eram a de uma sociedade justa e humanitária para que assim, fosse possível autenticar o Hinduísmo no mundo moderno[6] (ELIADE & COULIANO, 2009, p.183).

Swami Dayananda Saraswati (1824-1883) foi um religioso e asceta hindu que também se envolveu no movimento de reforma da Índia. Ele acreditava na autoridade infalível dos Vedas, no ceticismo do dogma, além de se posicionar contra a idolatria religiosa. Ele tentou reavivar o sistema das idéias védicas, tanto lutando pela tradução dos Vedas do sânscrito para o híndi, para que todos, mesmo às pessoas comuns, tivessem acesso aos seus ensinamentos. Um dos seus princípios foi o respeito e a reverência para todos os seres humanos, pois na doutrina védica, dizia ele, todos os indivíduos possuem uma natureza divina, sendo o corpo o templo da essência humana ou atman[7]. Fundou também, em 1875, assim como Raja Ram, uma organização religiosa conhecida como Arya Samaj (“Sociedade dos Nobres”) mas, ao contrário de Roy, desferiu fortes golpes contra as tentativas de aproximação entre o Hinduísmo e as outras religiões.

O Arya Samaj condena inequivocamente a adoração de ídolos, o sacrifício dos animais, o culto dos antepassados, as peregrinações, as “embarcações” de sacerdote, as oferendas em templos, o sistema de castas, a “intocabilidade”, o casamento infantil e a discriminação contra a mulher, pois, segundo o Arya Samaj, a todas estas práticas falta à sanção dos Vedas[8] (ELIADE & COULIANO, 2009, p.183).

Paramahansa Ramakrishna (1836-1886) foi um dos líderes religiosos mais carismáticos do movimento de modernização da Índia. A sua vida religiosa se inicia como devoto à Deusa Mãe, mas ele queria, sobretudo, conhecer o que as outras religiões ensinavam de verdadeiro e em comum. Ramakrishna foi iniciado no Advaita Vedanta por um monge peregrino chamado Totapuri, na cidade de Dakshineswar, e enfatizava que a realização divina era o objetivo supremo de todos os seres vivos, sendo que, para ele, a religião servia como meio para atingir esta meta. A realização místico-religiosa de Ramakrishna levou-o a crer que todas as religiões são caminhos para alcançar Deus(a), e que a Realidade nunca poderia ser expressa em termos humanos. Isto estava de acordo, segundo ele, com o que declara o Rigveda: “A verdade é única mas os sábios a chamam por diversos nomes”. Como resultado desta Verdade, Ramakrishna passou momentos intensos da sua vida praticando, de acordo com seu entendimento, o Islã, o Cristianismo, vários tipos de Yoga e de seitas Tântricas dentro do Hinduísmo. Mas o ceticismo também permeava os seus ensinamentos tanto que passou muito tempo se perguntando se estava adorando uma pedra ou a própria Deusa em sua imagem, questionando assim a razão na adoração de ídolos (ELIADE & COULIANO, 2009, p.183).

Ramakrishna teve como um de seus discípulos mais importantes e conhecidos, o filósofo Narendranath Dutta, mais conhecido como Swami Vivekananda. Este, como se viu, foi o pioneiro em propalar o Yoga para o Ocidente, mas como representante do Hinduísmo (e de todo esse “renascimento” indiano) ele não foi “sozinho”, levou na sua bagagem toda a religiosidade da Índia do seu tempo com elementos cristãos, esotéricos ocidentais, científicos e neo-hindus, distintivos da efervescência dos pensadores libertários com quem convivia, principalmente do seu guru, Ramakrishna[9]. Nos comentários de Yogananda (outro importante yogue contemporâneo), sobre o Bhagavad-Gita, está muito claro o sincretismo com a ciência fisiológica, a mística e o Cristianismo, além de uma busca por uma universalidade religiosa que, segundo ele e outros, o Yoga é o seu maior representante nos tempos modernos (KRIYANANDA, 2007, p.47). O modo crítico como estes intelectuais de Bengali trataram as suas escrituras religiosas, marcou profundamente a maneira como o Yoga atual repensou também a fisiologia sobrenatural dos seus tratados religiosos.

Keshab Candra Sem (1838-1884) foi outro importante religioso de Bengali e um dos primeiros a procurar uma universalidade religiosa pelo Yoga. Em meados de 1876, Sem, já convertido ao Cristianismo e também avesso ao misticismo e à idolatria, se encontra com o até então desconhecido yogue Ramakrishna Paramahansa, identificando nele um verdadeiro santo. Do encontro destas figuras do “renascimento” indiano surge mais uma sincrética organização religiosa chamada Nabo Bidhan ou New Dispensation, a qual almejava unir os princípios cristãos, hindus e as tradições místicas ocidentais, forjando uma síntese Neo-Vedanta da Índia tradicional com o Ocidente (ELIADE & COULIANO, 2009, p.183).

Lokmanya Tilak (1856-1920), assim como todos os anteriores, nasce em uma família brâmane. Ele entendia que a religião e a vida cotidiana não eram diferentes, portanto, para se tornar um sanyasa (religioso renunciante), não seria preciso abandonar a sua família. Este pensamento seria uma característica importante que facilitaria a expansão yoguica pelo ocidente, fato tão comum entre os yogues e os praticantes de hoje em dia. Para Tilak, a vida religiosa não consistia em se alienar do mundo cotidiano, pelo contrário, cada um deveria harmonizar a sua existência. Um reflexo disto pode-se ler nos textos do yogue contemporâneo Iyengar (2001), em que para ele “bramacharya é a vida conjugal feliz” (p.38, 57, 62), o oposto do que era definido como bramacharya no contexto histórico-social e religioso da Índia antiga, onde se pregava a absoluta castidade (FEUERSTEIN, 2005, p.282)[10] – ou como se viu com Vivekananda (ver p.114-115).

Tilak graduou-se em matemática, tendo sido um jornalista bastante ativo e adepto das causas nacionalistas indianas. Ele fundou, junto com amigos, a Deccan Education Society, escola com um novo sistema de ensino afiliado com os ideais de independência da época. Em 1903 lança o livro The Arctic Home in the Vedas, em que propõe um modo radicalmente novo de determinação do momento histórico exato dos Vedas, bem mais lógico do que mítico. Também outros livros como o Shrimadbhagwadgeetarahasya, que analisa o Karma Yoga no Bhagavad-Gita, tratado fundamental da tradição hatha-yoguica[11].

Outra figura importante, dentro da educação e da política no movimento nacionalista indiano, é Sri Aurobindo (1872-1950), intelectual que, em Bengala, em 1906, comanda uma revolução contra os ingleses. Durante a sua prisão pelo governo inglês passa por diversas experiências místicas e, depois de libertado, devota a sua vida ao caminho salvífico religioso do Yoga. Entre os seus livros que influenciaram a geração atual de yogues está O Yoga de Sri Aurobindo, Renascimento, Yoga, Mantra e Oração. Viveu até aos setenta e oito anos, tendo a sua atuação política e religiosa sendo muito relevante entre os intelectuais da época.

