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Introdução

Tanto a moralidade quanto a necessidade de compreensão do mundo para Weber, nascem como movimentos endógenos à racionalização religiosa, por isso que ele, ao procurar as raízes da especificidade da cultura ocidental, tenha dado especial atenção ao estudo comparativo das grandes religiões. Mas qual seria a especificidade moral ocidental? Em que medida essa especificidade teria a ver com o que estamos chamando de ideologia do atraso brasileiro? (p.18-19). Essa é a grande pergunta que percorre o livro em questão organizado por Jessé Souza.

Jessé Souza nos introduz a tese weberiana na primeira parte buscando responder por que nós brasileiros, mesmo sendo colonizados antes dos norte americanos, nos consideramos tão atrasados economicamente. A sua argumentação percorre as diferenças do ethos do católico e do protestante para buscar uma hipótese a sua questão.

Luiz Werneck Vianna, outro autor, se preocupa em desvendar qual a singularidade da formação social brasileira e vai tentar responde-la em vistas as diferenças pelo tipo de colonização que tivemos: um sistema político de cooptação, estamental sobretudo, uma primazia pelo direito administrativo ao civil e um domínio do patrimônio burocrático, aonde os indivíduos são desprovidos de direitos e iniciativas diante do Estado.

Roberto Moreira por sua vez acredita que se criou uma “metafísica” do brasileiro, fruto do pessimismo de um Brasil do século XIX produzindo equívocos a sociedade brasileira. Traçando um verdadeiro “estado da arte”, Moreira enumera diversos sociólogos que construíram um ethos negativo ao brasileiro.

Maria Lucia Maciel em contrapartida busca compreender o “novo espírito do capitalismo” em ambientes que ela chama de “tradicionais” com a Itália e o Brasil, e mostra que não somos “atrasados” ao capitalismo descrito por Weber (ou “atrasado”), mas que construímos um tipo diferente de capitalismo não pautado na ética protestante, mas na “malandragem” do católico, para utilizar a metáfora do título do livro.

Luiz Soares aponta a ambiguidade da “racionalidade capitalista tradicional” descrita por Roberto Moreira e indaga que este pode ser um instrumento de conservação e naturalização das desigualdades sociais.

Angela Paiva disserta e compara as esferas religiosas brasileiras (católica) e norte-americanas (protestante) e as visões de mundo constrastantes que se formaram e influenciaram mutuamente a política de cada um desses países.

I. Jessé Souza

O autor Jessé Souza inicia o livro fazendo uma leitura neo-evolucionista da sociologia weberiana, aonde este localiza a “superioridade” evolutiva ocidental nos campos moral e cognitivo. Ele começa esclarecendo que Weber se interessa não com a essência das religiões, mas em indagar sobre as condições e efeitos desse tipo de ação comunitária. Para Souza, no entanto, há uma junção das perspectivas ontogenéticas (desenvolvimento individual) e filogenética (desenvolvimento societário ou da espécie), baseados na psicologia cognitiva de Piaget assim, ele entende que a racionalização interna da esfera religiosa é uma forma de o ser humano tentar resolver o dilema de sua interação com o meio social e natural, convidando a biologia, a meu entender, a participar dessa compreensão (mesmo que ele mesmo não se atreva a discuti-la abertamente). Esse processo de aprendizado proposto por Weber pressupõe um aumento do grau de consciência e de reflexão em relação à realidade que nos cerca, bem como do grau de autonomia da consciência moral que nele atua (p.20).

No naturalismo pré-animista, inicia Weber em sua construção do “espírito capiltalismo e a ética protestante”, o elemento religioso ainda se encontra entranhando em outros aspectos da vida cotidiana. Neste, as coisas e significados ainda não se separaram e o "sentido do mundo" ainda não aparece como problema. O naturalismo pré-animista baseia-se na crença de que as criaturas determinam e influenciam o "comportamento" das coisas ou pessoas habitadas pelo "carisma", uma cognição mágica. Esse é o núcleo da crença nos espíritos, algo indeterminado e material.

