Introdução
Tanto a moralidade quanto a necessidade de compreensão do mundo para Weber, nascem como movimentos endógenos à racionalização religiosa, por isso que ele, ao procurar as raízes da especificidade da cultura ocidental, tenha dado especial atenção ao estudo comparativo das grandes religiões. Mas qual seria a especificidade moral ocidental? Em que medida essa especificidade teria a ver com o que estamos chamando de ideologia do atraso brasileiro? (p.18-19). Essa é a grande pergunta que percorre o livro em questão organizado por Jessé Souza.
Jessé Souza nos introduz a tese weberiana na primeira parte buscando responder por que nós brasileiros, mesmo sendo colonizados antes dos norte americanos, nos consideramos tão atrasados economicamente. A sua argumentação percorre as diferenças do ethos do católico e do protestante para buscar uma hipótese a sua questão.
Luiz Werneck Vianna, outro autor, se preocupa em desvendar qual a singularidade da formação social brasileira e vai tentar responde-la em vistas as diferenças pelo tipo de colonização que tivemos: um sistema político de cooptação, estamental sobretudo, uma primazia pelo direito administrativo ao civil e um domínio do patrimônio burocrático, aonde os indivíduos são desprovidos de direitos e iniciativas diante do Estado.
Roberto Moreira por sua vez acredita que se criou uma “metafísica” do brasileiro, fruto do pessimismo de um Brasil do século XIX produzindo equívocos a sociedade brasileira. Traçando um verdadeiro “estado da arte”, Moreira enumera diversos sociólogos que construíram um ethos negativo ao brasileiro.
Maria Lucia Maciel em contrapartida busca compreender o “novo espírito do capitalismo” em ambientes que ela chama de “tradicionais” com a Itália e o Brasil, e mostra que não somos “atrasados” ao capitalismo descrito por Weber (ou “atrasado”), mas que construímos um tipo diferente de capitalismo não pautado na ética protestante, mas na “malandragem” do católico, para utilizar a metáfora do título do livro.
Luiz Soares aponta a ambiguidade da “racionalidade capitalista tradicional” descrita por Roberto Moreira e indaga que este pode ser um instrumento de conservação e naturalização das desigualdades sociais.
Angela Paiva disserta e compara as esferas religiosas brasileiras (católica) e norte-americanas (protestante) e as visões de mundo constrastantes que se formaram e influenciaram mutuamente a política de cada um desses países.
I. Jessé Souza
O autor Jessé Souza inicia o livro fazendo uma leitura neo-evolucionista da sociologia weberiana, aonde este localiza a “superioridade” evolutiva ocidental nos campos moral e cognitivo. Ele começa esclarecendo que Weber se interessa não com a essência das religiões, mas em indagar sobre as condições e efeitos desse tipo de ação comunitária. Para Souza, no entanto, há uma junção das perspectivas ontogenéticas (desenvolvimento individual) e filogenética (desenvolvimento societário ou da espécie), baseados na psicologia cognitiva de Piaget assim, ele entende que a racionalização interna da esfera religiosa é uma forma de o ser humano tentar resolver o dilema de sua interação com o meio social e natural, convidando a biologia, a meu entender, a participar dessa compreensão (mesmo que ele mesmo não se atreva a discuti-la abertamente). Esse processo de aprendizado proposto por Weber pressupõe um aumento do grau de consciência e de reflexão em relação à realidade que nos cerca, bem como do grau de autonomia da consciência moral que nele atua (p.20).
No naturalismo pré-animista, inicia Weber em sua construção do “espírito capiltalismo e a ética protestante”, o elemento religioso ainda se encontra entranhando em outros aspectos da vida cotidiana. Neste, as coisas e significados ainda não se separaram e o "sentido do mundo" ainda não aparece como problema. O naturalismo pré-animista baseia-se na crença de que as criaturas determinam e influenciam o "comportamento" das coisas ou pessoas habitadas pelo "carisma", uma cognição mágica. Esse é o núcleo da crença nos espíritos, algo indeterminado e material.