Os intelectuais e religiosos que se seguiram, buscaram preservar as tradições culturais indianas e divulgá-las ao mundo, mas retirando-lhes toda a carga mítica, mística e “sobrenatural” do Yoga Medieval. Entre as suas conquistas, sempre embasadas nas escrituras religiosas, estão a luta pelos direitos das mulheres, a extinção das castas, da poligamia e das crenças populares religiosas, assim como a obrigatoriedade do ensino da língua inglesa nas escolas (fato este que permitiu um salto qualitativo no ensino para os jovens indianos). Além disto, eles tentaram instituir um Deus único dentro do panteão hindu, tendo sido os primeiros a traduzirem a literatura védica para o inglês, permitindo um debate inter-religioso saudável, ecumênico e crítico.

Foi assim, por meio de uma verdadeira reforma social, política, cultural e religiosa, que a Índia procurou construir e expor a sua nova face ao mundo. Com isto, o Yoga, como um emblema da sua religiosidade, sofreu influências que transformariam o seu sistema de crenças e de práticas sofrendo mutações e propiciando o advento de diversas outras organizações yoguicas, sendo algumas bem mais profanas do que outras. Um dos resultados dessa abertura foi o embate entre o racionalismo pragmático, desse novo pensamento liderado por intelectuais e religiosos reformadores da Índia moderna, e a mística (DE MICHELIS, 2008, p.20-21, 30; ELIADE & COULIANO, 2009, p.183).

Mas os custos da religiosidade yoguica medieval nesta época já não valiam à pena. O secularismo ocidental estava levando a Índia, altamente mística e “mágica”, a não ser respeitada pelo seu colonizador, o que representava, entre outras coisas, o ocidente e os desenvolvimentos industrial e acadêmico. O progresso, segundo Stark e Bainbridge (2008), pode estimular o “descrédito das crenças religiosas tradicionais” (p.397), produzindo novos problemas enquanto resolve outros para que só as religiões tradicionais (no caso o Hinduísmo para o povo indiano) dispunham de compensadores.

A secularização significa a perda de poder por parte das organizações religiosas, o declínio concomitante da coerção em nome da tradição religiosa, o descrédito progressivo das explicações religiosas tradicionais e o abandono, por parte das igrejas-padrão, da parcela da magia que elas previamente ofereciam a seus participantes [no caso aqui da fisiologia sutil do Yoga, sobretudo]. (Ibid., p.399)

Desta forma, o Yoga Medieval, pautado altamente pela fisiologia sobrenatural e pelas crenças populares perde espaço frente ao progresso e o “renascimento” do continente indiano e, com ele, todos os problemas também que o acompanham, obrigando aos yogues da geração moderna (re)construírem a fisiologia das suas escrituras medievais frente aos avanços da fisiologia padrão ocidental que tomavam contato agora.

Os Primeiros Yogues da Geração Moderna

Um dos primeiros yogues da nova geração, discípulo agora de Vivekananda, a se destacar no cenário yoguico atual, foi Sri Yogendra (1897-1989), jovem estudante que, desde cedo, atua como educador em uma das primeiras escolas modernas da Índia. Incentivado pelo seu guru, mescla, ainda em 1917, a educação formal com os preceitos éticos e religiosos ensinados por Ramakrishna. Um ano mais tarde (1918), Yogendra inaugura a primeira organização moderna de ensino yoguico do mundo, com a missão bem clara em difundir a “ciência” do Yoga[12], ao mesmo tempo em que se mantel fiel a sua tradição religiosa. O que foi um artifício importante para a difusão da suas crenças, que ainda lhe serve (DE MICHELIS, 2008, p.23; STRAUSS, 2008, p.62-67).

O Instituto de Yoga de Yogendra, desde a sua fundação se vincula, assim como todas as organizações yoguicas posteriores, ao bem-estar físico, mental e espiritual que o seu método de ensino propaga, bem como à cura de enfermidades como o diabetes, a hipertensão, o estresse, e os problemas cardíacos, ortopédicos e respiratórios[13] (STRAUSS, 2008, p.65).

Outro indiano a fomentar o Yoga que se conhecem atualmente, é Mukunda Lal Ghosh, um destacado desportista que também se alinhou com a ciência e o Yoga. Mukunda nasce em uma abastada família bengalês, ficando mais conhecido pelo seu nome iniciático, Paramahansa Yogananda (1893-1952), e por ser o responsável por fundar as primeiras organizações yoguicas fora da Índia. A sua história se inicia após se formar pela Universidade de Calcutá, onde dedica a sua vida à divulgação religiosa do Yoga. Em 1920, a convite de um congresso com líderes religiosos nos Estados Unidos, e incentivado pelo seu guru, Swami Sri Yutkeswar (1855-1936), ele viaja para Boston com a intenção de proferir uma palestra sobre a Ciência da Religião, e divulgar o método do Kriya Yoga (método yoguico com características semelhantes ao da tradição HY). No mesmo ano, após um ciclo de palestras em diversas cidades norte-americanas, funda a sua própria organização religiosa, a Self-Realization Fellowship (SRF), localizada nos Estados Unidos e hoje com sedes espalhadas por todo o mundo.

Yogananda referia-se ao RY como o “caminho da espinha dorsal” e afirmava que o prana “penetra no corpo através da medula oblonga, na base do cérebro” (KRIYANANDA, 2007, p.50-51).

(...) por meio dos exercícios (de Yoga) mantemos nossa flexibilidade e força da coluna vertebral, assim a circulação (sanguínea) é aumentada e os nervos mantém seus suprimentos de nutrientes e oxigênio (...) os ásanas também afetam os órgãos internos e o sistema endócrino[14].

Segundo relatado na sua autobiografia, o Yoga que trazia ao mundo era um renascimento da mesma “ciência” que Krishna deu a Arjuna (referindo-se ao clássico tratado religioso Bhagavad-Gita), sistematizado por Patanjali (Yoga Sutras) e trazido aos apóstolos por Jesus Cristo. Segundo o mesmo texto, a Libertação pode ser alcançada por meio da cessação dos nossos processos inspiratórios e expiratórios (YOGANANDA, 2009, p.245-254). Assim, tanto a fisiologia padrão e sutil quanto o Cristianismo, recebem grande atenção nos seus trabalhos, práticas e pesquisas. Por outro lado, o seu irmão Bishnu Ghosh inaugura as primeiras Copas Internacionais de Yoga, com competições de posturas e premiação, como se o seu Yoga fosse um novo desporto e apresentado de forma absolutamente profana[15].