A etapa seguinte, é a imaginação de uma alma que propicia a transição do pré-animismo em sentido estrito. Os magos aqui acreditam que há uma separação entre a ideia de entidade sobrenatural e os objetos concretos. O próximo passo no desenvolvimento cognitivo implica na passagem do naturalismo ao simbolismo. Este pressupõe uma crescente abstração dos poderes sobrenaturais, dispensando, assim, qualquer relação com objetos concretos. O simbolismo propicia ao sujeito pela primeira vez uma forma de controle sobre o objeto da experiência por meio de um ato de conhecimento, levando à superação da atitude naturalista do ser humano por força do conceito em ralação à coisa e o seu meio. (p.21)

Um animal ou o ser humano pré-religioso podem apenas resistir passivamente à experiência do sofrimento e de outras limitações impostas pelas suas condições de existência. O ser humano religioso, ao contrário, pode, através de sua capacidade de simbolização, de certa forma "transcender e dominar" conseguindo, desse modo, uma liberdade em relação ao seu próprio meio impossível no passado.

Weber nos diz que o surgimento da crença em poderes sobrenaturais (almas, deuses e demônios) possibilita a constituição da esfera ou do campo de ação religioso. Agora, não há mais distância entre os seres humanos e as suas divindades nessa fase de desenvolvimento, pois no momento ritual "o qualquer hora" transforma-se "no agora". No entanto, a ausência da distância faz surgir a "duplicação" entre o mundo das coisas e o mundo dos poderes sobrenaturais, denotando a existência da concepção de mundo monista (p.21-22).

O próximo passo pressupõe a concepção de mundo dualista (específico das religiões de salvação) que distingue o mundo mágico do ser para o mundo do deve ser, que impõe tabus e o início de uma ética religiosa. Ao invés de uma simples duplicação do mundo mágico para a efetiva dualidade, a esfera transcendental criada pelo dualismo pressupõe um outro mundo (um mundo especificamente religioso ou sagrado) e essa criação contrapõem-se à realidade empírica. Mais ainda, a esfera transcendental (o além) passa a ser a "verdadeira" realidade e o mundo empírico, antes mágico, se transforma em um "mundo de passagem" pelas religiões orientais e como “reino do pecado” pelas religiões de salvação ocidentais (p.22).

O interessante aqui ressaltar é a aproximação que Weber faz das religiões orientais (no qual o Yoga, o meu objeto, faz parte) das religiões de salvação ocidentais, pois na virada do período histórico prémoderno yoguico para o moderno, por exemplo, os yogis (sobretudo no início do século XX) conseguem espaço nas sociedades católicas, dentre outras razões, talvez por similaridades de suas propostas de salvação que podem, a partir de Weber, encontrar explicação. Mas isso ainda carece de mais estudos que demonstrem tais aproximações.

O sofrimento agora (a partir de uma visão dual de realidade, no sentido da criação de um mundo espiritual e outro empírico) passa ser valorizado juntamente com um sentimento impulsionador fundamental da ação religiosa, ao contrário que acontecia nas comunidades arcaicas aonde os doentes e sofredores por exemplo, eram tidos como legitimamente punidos pelos deuses e, portanto, objetos de ódio e desprezo. A religião para os indivíduos arcaicos servia ao desejo dos poderosos e saudáveis, segundo Weber, pois viam o seu poder e saúde (neste mundo) legitimando a própria felicidade.

Com o novo sentido de sofrimento, agora como sintoma de felicidade futura destinada a um outro mundo (“espiritual”), abrem-se as portas para a conquista do imenso público de sofredores e oprimidos em geral que esperam a felicidade, a prosperidade e a saúde em um outro mundo agora. Cria-se aí uma "teodicéia do sofrimento", aonde apenas os especialistas religiosos possuem a chave para a cura das almas, em geral vinculados aos interesses materiais dos sacerdotes aos ideais e necessidades da plebe (p.23). Assim, os ricos agora precisam buscar outras fontes de legitimação da sua condição como por exemplo, o “Carisma do sangue”. Os sofredores, ao contrário, saem em busca da ideia religiosamente motivada de uma "Missão" confiada especialmente a eles - como o “Céu”, o “Nosso Lar”, “Kaivalya”, “Moksa” e “Nirvana” (p.23-24) ou à espera de de um Messias.

Com a concepção de mundo dualista, por força da distinção entre o sagrado deve ser e o profano mundo do ser, constituem-se aí, duas esferas concorrentes e paralelas, abrindo espaço para uma "rejeição religiosa do mundo" na medida em que o elemento empírico da realidade profana passa a ser desvalorizado pelo deve ser sagrado. No Yoga isso pode ser visto refletido, por exemplo, no desapego dos sadhus que andam pelas florestas e cidades nus e distribuindo bençãos, curas e orações em troca de abrigo, subsistência e esperança aos indivíduos “normais” que também buscam alcançar tal dádiva divina e espiritual.