A etapa seguinte, é a imaginação de uma alma que propicia a transição do pré-animismo em sentido estrito. Os magos aqui acreditam que há uma separação entre a ideia de entidade sobrenatural e os objetos concretos. O próximo passo no desenvolvimento cognitivo implica na passagem do naturalismo ao simbolismo. Este pressupõe uma crescente abstração dos poderes sobrenaturais, dispensando, assim, qualquer relação com objetos concretos. O simbolismo propicia ao sujeito pela primeira vez uma forma de controle sobre o objeto da experiência por meio de um ato de conhecimento, levando à superação da atitude naturalista do ser humano por força do conceito em ralação à coisa e o seu meio. (p.21)
Um animal ou o ser humano pré-religioso podem apenas resistir passivamente à experiência do sofrimento e de outras limitações impostas pelas suas condições de existência. O ser humano religioso, ao contrário, pode, através de sua capacidade de simbolização, de certa forma "transcender e dominar" conseguindo, desse modo, uma liberdade em relação ao seu próprio meio impossível no passado.
Weber nos diz que o surgimento da crença em poderes sobrenaturais (almas, deuses e demônios) possibilita a constituição da esfera ou do campo de ação religioso. Agora, não há mais distância entre os seres humanos e as suas divindades nessa fase de desenvolvimento, pois no momento ritual "o qualquer hora" transforma-se "no agora". No entanto, a ausência da distância faz surgir a "duplicação" entre o mundo das coisas e o mundo dos poderes sobrenaturais, denotando a existência da concepção de mundo monista (p.21-22).
O próximo passo pressupõe a concepção de mundo dualista (específico das religiões de salvação) que distingue o mundo mágico do ser para o mundo do deve ser, que impõe tabus e o início de uma ética religiosa. Ao invés de uma simples duplicação do mundo mágico para a efetiva dualidade, a esfera transcendental criada pelo dualismo pressupõe um outro mundo (um mundo especificamente religioso ou sagrado) e essa criação contrapõem-se à realidade empírica. Mais ainda, a esfera transcendental (o além) passa a ser a "verdadeira" realidade e o mundo empírico, antes mágico, se transforma em um "mundo de passagem" pelas religiões orientais e como “reino do pecado” pelas religiões de salvação ocidentais (p.22).
O interessante aqui ressaltar é a aproximação que Weber faz das religiões orientais (no qual o Yoga, o meu objeto, faz parte) das religiões de salvação ocidentais, pois na virada do período histórico prémoderno yoguico para o moderno, por exemplo, os yogis (sobretudo no início do século XX) conseguem espaço nas sociedades católicas, dentre outras razões, talvez por similaridades de suas propostas de salvação que podem, a partir de Weber, encontrar explicação. Mas isso ainda carece de mais estudos que demonstrem tais aproximações.
O sofrimento agora (a partir de uma visão dual de realidade, no sentido da criação de um mundo espiritual e outro empírico) passa ser valorizado juntamente com um sentimento impulsionador fundamental da ação religiosa, ao contrário que acontecia nas comunidades arcaicas aonde os doentes e sofredores por exemplo, eram tidos como legitimamente punidos pelos deuses e, portanto, objetos de ódio e desprezo. A religião para os indivíduos arcaicos servia ao desejo dos poderosos e saudáveis, segundo Weber, pois viam o seu poder e saúde (neste mundo) legitimando a própria felicidade.
Com o novo sentido de sofrimento, agora como sintoma de felicidade futura destinada a um outro mundo (“espiritual”), abrem-se as portas para a conquista do imenso público de sofredores e oprimidos em geral que esperam a felicidade, a prosperidade e a saúde em um outro mundo agora. Cria-se aí uma "teodicéia do sofrimento", aonde apenas os especialistas religiosos possuem a chave para a cura das almas, em geral vinculados aos interesses materiais dos sacerdotes aos ideais e necessidades da plebe (p.23). Assim, os ricos agora precisam buscar outras fontes de legitimação da sua condição como por exemplo, o “Carisma do sangue”. Os sofredores, ao contrário, saem em busca da ideia religiosamente motivada de uma "Missão" confiada especialmente a eles - como o “Céu”, o “Nosso Lar”, “Kaivalya”, “Moksa” e “Nirvana” (p.23-24) ou à espera de de um Messias.