Jagannath Ganesh Gune foi mais um universitário indiano, cursando Educação Física em Mumbai, a se entusiasmar com a efervescência nacionalista hindu, principalmente com as idéias de Sri Aurobindo, de Lokmanya Tilak e pelo conceito da Fraternidade Universal do educador físico Rajratan Manikrao (1878-1954), discípulo de Paramahamsa Madhavadas-ji (1800-1921), da tradição religiosa yoguica de Gauranga Mahaprabhu e instituidor do Centro de Cultura Espiritual para Elevação da Humanidade. Gune, mais conhecido como Swami Kuvalayananda (1883-1966), empolgado pelo espírito de renovação cultural, religiosa e social que o seu país vivia, pela possibilidade de investigar academicamente as práticas fisiológicas yoguicas, e com isso aplicá-las gratuitamente à medicina convencional (ocidental moderna) do seu povo, se tornou o pioneiro na sistematização das pesquisas científicas das diversas técnicas físicas do Yoga que se conhecem hoje (ALTER, 2004, p.73-108; STRAUSS, 2008, p.62).

Kuvalayananda inicia suas pesquisas ainda em 1920 e, alguns anos mais tarde, em 1924, inaugura o Kaivalyadhama Yoga Institute, com o intuito de coordenar a ancestralidade do Yoga com a ciência moderna. Em 1929, Kuvalayananda inaugura uma pós-graduação em Educação Yogue para alunos do mundo inteiro, o Gordhandas Seksaria College of Yoga Cultural Synthesis, com uma proposta bem clara, fazendo jus ao pensamento “renascentista” indiano de desmistificar o Yoga por meio das suas análises fisiológicas. A sua revista de divulgação científica, intitulada Yoga Mimansa, se estabelece como a precursora das pesquisas fisiológicas sobre as práticas do Yoga (Ibid., p. 62-67; ALTER, 2004, p.73-108; KUVALAYANANDA, 2005, p.82; Id., 2008, p.6-7).

Em seus livros, apesar da precisão e do volume de pesquisas laboratoriais com as práticas yoguicas e da vontade do Swami Kuvalayananda em desmisitificar o Yoga pela ciência fisiológica padrão, este recorre muitas vezes à fé, à fisiologia sobrenatural das doutrinas religiosas medievais do Yoga (YS, HYP, GS entre outras) para justificá-lo.

[A intenção do Instituto de Kaivalyadhama é] desvencilhar [o Yoga] de toda uma capa de misticismo acumulada ao longo de séculos de transmissão oral (...) Isso só poderia ser conseguido com pesquisa exaustiva em textos e escrituras originais [doutrinas], e por meio de experimentação laboratorial [fisiologia padrão]. (KUVALAYANANDA, 2008, p.2)

Isso não significa que os ateus não possam praticar as posturas yoguicas. Queremos dizer, portanto, sendo todos os outros fatores iguais (doutrina e fé), um genuíno “teísta” poderá praticar os asanas com maiores vantagens que um ateu. (KUVALAYANANDA, 2005, p.50 em notas)

Kuvalayananda e os seus colaboradores investigaram fisiologicamente as implicações das práticas yoguicas como o nauli, o uddiyana e o basti, tendo descoberto as suas atuações positivas, tanto nas pressões intra-pulmonares, intra-torácicas e intra-esofagal, quanto no músculo do diafragma e nos órgãos internos. Uma das descobertas que recebeu mais atenção nessas pesquisas iniciais foi a descoberta do Vácuo Madhavadasa (ver SIMÕES, 2011).

É a primeira vez que a fisiologia do Yoga é descrita com tanta agudeza, e com a possibilidade de aplicação clínica na medicina ocidental. Os seus resultados, antes descritos pelos textos medievais em geral apenas com fins religiosos e portadores de uma fisiologia “sobrenatural” ímpar, podem agora também servir como excelentes promotores da saúde das vísceras abdominais (para casos terapêuticos de dispepsia), da prisão de ventre, dos males do fígado, do baço, do pâncreas e dos rins, além de curar casos de menstruação dolorosa. No entanto, são contra-indicados, algumas técnicas yoguicas, segundo as pesquisas de Kuvalayananda, para as pessoas com problemas circulatórios, pulmonares, apendicite crônica, hipertensão e perturbações abdominais (KUVALAYANANDA, 2005, p.144-145). De certa forma, a partir dos trabalhos de Kuvalayananda, a prática do Yoga começa a ser considerado, nos meios médicos modernos ocidentais como tendo uma possível aplicação terapêutica, fomentando a inclusão dos ásanas, dos pranayamas, dos kriyas e dos bandhas, no que hoje se conhece como Medicina Integrativa e Complementar, possibilitando desvinculá-lo, pelo menos quando aplicados nos hospitais ocidentais, da sua fisiologia sobrenatural.

As primeiras pesquisas de Kuvalayananda publicadas na revista Yoga Mimansa foram muito bem recebidas, não só na Índia, mas também por psicólogos e fisiologistas padrões da Inglaterra, da França, da Alemanha e da América do Norte (ALTER, 2004, p.85). A partir daí, Kaivalyadhama se expande e as suas pesquisas e atuações sociais também. Kuvalayananda provê novo fôlego ao caráter terapêutico que o Yoga sempre teve, mas agora investigado pela fisiologia padrão moderna. Para muitos yogues e leigos, este fato autenticou, pela chancela da ciência, o que até então era considerado apenas como simbólico, primitivo e pertencente a uma fisiologia sobrenatural religiosa.

Outro destaque na consolidação do Yoga considerado Moderno, foi Swami Sivananda Saraswati (1887-1963), um estudante de medicina do Tanjore Medical College e com gosto pelo desporto. Em 1936 ele inaugura o Sivananda Yoga: The Divine Life Society (DLS) na Índia, utilizando-se das pesquisas médicas nas suas práticas, e traduzindo textos como o Bhagavad-Gita com uma evidente abordagem que já mescla a fisiológica padrão com a religiosa do Yoga que professa, flertando com a ciência moderna como todos da sua geração.

Ao lado dos seus contemporâneos mencionados anteriormente, inicia uma nova ressignificação fisiológica dos textos medievais e clássicos, que os seus os discípulos mais adiantados propalam pelo mundo fora. Sivananda (1993), por exemplo, incentiva os seus alunos a abrirem as suas próprias organizações religiosas ( que ele as intitulava de “missões”) e a divulgar esses ensinamentos em outros países. Na sua autobiografia, Sivananda dedica um capítulo aos seus ideais yoguicos, intitulado Minha Religião, sua técnica e disseminação (p.59-74), em que ensina como os seus discípulos devem proceder com as suas próprias organizações yoguicas. Esses seus ensinamentos ajudaram estas como o International Sivananda Yoga Vedanta Centres (1959), fundado por Swami Vishnudevananda no Canadá; o Yoga da Linguagem Oculta (1956), escola desenvolvida pela Swami Sivananda Radha (1911-1995); e o Yoga Integral, desenvolvido pelo Swami Satchiananda (1914-2002), que foi quem apresentou este método, em 1969, aos hippies durante o festival de Woodstock.