A forma como o racionalismo ocidental (protestantismo ascético) lida com o seu dualismo, para Weber, resulta em sua forma peculiar de religiosidade, pois ao contrário do dualismo oriental, a ênfase ocidental é potencialmente mais ética do que ritualística. Ao invés de refugiar-se do mundo como os católicos e orientais, os profetas éticos do judaísmo antigo são os primeiros indivíduos a libertarem-se do "jardim mágico" e desenvolverem efetivamente uma lei prática e cotidiana de viver "dentro do mundo" (p.25-26). O que está em jogo em termos de desempenho cultural é uma primeira experiência histórica de moldar eticamente o mundo e, de forma consequente, transcender o dualismo religioso por meio da sua realização prática na sociedade. Aqui Weber deixa claro a semelhança entre os católicos e os religiosos “orientais”, em nosso caso específico, os yogis modernos no encontro com o mundo capitalista moderno e como eles conseguiram se adaptar a esse novo modelo político, econômico e biomédico (ver SIMÕES, 2011).

Segundo a lei da predestinação protestante apenas alguns indivíduos são eleitos para a vida eterna, sem que se possa ter acesso aos motivos que levaram Deus a fazer tal escolha; assim, há um abismo intransponível entre Deus e os seres humanos. Já para o Oriente, o caminho da salvação é individual, mas cada ser humano é responsável pelo seu, de forma que Deus é algo imanente. Para o Vedanta Advaita (texto seminal do Yoga dito prémoderno ou Hatha Yoga) por exemplo, o corpo é visto de forma não dual (não há uma separação entre Deus e o devoto), assim os rituais e as experiências advindas dele refletem-se como os ecos da alma, e por fim de Deus. O caminho da “salvação ocidental” (leia-se protestantes ascetas), por outro lado, é o da ética, e do Oriente e católicos pelo processo ritual para transcender o dualismo entre o sagrado e o profano. Para o protestante, então ao contrário do católico e do yogi, surge uma insegurança (medo) insuportável, no entanto, a doutrina da "certeza da salvação" (onde o sentido sagrado ao trabalho intramundano é intrepretado como o meio para a glória de Deus na Terra) os alivia desse peso (em parte, digo isso, pois o caminho para Deus é tão - ou até mais - difícil quanto ao do católico ou do devoto “oriental”).

Um outro efeito, talvez o mais importante, é a eliminação de toda mediação mágica ou sacramental na relação entre Deus e os indivíduos para o protestante (p.26-27); assim, a noção da vocação ganha mais do que um simples "sinal de salvação" mas como um sinal de salvação a partir do seu desempenho diferencial no trabalho “terreno” ou profano. Ao contrário da ascese católica e oriental, que representa uma fuga do mundo (nos termos de Weber), temos aqui uma ascese intramundana que direciona toda força psicológica dos prêmios religiosos para o estímulo ao trabalho segundo critérios de maior desempenho e eficiência possíveis. Daí a associação da ética protestante com o capitalismo como fez Weber.

II. Luiz Werneck Vianna

Apenas o Ocidente consegue superar os limites de uma concepção de mundo tradicional, bem como os da forma de consciência a ela correspondentes. A aquisição de uma consciência moral póstradicional é o que está em jogo na passagem da ética da convicção (típica de sociedades tradicionais legitimizadas religiosamente segundo uma moral substantiva) para a ética da responsabilidade; ética esta que pressupõe um contexto secularizado e a subjetivação da problemática moral. Essa passagem é "espontânea" apenas no Ocidente e o seu produto mais acabado é o indivíduo capaz de criticar a si mesmo e a sociedade em que vive. Esse indivíduo liberto das amarras da tradição é o alfa e o ômega de tudo que associamos com modernidade ocidental, como mercado capitalista, democracia, ciência experimental, filosofia, arte moderna, etc. (p.28).

Weber, por exemplo, relativiza a Revolução Francesa pois nos diz que, apesar do alvoroço que produz, não se compara a uma verdadeira revolução da consciência, como a do protestantismo ascético.

Instituições não se derrubam pela violência ou pelo sangue da vingança e do ressentimento. Uma real mudança institucional advém da conversão dos corações e mentes das pessoas (p29).