Com a concepção de mundo dualista, por força da distinção entre o sagrado deve ser e o profano mundo do ser, constituem-se aí, duas esferas concorrentes e paralelas, abrindo espaço para uma "rejeição religiosa do mundo" na medida em que o elemento empírico da realidade profana passa a ser desvalorizado pelo deve ser sagrado. No Yoga isso pode ser visto refletido, por exemplo, no desapego dos sadhus que andam pelas florestas e cidades nus e distribuindo bençãos, curas e orações em troca de abrigo, subsistência e esperança aos indivíduos “normais” que também buscam alcançar tal dádiva divina e espiritual.
A forma como o racionalismo ocidental (protestantismo ascético) lida com o seu dualismo, para Weber, resulta em sua forma peculiar de religiosidade, pois ao contrário do dualismo oriental, a ênfase ocidental é potencialmente mais ética do que ritualística. Ao invés de refugiar-se do mundo como os católicos e orientais, os profetas éticos do judaísmo antigo são os primeiros indivíduos a libertarem-se do "jardim mágico" e desenvolverem efetivamente uma lei prática e cotidiana de viver "dentro do mundo" (p.25-26). O que está em jogo em termos de desempenho cultural é uma primeira experiência histórica de moldar eticamente o mundo e, de forma consequente, transcender o dualismo religioso por meio da sua realização prática na sociedade. Aqui Weber deixa claro a semelhança entre os católicos e os religiosos “orientais”, em nosso caso específico, os yogis modernos no encontro com o mundo capitalista moderno e como eles conseguiram se adaptar a esse novo modelo político, econômico e biomédico (ver SIMÕES, 2011).
Segundo a lei da predestinação protestante apenas alguns indivíduos são eleitos para a vida eterna, sem que se possa ter acesso aos motivos que levaram Deus a fazer tal escolha; assim, há um abismo intransponível entre Deus e os seres humanos. Já para o Oriente, o caminho da salvação é individual, mas cada ser humano é responsável pelo seu, de forma que Deus é algo imanente. Para o Vedanta Advaita (texto seminal do Yoga dito prémoderno ou Hatha Yoga) por exemplo, o corpo é visto de forma não dual (não há uma separação entre Deus e o devoto), assim os rituais e as experiências advindas dele refletem-se como os ecos da alma, e por fim de Deus. O caminho da “salvação ocidental” (leia-se protestantes ascetas), por outro lado, é o da ética, e do Oriente e católicos pelo processo ritual para transcender o dualismo entre o sagrado e o profano. Para o protestante, então ao contrário do católico e do yogi, surge uma insegurança (medo) insuportável, no entanto, a doutrina da "certeza da salvação" (onde o sentido sagrado ao trabalho intramundano é intrepretado como o meio para a glória de Deus na Terra) os alivia desse peso (em parte, digo isso, pois o caminho para Deus é tão - ou até mais - difícil quanto ao do católico ou do devoto “oriental”).
Um outro efeito, talvez o mais importante, é a eliminação de toda mediação mágica ou sacramental na relação entre Deus e os indivíduos para o protestante (p.26-27); assim, a noção da vocação ganha mais do que um simples "sinal de salvação" mas como um sinal de salvação a partir do seu desempenho diferencial no trabalho “terreno” ou profano. Ao contrário da ascese católica e oriental, que representa uma fuga do mundo (nos termos de Weber), temos aqui uma ascese intramundana que direciona toda força psicológica dos prêmios religiosos para o estímulo ao trabalho segundo critérios de maior desempenho e eficiência possíveis. Daí a associação da ética protestante com o capitalismo como fez Weber.
II. Luiz Werneck Vianna
Apenas o Ocidente consegue superar os limites de uma concepção de mundo tradicional, bem como os da forma de consciência a ela correspondentes. A aquisição de uma consciência moral póstradicional é o que está em jogo na passagem da ética da convicção (típica de sociedades tradicionais legitimizadas religiosamente segundo uma moral substantiva) para a ética da responsabilidade; ética esta que pressupõe um contexto secularizado e a subjetivação da problemática moral. Essa passagem é "espontânea" apenas no Ocidente e o seu produto mais acabado é o indivíduo capaz de criticar a si mesmo e a sociedade em que vive. Esse indivíduo liberto das amarras da tradição é o alfa e o ômega de tudo que associamos com modernidade ocidental, como mercado capitalista, democracia, ciência experimental, filosofia, arte moderna, etc. (p.28).