Swami Visnhudevananda, por exemplo, tomou conhecimento de Sivananda, aos vinte anos de idade após a sua carreira militar na Índia, por meio de um folheto que difundia o Yoga do seu futuro guru, que dizia que quem praticasse Yoga, filosofia e religião todos os dias alcançaria a auto-realização. Após algum tempo dedicado ao ashram de Sivananda, ele é nomeado professor de Hatha-Yoga da instituição e, depois de dez anos ensinando Yoga, é convidado pelo Sivananda a ir ao ocidente divulgar a sua prática e a sua doutrina. Funda então, em Montreal, no Canadá, a primeira organização yoguica de Sivananda fora da Índia, assim como já o haviam feito outros yogues da sua geração.

No verão de 1961, Vishnudevananda realiza o primeiro retiro com alguns ocidentais e, em 1962, inaugura mais um ashram no Canadá, mas em Valmorin, nas Montanhas Laurentian. Cinco anos mais tarde em Nassau, nas Bahamas, Vishnudevananda expande ainda mais a organização yoguica de Sivananda, o Ashram Yoga Retreat: “O mar e os céus tropicais fazem este lugar ideal para a expansão da mente através da prática da yoga”[16]. Realizaram-se cursos de formação com um mês de duração, como o Teacher´s Training Courses, cuja função é propalar a sabedoria yoguica pelo mundo todo, tanto que o seu site tem uma agenda de cursos onde se pode escolher o país e a língua em que será proferida a aula[17]. A proposta expansionista de levar o Yoga para todos os cantos do mundo é muito forte e nítida, como o demonstra também Strauss (2008, p.67-72).

Sri Turumalai Krishnamacharya (1888-1989) é mais um yogue e médico ayurveda a se destacar na formação do Yoga Moderno. Ele é considerado o “reformador” do Yoga ou fundador do Modern Postural Yoga (NEVRIN, 2008, p.119-139). Krishnamacharya, depois de focalizar os seus estudos, na Universidade de Benares, em Lógica e Sânscrito, volta para Mysore, a sua cidade natal, e se aprofunda no Vedanta. Em 1914 estuda filosofia indiana na Universidade de Patna, mas, em 1924, a pedido do Maharajah de Mysore, uma cidade da Índia, começa a lecionar Yoga até à década de cinquenta. Após a independência da Índia os governos locais trocam de poder e Krishnamacharya perde a tutela do Maharajah. A partir daí, em 1952, muda-se para Chennai (antiga Madras), a quarta maior cidade da Índia, para tratar da saúde de um renomado político. Estabelece-se aí, e professa o seu Yoga até ao final dos seus cem anos de vida[18].

Seus principais discípulos, Indra Devi (considerada a primeira-dama do Yoga nos Estados Unidos), B.K.S.Iyengar (Iyengar Yoga), Pattabhi Jois (Asthanga Vinyasa Yoga) e Desikachar (Viniyoga), fundam as organizações de Yoga considerados os mais conhecidos atualmente no ocidente (SMITH, 2008, p.140-160). O sistema de prática yoguica ensinado por Krishnamacharya se consolidou com os seus livros Yoga Makaranda (1934), Yoganjali (1952), e Yogasanagalu (1973) (DESIKACHAR et.al., 1980, p.281) e a popularização dos seus discípulos no ocidente.

O seu método torna-se bastante popular pelo vigor físico e pela combinação de posturas, de exercícios respiratórios e de contemplação, tudo em uma única prática, criando um Yoga “para quem tem pouco tempo livre”, além de possibilitar certa “liberdade” que permite aos seus alunos construírem a sua “própria” prática (DESIKACHAR, 2006, p.13-36). Segundo Desikachar (2006), a essência dos ensinamentos do seu pai está em adaptar o Yoga ao aluno e não o contrário (p.20), característica que caiu bem ao gosto do impaciente ocidental contemporâneo, mas sem perder a religiosidade devocional do Yoga (SINGLETON, 2008, p.91-92).

A FR sobrenatural do Yoga Revisitada à Luz da Fisiologia Padrão Moderna

Depois de Vivekananda em 1893, outros yogues viriam para os países ocidentais com a intenção de divulgar os seus métodos de ensino e de difundir a religiosidade yoguica, como se viu. Um deles foi Yoganananda e a sua influência e discurso foram importantes e, a sua estadia nos Estados Unidos rendeu-lhe diversas palestras e comentários, entre as quais um artigo publicado no Washington Post, em janeiro de 1927, citando as suas (re)interpretações modernas sobre a fisiologia sobrenatural do Yoga. No referido artigo, o autor faz alusões à mudança química das células do corpo em uma “nova ordenação” dos neurônios, sempre que o “receptor das ondas vibratórias” (referindo-se ao bulbo encefálico) esteja devidamente concentrado e imbuído de devoção pelo yogue durante as práticas religiosas (YOGANANDA, 2008, p.IX). Em Afirmações, livro em que Yogananda procurou correlacionar o poder terapêutico do Yoga por meio, segundo ele, de descrições científicas, investe em uma argumentação sobre a fisiologia cardiorrespiratória para justificar a prática yoguica, “cuja aplicação o ser humano pode alcançar uma experiência pessoal e direta com Deus (...) comum a toda religião verdadeira” no intuito de promover harmonia entre os diversos povos e os países do mundo. Não é apenas ele, mas outros como Iyengar (2001) também fazem frequentes referências a isso.

O pranayama é o elo de ligação entre o organismo fisiológico do homem e sua dimensão espiritual. Tal como o calor físico é o cerne de nossa vida, o pranayama é o cerne do ioga. (p.183)

O Yoga Moderno vai alicerçando-se, segundo os seus emissários modernos, devido a “um conjunto de técnicas científicas utilizadas para alcançar a comunhão com Deus” (Ibid., p.130-131). A sua doutrina baseia-se agora também na fisiologia moderna padrão para, assim como os yogues medievais o fizeram com as outras sabedorias, dialogar (ou ressignificar) com os conceitos fisiológicos sutis de outrora. Desta forma, a fisiologia científica padrão e os tratados religiosos yoguicos se confundem.