No final do séc.XIX por exemplo, enquanto o Brasil dava os primeiros passos para a reformulação do arcabouço social herdado do período colonial, os EUA (país “modelo” do protestantismo ascético) estavam se tornando uma das maiores potências industriais do planeta. Havíamos sido colonizados antes dos EUA, tínhamos uma dimensão continental semelhante (assim como uma fronteira interna e um padrão de povoamento igualmente comparáveis) e uma população que também crescia com a maciça imigração européia vertiginosamente, então por que éramos tão pobres e atrasados e eles tão ricos e modernos? Essa pergunta impunha-se para a sociedade e academia quase que por si só neste período histórico e social em meados de 1900 (p.31-2).

Para os Protestantes calvinistas (EUA) a vida é baseada na ética do trabalho, no aperfeiçoamento moral e no pragmatismo econômico, já para os Mozombos (filho do português nascido no Brasil), semelhante ao modelo de “Homem Cordial” cunhado por Holanda, seria um individualismo personalista, em busca de prazeres imediatos, descaso por ideias comunitários e de longo prazo. A Monarquia Portuguesa seria patrimonial, estamental e centralizadora, enquanto a Inglaterra repelia a centralidade burocrática e buscava o jogo de interesses da sociedade. As seitas protestantes, ao contrário da Igreja católica (modelo religioso brasileiro), pressupõe a associação voluntária do membro adulto a partir de qualificações éticas adquiríveis individualmente, ao contrário da Igreja, em que o pertencimento é presumido desde o nascimento (p.48).

As seitas para Weber ajudam a produzir o indivíduo (e o individualismo) moderno (ex.clubes, universidades, associações e sociedades), pensamento em vigor ainda hoje. Isso estimulou a constituição das cidades ao invés de povoamentos rurais (predominante no Brasil até algumas décadas atrás). A Igreja, por sua vez, hierarquiza e elitiza seus membros aceitando e recebendo todos os indivíduos tal como são e estabelecendo entre eles uma hierarquia a partir do grau de espiritualidade e virtuosismo possível a cada qual em termos de vida cristã.

A ambiguidade da escolha protestante é o dualismo e a intolerância entre os “puros” (que fazem parte da minha seita) e os “impuros” (sectários de outras seitas ou de nenhuma) (p.50). Weber descreve uma ética da não fraternidade como típica do ascetismo protestante (p.52) daí, talvez o déficit nas questões de reconhecimento e portanto, na dimensão simbólica do reconhecimento do outro e não propriamente na dimensão socioeconômica de redistribuição. Dessa forma, as sociedades protestantes procuram “compensar” um déficit simbólico com a moeda econômica quando os problemas possuem dimensões distintas.

Em uma palavra, Luiz Viana nos chama a atenção para a importância de respeitarmos os modelos societários exemplares e absolutos, pois as escolhas culturais, assim como as individuais, implicam em ganhos e perdas (p.53). Weber, exemplifica Viana, tem sido convocado invariavelmente para explicar o atraso do Brasil, mas esquecem-se de que há uma sigularidade da formação social brasileira. Na interpretação social comum acadêmica, diz o autor, Weber parece apontar que o atraso do Brasil é resultante de um vício de origem em razão do tipo de colonização a que fomos submetidos (Patrimonial Ibérico), marcado pela autonomização do Estado em relação à sociedade civil brasileira. Isso significa dizer que os interesses privados foram abafados e a livre iniciativa inibidas, comprometendo assim a história das instituições com concepções organicistas da vida social e levado à afirmação da racionalidade burocrática em detrimento da racional legal.

Ainda segundo essa versão, a ausência do feudalismo na experiência ibérica no Brasil aproximaria a forma patrimonial do nosso Estado à tradição política do Oriente, onde não se observariam fronteiras nítidas a demarcar as atividades das esferas pública e privada (p.175), onde mais uma vez se invoca a aproximação da formação ética lusobrasileira com a indiana. Não seríamos então, propriamente um caso Ocidental, uma vez que aqui o Estado por enterceder aos seus prórpios grupos de interesses mais do que em face à sociedade civil estava empenhado na realização de objetivos próprios aos seus dirigentes, enquanto a admnistração pública, vista como um bem em si mesmo, é convertida em um patrimônio a ser explorado por eles.