Weber, por exemplo, relativiza a Revolução Francesa pois nos diz que, apesar do alvoroço que produz, não se compara a uma verdadeira revolução da consciência, como a do protestantismo ascético.
Instituições não se derrubam pela violência ou pelo sangue da vingança e do ressentimento. Uma real mudança institucional advém da conversão dos corações e mentes das pessoas (p29).
No final do séc.XIX por exemplo, enquanto o Brasil dava os primeiros passos para a reformulação do arcabouço social herdado do período colonial, os EUA (país “modelo” do protestantismo ascético) estavam se tornando uma das maiores potências industriais do planeta. Havíamos sido colonizados antes dos EUA, tínhamos uma dimensão continental semelhante (assim como uma fronteira interna e um padrão de povoamento igualmente comparáveis) e uma população que também crescia com a maciça imigração européia vertiginosamente, então por que éramos tão pobres e atrasados e eles tão ricos e modernos? Essa pergunta impunha-se para a sociedade e academia quase que por si só neste período histórico e social em meados de 1900 (p.31-2).
Para os Protestantes calvinistas (EUA) a vida é baseada na ética do trabalho, no aperfeiçoamento moral e no pragmatismo econômico, já para os Mozombos (filho do português nascido no Brasil), semelhante ao modelo de “Homem Cordial” cunhado por Holanda, seria um individualismo personalista, em busca de prazeres imediatos, descaso por ideias comunitários e de longo prazo. A Monarquia Portuguesa seria patrimonial, estamental e centralizadora, enquanto a Inglaterra repelia a centralidade burocrática e buscava o jogo de interesses da sociedade. As seitas protestantes, ao contrário da Igreja católica (modelo religioso brasileiro), pressupõe a associação voluntária do membro adulto a partir de qualificações éticas adquiríveis individualmente, ao contrário da Igreja, em que o pertencimento é presumido desde o nascimento (p.48).
As seitas para Weber ajudam a produzir o indivíduo (e o individualismo) moderno (ex.clubes, universidades, associações e sociedades), pensamento em vigor ainda hoje. Isso estimulou a constituição das cidades ao invés de povoamentos rurais (predominante no Brasil até algumas décadas atrás). A Igreja, por sua vez, hierarquiza e elitiza seus membros aceitando e recebendo todos os indivíduos tal como são e estabelecendo entre eles uma hierarquia a partir do grau de espiritualidade e virtuosismo possível a cada qual em termos de vida cristã.
A ambiguidade da escolha protestante é o dualismo e a intolerância entre os “puros” (que fazem parte da minha seita) e os “impuros” (sectários de outras seitas ou de nenhuma) (p.50). Weber descreve uma ética da não fraternidade como típica do ascetismo protestante (p.52) daí, talvez o déficit nas questões de reconhecimento e portanto, na dimensão simbólica do reconhecimento do outro e não propriamente na dimensão socioeconômica de redistribuição. Dessa forma, as sociedades protestantes procuram “compensar” um déficit simbólico com a moeda econômica quando os problemas possuem dimensões distintas.
Em uma palavra, Luiz Viana nos chama a atenção para a importância de respeitarmos os modelos societários exemplares e absolutos, pois as escolhas culturais, assim como as individuais, implicam em ganhos e perdas (p.53). Weber, exemplifica Viana, tem sido convocado invariavelmente para explicar o atraso do Brasil, mas esquecem-se de que há uma sigularidade da formação social brasileira. Na interpretação social comum acadêmica, diz o autor, Weber parece apontar que o atraso do Brasil é resultante de um vício de origem em razão do tipo de colonização a que fomos submetidos (Patrimonial Ibérico), marcado pela autonomização do Estado em relação à sociedade civil brasileira. Isso significa dizer que os interesses privados foram abafados e a livre iniciativa inibidas, comprometendo assim a história das instituições com concepções organicistas da vida social e levado à afirmação da racionalidade burocrática em detrimento da racional legal.