Se estimarmos a quantidade de sangue expulsa em cada contração dos ventrículos do coração, soma ao redor de cento e dez mililitros, este órgão move um peso equivalente a oito quilogramas de sangue por minuto. Assim, no lapso de um dia, o coração impulsiona aproximadamente doze toneladas de sangue (...) Estas cifras demonstram o enorme trabalho do coração. (...) O controle consciente do sono – aprender a dormir e despertar com nossa vontade - forma parte do treinamento yoguico que capacita o ser humano em regular os batimentos cardíacos. Quando se é capaz de controlar conscientemente a freqüência cardíaca, se alcança o domínio da morte. (...) (YOGANANDA, 2008, p.134)

(...) a cortisona [principal hormônio do estresse] do ioga é vislumbrar a alma (Iyengar, 2001, p.138)

É evidente aqui uma apropriação da linguagem fisiológica padrão para elucidar a representação sobrenatural do corpo nos textos yoguicos. Assim como Kuvalayananda tentou aliar o valor religioso com o científico do Yoga, Iyengar (2001) também se dedicou às correlações entre a anatomia, a fisiologia e a mística do Yoga. Segundo ele, “ao controlar a respiração, você está controlando a consciência, e, ao controlar a consciência, você dá ritmo à respiração”. Este yogue ainda faz uma releitura moderna do HYP (sutras I-41 e II-2), dizendo que “quando não há movimento nas células, na mente ou em qualquer um dos vasos da alma, prevalece o que se chama de kumbhaka” (p.29, 185)[19]. No entanto, os caracteres fundamentais do Yoga, que fundamentam as suas recompensas não se alteram, pois continua a ser preciso desobstruir os nadis para que prana flua e libere kundalini a ascender pelo sushumna.

O conceito de nadis talvez tenha surgido do relacionamento estreito dos hatha-yogues com a medicina ayurveda (ver p.55-56). Desde as primeiras traduções dos textos religiosos indianos, realizados pela geração atual de yogues, que estes vêm justificando a sua fisiologia sobrenatural e adquirindo papéis mais orgânicos, portanto reais. Este fato mostra uma preocupação para racionalizar a fisiologia religiosa do Yoga, já desde o início do século passado. Assim pode-se entender Sir John Woodroffe, britânico graduado em Direito por Oxford que, depois de alguns anos trabalhando na jurisprudência indiana, se interessou pela religiosidade e pela mística deste povo, e traduziu em 1917, diversos textos tântricos e yoguicos como o Tantra Sastra. Neste livro, Woodroffe (2004) explica os nadis, por exemplo, como sendo nervos, artérias ou eixo cérebro-espinal, alertando que nas escrituras aqueles não possuem características físicas, eles representam canais sutis de energia (p.48-49). Esta representação é produto do seu esforço para tornar lógico o entendimento de uma fisiologia “irracional”, para o padrão de seu entendimento.

No período medieval, as escrituras yoguicas também sofreram transformações evidentes. Basta lembrar os tratados de Svatmarama (HYP), que se comparou a mente (chitta) com o mercúrio, pois “ambos eram instáveis” (ver sutra 26-27 e 96). Em vez da alquimia, é a ciência fisiológica moderna padrão que surge revigorando os textos medievais yoguicos.

(...) aplicando-se fundamentalmente a vontade (tapas [nota minha]), deverá fixar-se a atenção entre sobrancelhas (shambavi mudra [nota minha]); quando se utilizam afirmações do tipo intelectual, o centro da concentração será o bulbo raquídeo (centro da força vital inteligente); e as afirmações devocionais, a concentração se focará no coração (...) Por meio da prática dessas afirmações, adquire-se o poder de dirigir conscientemente a atenção para as fontes vitais da vontade, do pensamento e do sentimento. (yogananda, 2008, p.76)

Concentrar-se, com os olhos fechados, na região do bulbo raquídeo, e sentir que o poder da visão, presente nos olhos, fluem através do nervo óptico para a retina. (...) Fixar o olhar entre as sobrancelhas, imaginando que o fluxo da energia vital se dirige desde o bulbo raquídeo para os olhos, transformando estes últimos em dois focos de luz. Este exercício produz benefícios tanto físicos como mentais. (Ibid., p.114)

Yogananda, desta forma, faz uma releitura do clássico e importante mudra da doutrina medieval do HY, o shambavi mudra, pelo prisma da fisiologia padrão. Isto é o que toda a geração atual de yogues faz atualmente. Em outra obra, Kriyananda (2007), comentando o seu guru Yogananda, volta a se referir ao bulbo (ou medula oblonga) e ao nadi sushumna como a espinha, e prana como energia.

(...) o caminho do despertar divino é, conforme dissemos, a espinha. A energia penetra no corpo através da medula oblonga, na base do cérebro. (...) A energia (...) transita pelos nervos [nadis] (...) até o cérebro, desce pela espinha (...). Quando, por ocasião da morte, a consciência se retira do corpo, a energia primeiro recua das extremidades para a espinha, sobe por ela e sai pela medula oblonga, deixando o corpo. (p.51)

O bulbo ou medula oblonga para Yogananda possui também, um pólo negativo e outro positivo. O primeiro, que corresponde ao ajna chackra, situa-se no próprio bulbo; e o segundo, que o reflete, localiza-se na confluência dos três principais nadis (ida, pingala e sushumna), que ele reinterpreta como sendo os nervos (Ibid., p.51), da região conhecida como shambavi mudra, dentro da anatomia e da fisiologia sobrenatural do Yoga (WOODROFFE, 2004, p.56). A evocação reiterada ao bulbo não se refere à padrão da fisiologia, mas é absolutamente coerente dentro da fisiologia sobrenatural religiosa construída pelo Yoga, por esta região cerebral a ser responsável por inúmeros nervos motores e sensitivos cranianos. Logo, no HYP, segundo Iyengar (2001), o Yoga é prana-vrtti-nirodha (acalmar as flutuações da respiração). Já o YS afirma que Yoga é citta-vrtti-nirodha (acalmar as flutuações da mente) (p.29). Assim, é lícito pensar, dentro da nova racionalidade fisiológica sutil do Yoga, que o bulbo tenha participação direta nesse processo, como afirmam os yogues acima, pois ele também é o centro respiratório pela fisiologia padrão.

[O yogue] pode-se perguntar: o olho espiritual [ajna chackra] é puramente simbólico? Não, é real e constitui, de fato, um reflexo da medula, a partir da qual a energia desce a espinha por três nadis ou canais sutis de força vital [prana]. (...) A espinha é o canal principal por onde a energia flui. O fluxo ascendente da energia [que conduz kundalini] pode ser bloqueado por alguns plexos [chackras] na espinha, de onde ela passa para o sistema nervoso e daí para o corpo, sustentando e ativando os diferentes órgãos e membros. Quando em meditação profunda, o yogue transfere energia do corpo exterior [koshas] para a espinha e a faz subir para o cérebro [último chackra], ele encontra essa passagem bloqueada pelo fluxo externo de energia proveniente daqueles plexos (ou centros, mas que nos tratados yoguicos recebem o nome de chackras). A energia de cada chackra deve ser conduzida para a espinha a fim de prosseguir sua jornada ascendente. (KRIYANANDA, 2007, p.52-53)

Yogananda, na voz de discípulo Kriyananda, continua a sua argumentação questionando-se se a sua descrição é real ou puramente imaginativa, e dá a sua representação dos chackras os plexos, e os nadis, canais da fisiologia sobrenatural do Yoga, associados, pelos yogues atuais, aos impulsos nervosos autônomos e centrais, além de a todo tipo de passagem por dentro do corpo, como o ar, a água, o sangue e aos nutrientes (IYENGAR, 2005, p.274; SOUTO, 2009, p.42). Os chackras também sofreram ressignificações significativas na sua interação com biologia humana. Eles continuam a ser representados nos corpos sutis, mas ganharam correspondências das mais variadas dentro da fisicalidade orgânica da fisiologia padrão, como plexos, glândulas e junções celulares (gap junctions), como se observa nas pesquisas fisiológicas modernas da religião, mas também na voz da doutrina yoguica atual.