Assim, o capitalismo brasileiro (originário dessa “metafísica” de um país menor e com indivíduos preguiçosos anteriormente descrita) seria politicamente orientada em uma modalidade patológica de acesso ao moderno, implicando em uma modernização sem prévia ruptura com o passado matrimonial, o qual continuamente se reproduziria na medida em que as elites identificadas com ele deteriam o controle político do processo de mudança social favorecendo assim, a preservação das desigualdades sociais arraigadas no país (p.177). Falta uma tentativa, segundo Viana, de difusão do “capitalismo como estilo de vida” no Brasil, pois os agentes sociais no Brasil ficaram confinados ao horizonte da esfera privada, beneficiando-se tanto do “atraso” (como realizar a produção do excedente a partir de relações de dependência social) quanto do “moderno”, abdicando-se do programa de radicalização do liberalismo.

III. Roberto Moreira

O pensamento de que a falta de uma ascese puritana no Brasil não nos permitiu acesso à uma ética do trabalho e uma racionalidade capitalista pode ter nos conduzido a equívocos, salienta Roberto Moreira. O sociólogo Paulo Prado, em “Retrato do Brasil” (1928), construiu uma “metafísica brasileira” no qual a tristeza, a luxúria e cobiça seriam o ethos do brasileiro que segundo Moreira, seria fruto do pessimismo característico do país do séc.XIX. O sociólogo Viana Moog em “Bandeirantes e pioneiros” (1954), propõe saber os motivos do contraste entre o progresso dos EUA e o atraso brasileiro (p.202). Para ele, a miscigenação seria um traço de vantagem para nós por atenuar os conflitos raciais. O autor também vai buscar na diferença religiosa as explicações que procura.

Os iberos-americanos como os brasileiros, foram conquistados e colonizados por um povo mediterrâneo, católico, barroco e latino que talvez não tenham internalizados completamente o desencantamento do mundo por terem rejeitado no passado as implicações últimas das revoluções religiosas e científicas e assim, não puderam experimentar plenamente seus resultados em termos de individualização e utilitarismo (p.203-204). Para Richard Morse (1988), os pensadores ibero-americanos têm se penitenciado indevidamente quando lamentam a incapacidade de transformar os paradigmas intelectuais do Ocidente moderno em novas sínteses culturais, pois o que se observa é a coexistência desvinculada de ideias do que uma matriz de pensamento e sentimento dotada de extraordinária capacidade de autorrenovação e de articulação ante o impacto dos paradigmas estrangeiros (p.204).

Jessé Souza (2005) entende que Weber não tenha privilegiado o racionalismo anglo-americano como superior ao ibero-americano ou qualquer outro, como se viu. Ele acredita na neutralidade valorativa em Weber e os racionalismos analisados (p.205). A ideia do “Homem cordial” de Holanda como inverso perfeito do modelo weberiano ainda ecoa como problema para nós brasileiros em nossa autoridade moral para fazer escolhas, que possui suas raízes tanto no colonialismo quanto no imperialismo que persiste ainda hoje em tempos de globalização econômica (p.207). O ponto principal para Souza reside na confusão feita pelos pensadores brasileiros, como Morse e, em parte também por Weber (embora cada qual por motivos diferentes) entre racionalismo ocidental, protestantismo ascético e conquistas da modernidade como a democracia, a ciência e a influência econômica. O protestantismo deveria ser visto apenas como um entre outros caminhos dentro da herança ocidental, a qual produziu a moralidade individual na passagem da ética da convicção para a ética da responsabilidade, cuja gênese Weber vai buscar no judaísmo antigo.

José Merquior (1972) em “Saudades do carnaval: Introdução à crise da cultura”, observa que no substrato religioso do povo brasileiro ainda sobrevive o senso do sobrenatural retardando nosso desencantamento do mundo mundo (p. 208). Somos, continua, “ocidentais retardatários”, uma sociedade rarefeita da alta modernidade e deliciosamente inautêntica sob o ponto de vista do Ocidente anglo-americano (p.209). A socióloga Maria Lúcia Maciel, por exemplo, busca compreender o “novo espírito do capitalismo” em ambientes tradicionais (como o da Itália, que a autora entende semellhante ao capitalismo brasileiro) para se pensar, como matriz metodológica, os limites e as possibilidades da inovação no Brasil, que segundo ela, possuem pontos de vistas culturais semelhantes, a que chama de “tradicionais”. Hoje é um período diferente do mundo que Weber descreveu (e conheceu), completa. Há portanto, uma nova racionalidade para um novo paradigma da modernidade.