Ainda segundo essa versão, a ausência do feudalismo na experiência ibérica no Brasil aproximaria a forma patrimonial do nosso Estado à tradição política do Oriente, onde não se observariam fronteiras nítidas a demarcar as atividades das esferas pública e privada (p.175), onde mais uma vez se invoca a aproximação da formação ética lusobrasileira com a indiana. Não seríamos então, propriamente um caso Ocidental, uma vez que aqui o Estado por enterceder aos seus prórpios grupos de interesses mais do que em face à sociedade civil estava empenhado na realização de objetivos próprios aos seus dirigentes, enquanto a admnistração pública, vista como um bem em si mesmo, é convertida em um patrimônio a ser explorado por eles.
Assim, o capitalismo brasileiro (originário dessa “metafísica” de um país menor e com indivíduos preguiçosos anteriormente descrita) seria politicamente orientada em uma modalidade patológica de acesso ao moderno, implicando em uma modernização sem prévia ruptura com o passado matrimonial, o qual continuamente se reproduziria na medida em que as elites identificadas com ele deteriam o controle político do processo de mudança social favorecendo assim, a preservação das desigualdades sociais arraigadas no país (p.177). Falta uma tentativa, segundo Viana, de difusão do “capitalismo como estilo de vida” no Brasil, pois os agentes sociais no Brasil ficaram confinados ao horizonte da esfera privada, beneficiando-se tanto do “atraso” (como realizar a produção do excedente a partir de relações de dependência social) quanto do “moderno”, abdicando-se do programa de radicalização do liberalismo.
III. Roberto Moreira
O pensamento de que a falta de uma ascese puritana no Brasil não nos permitiu acesso à uma ética do trabalho e uma racionalidade capitalista pode ter nos conduzido a equívocos, salienta Roberto Moreira. O sociólogo Paulo Prado, em “Retrato do Brasil” (1928), construiu uma “metafísica brasileira” no qual a tristeza, a luxúria e cobiça seriam o ethos do brasileiro que segundo Moreira, seria fruto do pessimismo característico do país do séc.XIX. O sociólogo Viana Moog em “Bandeirantes e pioneiros” (1954), propõe saber os motivos do contraste entre o progresso dos EUA e o atraso brasileiro (p.202). Para ele, a miscigenação seria um traço de vantagem para nós por atenuar os conflitos raciais. O autor também vai buscar na diferença religiosa as explicações que procura.
Os iberos-americanos como os brasileiros, foram conquistados e colonizados por um povo mediterrâneo, católico, barroco e latino que talvez não tenham internalizados completamente o desencantamento do mundo por terem rejeitado no passado as implicações últimas das revoluções religiosas e científicas e assim, não puderam experimentar plenamente seus resultados em termos de individualização e utilitarismo (p.203-204). Para Richard Morse (1988), os pensadores ibero-americanos têm se penitenciado indevidamente quando lamentam a incapacidade de transformar os paradigmas intelectuais do Ocidente moderno em novas sínteses culturais, pois o que se observa é a coexistência desvinculada de ideias do que uma matriz de pensamento e sentimento dotada de extraordinária capacidade de autorrenovação e de articulação ante o impacto dos paradigmas estrangeiros (p.204).
Jessé Souza (2005) entende que Weber não tenha privilegiado o racionalismo anglo-americano como superior ao ibero-americano ou qualquer outro, como se viu. Ele acredita na neutralidade valorativa em Weber e os racionalismos analisados (p.205). A ideia do “Homem cordial” de Holanda como inverso perfeito do modelo weberiano ainda ecoa como problema para nós brasileiros em nossa autoridade moral para fazer escolhas, que possui suas raízes tanto no colonialismo quanto no imperialismo que persiste ainda hoje em tempos de globalização econômica (p.207). O ponto principal para Souza reside na confusão feita pelos pensadores brasileiros, como Morse e, em parte também por Weber (embora cada qual por motivos diferentes) entre racionalismo ocidental, protestantismo ascético e conquistas da modernidade como a democracia, a ciência e a influência econômica. O protestantismo deveria ser visto apenas como um entre outros caminhos dentro da herança ocidental, a qual produziu a moralidade individual na passagem da ética da convicção para a ética da responsabilidade, cuja gênese Weber vai buscar no judaísmo antigo.