Chakras são centros da energia espiritual. Eles estão localizados no corpo astral, mas eles possuem correspondência com centros no corpo físico também. (...) a certos plexos no corpo físico. (SIVANANDA, 2000, p.7)

Mais de dois milênios atrás, Patanjali deu-se conta da importância do cérebro. Ele descreveu a parte frontal como o cérebro analítico, a posterior como o cérebro do raciocínio, a inferior com a sede do estado de graça (o que, a propósito, corresponde às descobertas da ciência médica moderna, segundo a qual o hipotálamo, situado na base do encéfalo, é o centro do prazer e da dor), e a parte superior como o cérebro criativo ou sede da consciência, a nascente do ser, do ego ou do orgulho, o berço da individualidade. (IYENGAR, 2001, p.174)

Por meio (...) das posturas do Yoga, podemos ajudar a suprimir e aliviar a congestão dos nervos ou das vértebras (nadis), facilitando assim o livre fluxo da energia vital (prana). (YOGANANDA, 2008, p.43).

O yogue, segundo Yogananda (2009), “faz circular mentalmente sua energia vital [prana] (por meio das técnicas físicas, kriyas, ásanas, mudras e pranayamas), em direção ascendente e descendente, ao redor dos seis centros da coluna vertebral [chackras] (plexos medular, cervical, dorsal, lombar, sacral e coccígeo)” (p.248). Muitos yogues modernos[20] têm, por puro paralelismo, associado diretamente os centros energéticos da coluna aos plexos da fisiologia científica padrão (ver p.77-78). Mesmo o Swami Kuvalayananda, o mais afinado com a ciência fisiológica padrão dos yogues atuais, afirma que “havendo condições, os chackras poderão ser investigados cientificamente” (SOUTO, 2009, p.46).

Percebe-se que, as aproximações que as escrituras yoguicas modernas se esforçam para estabelecer com a fisiologia padrão, têm ultrapassado as simples analogias anatômicas. Há tentativas de aproximações reais entre as duas linguagens por parte também de cientistas, mesmo admitindo estes que os fenômenos religiosos associados a fisiologia sobrenatural do Yoga não podem ser reduzidos a simples processos físicos (MAXWELL, 2009). Isto não impede que os fisiologistas e os yogues atuais em oferecer novas abordagens sobre os fenômenos subjetivos, argumentando que ignorar as suas possíveis repercussões físicas seria tão contraproducente quanto ignorar os seus aspectos transcendentes dentro das práticas religiosas. Um fato semelhante também ocorre com a fisiologia sobrenatural do Espiritismo brasileiro, que compara, por exemplo, a glândula pineal com os chackras ou mesmo como a sede da mediunidade humana[21].

No plano fisiológico, pingala corresponde ao sistema nervoso simpático; ida, ao parassimpático; e susumna, ao sistema nervoso central. (...) A frieza atribuída a ida (pois, corresponde dentro da representação simbólica da fisiologia do HY medieval como chandra-nadi, ou “canal da lua; e pingala como surya-nadi, ou “canal do sol”) no HYP é explicada, pela ciência moderna, em virtude de sua ligação com o hipotálamo, situado na base do cérebro, e que é o centro responsável pela manutenção da temperatura estável do corpo. Assim, o hipotálamo é o plexo lunar, do qual desce ida, assim como pingala ascende de sua base no plexo solar. (...) Susumna corresponde ao sistema nervoso central, e essa energia divina, produzida pela fusão de ida e pingala, é vista como energia elétrica (kundalini [nota autor]), segundo a fisiologia. (...) Susumna existe em todas as partes do corpo e não apenas na espinha, porque o sistema nervoso central age em todo o organismo (IYENGAR, 2001, p.188-190).

Como se lê acima em um dos textos de Iyengar, que reúne uma série de anotações e transcrições das aulas e das palestras que proferiu na Índia, na Inglaterra, na França, na Itália, na Espanha e na Suíça, entre os anos de 1985 e 1987, é evidente a sua preocupação para associar a fisiologia científica padrão à sobrenatural. Ele utiliza-se de um artifício dialógico comum aos yogues, que é associar as definições físicas de um órgão, hormônio ou região corporal, à fisiologia só existe em suas escrituras sagradas. Por exemplo, como o hipotálamo realmente possui relação com o controle da temperatura corporal dentro da fisiologia padrão, o autor utiliza-se das investigações biomédicas sobre as práticas respiratórias yoguicas (os pranayamas) com os tratados religiosos yoguicos medievais[22]. Algumas pesquisas científicas orgânicas com as práticas respiratórias yoguicas afirmam que, dependendo do pranayama executado, as descargas elétricas nas narinas produzem potenciais elétricos diferentes (ALTER, 2004, p.98-100; KUVALAYANANDA, 2008, p.102-107).

Iyengar (2001) afirma, por exemplo, que o nadi pingala, que na fisiologia sutil do Yoga do séc.XI, está associado ao sol e à narina direita, corresponde ao sistema nervoso simpático (SNS) e possui ligação hipotalâmica, pois como ambos (SNS e hipotálamo) estão envolvidos com as mudanças da temperatura corpórea, ele insiste que são a mesma coisa (p.188).

Para o mesmo Iyengar (2001), toda a doutrina do Yoga está relacionada às posturas. Assim ele diz, que “talvez seu fígado esteja alongado, mas seu estômago está se contraindo, ou talvez o contrário”, e por isso, orienta a que se toquem em “partes relevantes” do corpo, “de modo que se movimentem harmonicamente” (órgãos e músculos físicos), complementando, que “eu toco de leve a parte em que as células estão mortas para que possa ocorrer uma certa germinação e elas ganhem nova vida. Crio vida nessas células por meio do ajustamento [corporal], que efetuo tocando meus alunos”, no que ele intitula de “ajustamento criativo” (p.78).

É preciso registrar que mensagens vêm das fibras, dos músculos, dos nervos e da pele do corpo, enquanto se está fazendo a postura. Você pode aprender. Não é suficiente vivenciar hoje e analisar amanhã. (Ibid., p.80)

Purusa, a alma, é o senhor do corpo, sua morada. O [músculo] diafragma, acima da sede da alma, é representado na história pela base da montanha. A montanha representa o peito, e o movimento de agitar as águas representa a inspiração e a expiração. (Ibid., p.181)

O pranayama está na fronteira entre os mundos material e espiritual, e o [músculo do] diafragma é o ponto de encontro dos planos fisiológico e espiritual do seu corpo (...) Lembre que kumbhaka não é segurar o fôlego; é reter energia [prana]. (Ibid., p.186)

Kuvalayananda (2008), nos seus comentários, faz extensas exposições fisiológicas e anatômicas precisas e condizentes com a biologia humana padrão, e duras críticas às descrições fisiológicas sobrenatural das práticas yoguicas que ele considera como crenças populares, pois não estão pautadas em pesquisas laboratoriais (p.104 em notas). No entanto, frequentemente e ao longo de seus principais livros (Asana e Pranayamas), não deixa de salientar o valor “espiritual” do ásana ou do pranayama descritos pela fisiologia das suas investigações laboratoriais.