José Merquior (1972) em “Saudades do carnaval: Introdução à crise da cultura”, observa que no substrato religioso do povo brasileiro ainda sobrevive o senso do sobrenatural retardando nosso desencantamento do mundo mundo (p. 208). Somos, continua, “ocidentais retardatários”, uma sociedade rarefeita da alta modernidade e deliciosamente inautêntica sob o ponto de vista do Ocidente anglo-americano (p.209). A socióloga Maria Lúcia Maciel, por exemplo, busca compreender o “novo espírito do capitalismo” em ambientes tradicionais (como o da Itália, que a autora entende semellhante ao capitalismo brasileiro) para se pensar, como matriz metodológica, os limites e as possibilidades da inovação no Brasil, que segundo ela, possuem pontos de vistas culturais semelhantes, a que chama de “tradicionais”. Hoje é um período diferente do mundo que Weber descreveu (e conheceu), completa. Há portanto, uma nova racionalidade para um novo paradigma da modernidade.
Segundo Weber, as racionalidades tradicionais seriam adversas ao desenvolvimento e à modernização do capitalismo por serem patriarcais (costumes arraigados), vinculados ao privilégio (principalmente à família), possuíriam relações de fidelidades feudais ou patrimoniais de “assistência doméstica” (ex. da Itália como a FIAT, máfia, partido democrático cristão). No entanto, para Maria Maciel, são justamente a criatividade e a participação comunitária, características desse tipo de racionalidade que hoje se adequariam ao novo modo de pensar capitalista.
O “familismo” italiano seriam altamente solidários e leais entre os seus e responsáveis pela formação cidadã comunitária, o progresso econômico e social deste país (p.217). As consequências negativas seriam a maior burocracia e “loteamento” dos aparelhos do Estado que interferem na competência e profissionalismo pelo “apadrinhamento”. No entanto, a sua prosperidade atual baseia-se no pluralismo de iniciativas heterogêneas que a inexistência, omissão e inépcia do Estado conferiram aos cidadãos italianos maior “competência” aos desvios, improvisações e soluções específicas que talvez não caberiam em outro tipo de racionalidade capitalista. Isso, continua Maciel, envolve maior tolerância (não exclusão), participação e o desenvolvimento de um sentimento de “pertencimento” aonde a lealdade e a fidelidade são fatores de dedicação e, consequentemente de produtividade para essa “racionalidade capitalista tradicional” (p.220).
Mas a Itália (assim como o Brasil e colocaria também a Índia) não pode ser tomada como modelo pronto e acabado, porque a própria ideia de “modelo” implica em ignorar as especificidades históricas e culturais de uma realidade social das quais não podem ser transplantadas para outras sociedades (p.219), pois não há uma “linha de produção” ou “manuais de procedimentos” que dêem conta de explicar a complexidade orgânica presentes dentro desta mentalidade capitalista. A relação de menor impessoalidade dentro da empresa implica hoje em um “novo paradigma” tecnoeconômico ou espírito capitalista e maior estabilidade no emprego.
Weber diz que as culturas católicas e as religiões orientais não seriam propícias ao desenvolvimento do capitalismo[1]. Assim, as transformações do capitalismo contemporâneo encontram mais afinidades com outras éticas e racionalidades (orientais e católicas) do que as culturas originárias de sua formação protestante ascética (p.220). Há no protestantismo ascético uma repressão dos elementos afetivos e sentimental da personalidade em nome do sucesso da empresa mundana, algo que para o capitalismo contemporâneo deixa de ser fator ou critério de pertença ou identidade, haja vista as gerações que nascem em um intricado mundo das redes sociais digitais.
O “jogo de cintura” e o “jeitinho brasileiro”, tão parecido ao modelo descrito pela autora na Itália, afinam-se com a agilidade e a flexibilidde na empresa moderna contemporânea (p.221). O espelho de próspero dos EUA, sobretudo como “ideal” ao brasileiro, tem nos impedido de ver criticamente uma imagem do “Homem Cordial” sem a negatividade absoluta do atraso e do anacronismo e o histórico não reconhecimento de valores positivos na nossa herança ibérica tem prejudicado o exame lúcido dos limites e das possibilidades do desenvolvimento brasileiro com todas as suas desigualdades, contradições e ambiguidades (p.221). Temos, potencialmente, conclui a autora, o poder de um desenvolvimento alternativo.