A firmeza do pescoço e dos ombros, a vigorosa pseudo-inspiração precedida da mais completa expiração e o simultâneo relaxamento dos músculos frontais abdominais, que antes estavam contraídos, são as três ações que completam a técnica da Uddiyana (KUVALAYANANDA, 2005, p.56).

[Paschimatana é executado quando] Sentado, o estudante mantêm as pernas esticadas e unidas. Inclina então o tronco um pouco para a frente, forma um gancho com os dedos indicadores e segura com eles os grandes artelhos com os dedos assegura não só o completo relaxamento, como também um completo estiramento dos músculos posteriores das pernas. (Ibid., p.120)

Esse exercício é chamado Uddiyana Bandha porque as contrações musculares, acima descritas, permitem a subida da força espiritual (essa força permanece presa na região inferior do abdomen. Uddiyana é um dos diversos exercícios capazes de libertar essa força e de fazê-la subir pela coluna espinhal – em notas). (...) Seu valor terapêutico, nos casos de prisão de ventre, (...) etc., é muito grande. Seu valor espiritual é maior ainda. (Ibid., p.57-58)

A Paschimatana é considerada de grande valor espiritual. São conhecidos casos em que sua prática por cultores espiritualistas permitiu que o praticante ouvisse o Anahata Dhvani, isto é, o som sutil. O tempo de permanência na Paschimatana deve ser criteriosamente regulado. Quando continuado por muito tempo, causará prisão de ventre. (...) Para finalidades espirituais, entretanto, esta Asana deverá ser praticada diariamente por mais de uma hora. (Ibid., p.122)

Como exemplo, selecionou-se do seu livro Asanas alguns trechos que esclarecem a ambivalência criada pelas pesquisas fisiológicas que se querem mostrar, por meio das suas explicações científicas padrão sobre o uddiyana bandha e paschimotanasana (ou paschimatana). Em Asanas, Kuvalayananda dedica um capítulo inteiro ao Estudo científico das posturas yóguicas (p.147-164), dividindo os ásanas em Meditativos e Culturais. O objetivo das posturas Culturais é puramente orgânico, segundo o autor. Kuvalayananda descreve toda a sua tradição da pesquisa fisiológica dos benefícios terapêuticos, em particular do fortalecimento e alongamento da coluna vertebral, assim como as posições anatômicas e as inserções articulares e os principais grupos musculares envolvidos.

Como Iyengar e quase todos os yogues atuais, ele também se preocupa muito com os seus métodos de ensino. No aspecto Meditativo dos ásanas, segundo Kuvalayananda, o alvo é estabelecer-se numa postura confortável para a execução dos pranayamas e dos estados contemplativos do Yoga (samyama), respeitando toda a tradição yoguica desde Patanjali. No entanto, entre as narrações altamente versadas sobre a ciência e as suas observações, surgem demonstrações altamente pautadas na fisiologia sobrenatural religiosa e não na fisiologia padrão científica. Por exemplo, após descrever que os ásanas culturais têm por objetivo fortalecer a coluna, influenciar as áreas cerebrais e produzir “o mais alto vigor orgânico para todo o corpo”, esclarece que isto deve ocorrer para que ambas “possam suportar a interação da força espiritual do kundalini, quando a mesma for despertada pelas práticas yoguicas adiantadas” (Ibid., p.147)[23].

Esse aumento do suprimento sanguíneo e o consequente fortalecimento dos nervos é responsável até certo ponto pelo despertar de Kundalini (...) (KUVALAYANANDA, 2006, p.162)

O que é a kundalini senão um preceito fisiológico sobrenatural fruto do auto-estudo, da fé nas escrituras sagradas e das experimentações da religiosidade ancestral yoguica? É impossível, ainda hoje, elaborar-se uma explicação empírica por meio da fisiologia científica padrão.

Isto levou os yogues atuais a uma situação ambivalente, pois o empirismo da fisiologia científica padrão não explica, por si só, a fisiologia sobrenatural dos nadis, da kundalini e dos chackras. Entre cair na mística “cega” – fato já presente e condenado pela sua geração pelos custos elevados à moral da sua religiosidade e do seu povo – e se debruçar sobre as bancadas de laboratório e na releitura da sua doutrina pela ciência fisiológica padrão, que proporcionaria elevar o nível de sua prática de “primitiva” a científica – fato este inédito – optam (os yogues modernos) pelo segundo. Este foi o caminho mais árduo, pois obrigou toda a comunidade e organizações yoguicas modernas, gostando ou não e, sob o olhar crítico da ciência, a mergulhar na ressignificação da sua fisiologia religiosa[24].

Considerações Finais

Estes yogues modernos e filhos da “renascença” indiana representam o cerne da realidade ambivalente da fisiologia yoguica atual que se tenta revelar. Ao mesmo tempo em que esses yogues se debruçam sobre a decodificação científica das suas práticas e doutrinas, com a precisão de cada músculo, nervo e fibra na execução dos ásanas e dos pranayamas, em conexões sistêmicas com a fisiologia padrão humana e a busca incessante pela desmistificação do Yoga – como Iyengar, Kuvalayananda, Sivananda, Yogananda e outros – eles também se rendem à religiosidade e à devoção à ancestralidade das suas tradições religiosas que lidam com o inefável.

O ambicioso objetivo de Swami Kuvalayananda, (...) era alcançar uma reconstrução espiritual da sociedade em escala mundial. (...) Estes experimentos [científicos] o convenceram de que a antiga ciência do Yoga, abordada pelos métodos experimentais da ciência moderna, poderia ajudar a humanidade a revivescer física e espiritualmente. Esta se tornou a missão de sua vida. (KUVALAYANANDA, 2008, p.2-3)

O que se percebe é que a tentativa para reavivar a religiosidade da humanidade pela explicação fisiológica padrão, como queriam os yogues atuais, revelou práticas yoguicas completamente profanas também. O Yoga, em muitos espaços, foi reduzido a meras técnicas terapêuticas e de condicionamento da educação física ocidental, que, ao mesmo tempo surge, propiciando a sua divulgação, a quebra dos seus preconceitos, e a abertura para uma compreensão mais ampla do seu caráter salvífico, muitas vezes de forma verdadeiramente ecumênica, como se assistiu na exposição sobre alguns gurus, mestres, paramahansas e swamis. Atualmente, utilizam-se muito das práticas antes apenas circunscritas aos meios religiosos, aos hospitais ocidentais para o auxílio dos pacientes com câncer, AIDS, depressão, insônia, ansiedade e tantas outras enfermidades. Os yogues atuais tendem a mostrar as suas organizações religiosas e fisiologia sobrenatural como as mais científicas e, ao mesmo tempo, fiéis às suas linguagens espirituais ancestrais.