IV. Roberto da Matta
Roberto da Matta em “Você sabe com quem está falando?” (uma adaptação de Louis Dumont, “Homos Hierarchicus” sobre a sociedade indiana), numa clara comparação entre os indianos e os brasileiros, mostra que a humanidade não é naturalmente igual e composta de indivíduos independentes mas ao contrário, as pessoas são diferentes e ocupam naturalmente níveis diferentes de poder e de relevância social. Ele ainda aponta duas faces desse modelo “racionalista”, a submissão e resignação de um lado e a responsabilidade de proteger e providenciar bens de todos os tipos (simbólicos, religiosos e/ou econômicos) por outro (p.227).
Essa ambiguidade por ser lida na “Teoria dos Klesas”, proposta soteriológica do Yoga, que propõe a “salvação” do sofrimento humano na atenuação nos comportamentos de apego, aversão, medo da morte e orgulho. Por um lado, isso pode conduzir a maior grau de desapego, compaixão, fé na vida e humildade (o inverso dos Klesas), mas também conduzir os seus cidadãos a uma maior resignação à uma pretensa condição inferior pelo paradigma dogmático da doutrina yogi, como indivíduo “impuro” ou de casta inferior desde o seu nascimento (que mesmo proibido constitucionalmente ainda vigora no ethos do povo indiano).
Esse sentido híbrido da ambiguidade, característica da “racionalidade capitalista tradicional”, é instrumento funcional para a conservação e a naturalização da desigualdade, como dissemos, assim como, para a legitimação do darwinismo social. Para a massa, entretanto, a duplicidade de mensagens funciona opondo obstáculos à melhoria da autoestima, da cooperação social e da participação política (p.231), como o exemplo da criança pobre que assiste na TV e recebe mensagens oficiais de igualdade e individualidade vigente no país.
Pela TV, a criança será convidada e de forma universal, ao consumo (imagem construída de uma sociedade alfuente e inclusiva e aberta a todos que trabalham). No entanto, ambivalentemente, assistirá a mãe empregada doméstica todos os dias subir pelo elevador de serviço, almoçar sozinha na cozinha, trabalhar sem carteira assinada, ir de ônibus ao trabalho e etc. Há toda uma gama cotidiana imensa de rituais hierárquicos (p.230).
V. Angela Randolpho Paiva
A autora Angela Randolpho Paiva estudou as esferas religiosas brasileiras e norteamericanas entre o que Weber chamou de “afinidades eletivas” (p. 256). Para ela, o hibridismo fortalece e incentiva a imaginação criativa da população na resolução de problemas e de práticas políticas, assim há uma dupla mensagem na linguagem ambivalente da cultura brasileira (p.232). Segundo Weber, como vimos, a racionalização da ética ascética protestante levou a secularização e ao desencantamento dos EUA por parte da sua população.
Os católicos ibéricos e os protestantes ascéticos, então, seriam os tipos ideais de visões de mundo religiosamente contrastantes (p.258) e a ideia de “salvação” do mundo protestante (Calvinista, sobretudo) implica que o “chamado” abre os caminhos para o compromisso responsável e impessoal. Foram abolidos, dentro deste paradigma, os canais de mediação com Deus diretamente e o fiel puritano passa a estar em completa solidão na conquista da Graça, sendo o único responsável portanto, pela própria salvação, restando a ele apenas “a palavra de Deus” e o trabalho profano como referência de “caminho correto” (p.258).
No católico, por outro lado, a expectativa da Graça é esperada tanto ao injusto (impuro) quanto ao justo (puro). O católico não se sente responsável por sua ”salvação”, pois é de responsabilidade eclesiástica e a liberdade da consciência do católico resume-se na obediência ao Papa e à hierarquia eclesiástica. Assim, a “salvação” do protestante advém da sua ascese cultivada pelo trabalho para que ele possa ser escolhido e para os católicos, pela absolvição (p.259). Isso contribuiu para que a responsabilidade individual fosse melhor executada no racionalismo protestante e transformações de ordem paternalista aos católicos, dessa forma, a profissão como “vocação” inseriu o indivíduo protestante no mundo. Ele, então, não separa o sentir religioso da vida diária, pois é uma conduta que Weber entendeu como “metódica-racional” e que levou aos extremo a racionalização do mundo, contribuindo na implantação do ideal capitalista (calvinistas, pietistas, metodistas e os batistas como ex.) (p.259).