Os intelectuais e yogues que participaram ou foram influenciados pelo “renascimento” indiano tiveram a necessidade de se lançar, de forma pioneira, nas ressignificações sobre a sua religiosidade num embate com a fisiologia padrão. Kuvalayananda, por exemplo, orgulhava-se de ter a única instituição yoguica de cariz científico no mundo; Yogendra, por ser o primeiro yogue a fundar uma organização yoguica mundial; Yogananda, por difundir a mensagem que Jesus levou aos apóstolos por meio agora do Yoga; Krishnamacharya, por outro lado, divulgava a sua tradição yoguica como a mais vigorosa fisicamente e que se adaptava ao novo mercado ocidental de devotos que se abria; e T.K.V Desikachar, filho de Krishnamacharya, ao mesmo tempo em que receita[25] ásanas e pranayamas específicos para quem sofre de fibromialgia, a par recomenda a recitação do mantra Gayatri ao nascer do Sol como complemento do tratamento[26]

O Yoga da geração atual, conclui Strauss (2008), parece ter causado uma reorientação fundamental baseada numa “nova teoria para uma antiga prática”, convidando a sua comunidade a exercer a sua religiosidade ao lado também dos avanços da ciência, sobretudo da fisiologia biomédica padrão (p.49-74), o que, como se viu, gerou uma certa ambivalência (CRUZ, 2008, p.13)[27] para os yogues de hoje. Ao mesmo tempo em que tudo isto secularizou o Yoga para alguns praticantes (ALTER, 2004, p.76), causou um “retorno à tradição” devido à “corporificação” excessiva a que o Yoga se submeteu (NUNES, 2008, p.17). Os benefícios trazidos para a saúde orgânica, atestados pela fisiologia padrão, são uma das principais compensações da religiosidade yoguica que sustenta esta como “recompensa”, seguindo a terminologia de Stark e Bainbridge (2008, p.48).

Isto pode ter contribuído para que os yogues modernos construíssem um significado novo para os conceitos fisiológicos sobrenatural das suas escrituras, mas com a preocupação de não as tornar totalmente profanas. Além disto, hipoteticamente, a instituição de um Deus único e um certo senso crítico frente ás suas escrituras, sobretudo, ao sobrenatural da sua fisiologia, permitiu ao Yoga se igualar (ao menos no contexto ocidental) às grandes religiões monoteístas vigentes e disseminando a sua religiosidade ao mundo todo.

Notas

[1] E até hoje essa imagem transmitida por ele continua viva nos meios yoguicos, ver DESIKACHAR (2006), p.10.

[2] “O ioga é uma cultura universal” (IYENGAR, 2001, p.41).

[3] O Yoga é realizado com muito êxito quando se cumprem estes seis requisitos: entusiasmo, determinação, coragem, compreensão correta, fé no guru e abandono do contato público (SOUTO, 2009, p.91-92).

[4] “... I would fain practice the yoga faithfully... To some extent, and a at rare intervals, even I am a yogi” ("... De bom grado praticar o yoga fielmente ... Até certo ponto, e em raros intervalos, eu mesmo sou um iogue”).

[5] Ver TELLES, NAGARATHNA & NAGENDRA (1994); http://www.kdham.com/srd.html, acessado 27/08/2010; http://www.vkendra.org/projects, acessado 27/08/2010; e http://www.sivanandaonline.org/html/sadhanapages/yoga/Yoga.shtm, acessado 27/08/2010.

[6] http://brahmo.org/brahmo-samaj.html; e http://www.iloveindia.com/indian-heroes/raja-ram-mohan-roy.html acessados em 15/02/2011.

[7] http://web.archive.org/web/20091028134700/http://geocities.com/Athens/Ithaca/3440/books.html acessado 26/01/2011.

[8] http://www.aryasamajjamnagar.org/satyarth_prakash_eng.htm acessado em 15/02/2011.

[9] http://www.sacred-texts.com/hin/rls/index.htm; http://www.vedanta.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=19&Itemid=27 acessado em 15/02/2011.

[10] Em contraposição, KUVALAYANANDA (2008), outro expoente do Yoga moderno, sugerindo algumas recomendações ao sadhaka, comenta que “Todos os atos sexuais desnaturais e ilegítimos são pecaminosos. Os excessos, mesmo cometidos em atos sexuais naturais e legítimos, estão no mesmo pé de igualdade” e que “Nenhum ato sexual é saudável, a menos que seja realizado como uma questão de absoluta necessidade fisiológica” (p.226).

[11] http://www.britannica.com/EBchecked/topic/595729/Bal-Gangadhar-Tilak acessado 26/01/2011.

[12] ver http://kdham.com/about/ acessado 17/12/10.

[13] http://www.theyogainstitute.org/about_us.htm acessado 29/11/10; ver também http://www.theyogainstitute.org/shrii_yogendraji_and_the_origins_of_the_institute.htm e http://www.vyasa.org/ acessado 25/08/10.

[14] Grifo meu. Ver http://www.sivananda.org/teachings/fivepoints.html acessado 06/01/2011.

[15] http://www.yogacup.com/ acessado em 15/02/2011.

[16] http://www.sivanandabahamas.org/index.php.

[17] http://www.sivananda.org/yoga-teacher-training/.

[18] http://www.kym.org/ourteacher.html acessado 06/01/11.

[19] Grifo meu.

[20] SIVANANDA (2000), p.8; IYENGAR (2005), p.38; SOUTO (2009), p.45.

[21] Ver http://www.rcespiritismo.com.br ou http://odiarioespirita.blogspot.com/2008/04/glndula-pineal-e-mediunidade.html acessados 17/02/2011.

[22] Ver essas pesquisas em DANUCALOV & SIMÕES (2009), p.249-262.

[23] Grifo meu.

[24] Haja vista a inclusão na maioria quase absoluta de “Formações” em Yoga no Brasil e no mundo, por mais “tradicional” e “purista” que sejam, as disciplinas “anatomia” e “fisiologia” na grade curricular dos seus cursos como da Appana Mind, coordenado pelo Prof.Marcello Árias; da Uni-FMU, pelo Prof.Marcos Rojo; e do Prof.Pedro Kupfer em Santa Catarina, entre tantos outros.

[25] Conjuntamente com a medicação alopática da medicina moderna ocidental, portanto de forma complementar e integrada e não exclusivista.

[26] Retirado de um email enviado a um praticante brasileiro em fevereiro de 2011.

[27] Ver uma discussão aprofundada sobre a “dupla face” da realidade.

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