Segundo Weber, os católicos não conseguiram levar tão longe a racionalização do mundo por não terem eliminado por completo a ideia da magia para a “salvação”, para eles então o exercício da fé permanece numa relação de afastamento ou deslocamento do mundo (p.260), comum também aos indianos. Os católicos e indianos, podemos dizer, são avessos à racionalização do mundo, justamente o inverso dos protestantes (interessante lembrar foi justamente esse tipo de pensamento racional que colonizaram a Índia). O exemplo brasileiro desse fato está no envolvimento dos católicos em movimentos rurais e na Teologia da Libertação, quase uma ideologia “contra” o capitalismo.
A ideia de “salvação” protestante, assim, reside na responsabilidade pessoal e impessoalidade nas relações sociais e eliminar o sentido de irmandade do mundo orgânico católico (p.261), e a ideia de “vocação” protestante repousa no envolvimento do fiel no mundo, pois a realidade é vivida no mundo, por isso a livre associação de seitas (protestantes e suas “versões” pentescostais e neopentescostais) com a concepção de “pertencimento”, contribuindo dessa forma, para a atividade eletiva da democracia. Isso fomenta, ao racionalismo protestante capitalista, a pluralidade religiosa com a proliferação das diversas denominações protestantes com uma “religião privatizada” e associação voluntária (p.262). Dessa forma, entende o autor, religião e política vivem de acordo sob o ponto de vista protestante mas não em situação de dependência (p.262).
Os católicos, por sua vez, vivem “fora do mundo” com a manutenção de mundo mágica (ou se é um cidadão ou um “santo”). Por isso, argumenta Angela Randolpho Paiva, o engajamento católico brasileiro nos movimentos contra o Estado (CEB’s e etc) ou no sentido de obediência e conservadorismo, pois no mundo católico há uma ausência de conflitos, obediência/submissão, respeito à hierarquia e uma busca harmoniosa do todo orgânico.
Conclusão
Esses fatores descritos acima sobre os católicos contribuíram para um ajustamento ao desenvolvimento de práticas sociais fechadas e desiguais no contexto mais amplo impossibilitando uma democracia mais pluralista, ao menos no início da nossa colonização. Fica claro pela leitura dos autores acima uma busca por desligitimizar o paradigma ainda vigente e em franca época de globalização, da superioridade capitalista racional ética do protestante ascético (EUA) como superior com relação ao racionalismo capitalista do católico ibérico (Brasil), pois ambos possuem uma ambivalência intrínseca do próprio ser humano e esse paradigma (ideologia ou “metafísica” de atraso brasileiro) coloca-nos como um ser patológico impossibilitados de acessar ao modelo de “moderno” imposto.
No estudo como objeto a Itália, como paradigma racional católico de capitalismo, fica evidente que não somos atrasados mas uma nova forma de viver o “espírito capitalista” onde a criatividade, o pluralismo de iniciativas heterogêneas, os desvios, a improvisação e o “familismo”, ao mesmo tempo em que podem manter a desigualdade social e a submissão hierárquica, podem também incentivar e fortalecer a ausência de conflitos, a imaginação criativa da população na resolução de problemas e de práticas políticas, haja vista o movimento de não violência liderado por Gandhi (considerando a Índia, como um país neste mesmo “espírito” capitalista “tradicional”). Uma das razões do conformismo pelo papel “tupiniquim” do brasileiro talvez resida nos resquícios que o pensamento “mágico” de mundo seja sinônimo de atraso cognitivo, mas vê-se, por outro lado, contemporanemente uma luta pelo consumo consciente, visão de mundo menos utilitarista, ideiais absolutamente avesso à racionalização “reducionista” do capitalismo “protestante” e muito mais cooperativo e solidário, característica, pelo que se viu, fruto do capitalismo “católico”.
Referência
SOUZA, J. (org.). 1999. O Malandro e o protestante : a tese Weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília, Ed. UnB.
SIMÕES, R. 2011. Fisiologia da Religião: Uma análise sobre vários estudos da prática religiosa do Yoga. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Notas
[1] Interessante notar que o Movimento religioso “Nova Era”, claramente contra ao espírito consumista do capitalismo, surge nos EUA, talvez por parte de indivíduos descontentes com o tipo de racionalismo ético protestante. Dessa forma, muito mais afeitas a uma visão de mundo “encantada”.