Segundo Weber, as racionalidades tradicionais seriam adversas ao desenvolvimento e à modernização do capitalismo por serem patriarcais (costumes arraigados), vinculados ao privilégio (principalmente à família), possuíriam relações de fidelidades feudais ou patrimoniais de “assistência doméstica” (ex. da Itália como a FIAT, máfia, partido democrático cristão). No entanto, para Maria Maciel, são justamente a criatividade e a participação comunitária, características desse tipo de racionalidade que hoje se adequariam ao novo modo de pensar capitalista.

O “familismo” italiano seriam altamente solidários e leais entre os seus e responsáveis pela formação cidadã comunitária, o progresso econômico e social deste país (p.217). As consequências negativas seriam a maior burocracia e “loteamento” dos aparelhos do Estado que interferem na competência e profissionalismo pelo “apadrinhamento”. No entanto, a sua prosperidade atual baseia-se no pluralismo de iniciativas heterogêneas que a inexistência, omissão e inépcia do Estado conferiram aos cidadãos italianos maior “competência” aos desvios, improvisações e soluções específicas que talvez não caberiam em outro tipo de racionalidade capitalista. Isso, continua Maciel, envolve maior tolerância (não exclusão), participação e o desenvolvimento de um sentimento de “pertencimento” aonde a lealdade e a fidelidade são fatores de dedicação e, consequentemente de produtividade para essa “racionalidade capitalista tradicional” (p.220).

Mas a Itália (assim como o Brasil e colocaria também a Índia) não pode ser tomada como modelo pronto e acabado, porque a própria ideia de “modelo” implica em ignorar as especificidades históricas e culturais de uma realidade social das quais não podem ser transplantadas para outras sociedades (p.219), pois não há uma “linha de produção” ou “manuais de procedimentos” que dêem conta de explicar a complexidade orgânica presentes dentro desta mentalidade capitalista. A relação de menor impessoalidade dentro da empresa implica hoje em um “novo paradigma” tecnoeconômico ou espírito capitalista e maior estabilidade no emprego.

Weber diz que as culturas católicas e as religiões orientais não seriam propícias ao desenvolvimento do capitalismo[1]. Assim, as transformações do capitalismo contemporâneo encontram mais afinidades com outras éticas e racionalidades (orientais e católicas) do que as culturas originárias de sua formação protestante ascética (p.220). Há no protestantismo ascético uma repressão dos elementos afetivos e sentimental da personalidade em nome do sucesso da empresa mundana, algo que para o capitalismo contemporâneo deixa de ser fator ou critério de pertença ou identidade, haja vista as gerações que nascem em um intricado mundo das redes sociais digitais.

O “jogo de cintura” e o “jeitinho brasileiro”, tão parecido ao modelo descrito pela autora na Itália, afinam-se com a agilidade e a flexibilidde na empresa moderna contemporânea (p.221). O espelho de próspero dos EUA, sobretudo como “ideal” ao brasileiro, tem nos impedido de ver criticamente uma imagem do “Homem Cordial” sem a negatividade absoluta do atraso e do anacronismo e o histórico não reconhecimento de valores positivos na nossa herança ibérica tem prejudicado o exame lúcido dos limites e das possibilidades do desenvolvimento brasileiro com todas as suas desigualdades, contradições e ambiguidades (p.221). Temos, potencialmente, conclui a autora, o poder de um desenvolvimento alternativo.

IV. Roberto da Matta

Roberto da Matta em “Você sabe com quem está falando?” (uma adaptação de Louis Dumont, “Homos Hierarchicus” sobre a sociedade indiana), numa clara comparação entre os indianos e os brasileiros, mostra que a humanidade não é naturalmente igual e composta de indivíduos independentes mas ao contrário, as pessoas são diferentes e ocupam naturalmente níveis diferentes de poder e de relevância social. Ele ainda aponta duas faces desse modelo “racionalista”, a submissão e resignação de um lado e a responsabilidade de proteger e providenciar bens de todos os tipos (simbólicos, religiosos e/ou econômicos) por outro (p.227).

Essa ambiguidade por ser lida na “Teoria dos Klesas”, proposta soteriológica do Yoga, que propõe a “salvação” do sofrimento humano na atenuação nos comportamentos de apego, aversão, medo da morte e orgulho. Por um lado, isso pode conduzir a maior grau de desapego, compaixão, fé na vida e humildade (o inverso dos Klesas), mas também conduzir os seus cidadãos a uma maior resignação à uma pretensa condição inferior pelo paradigma dogmático da doutrina yogi, como indivíduo “impuro” ou de casta inferior desde o seu nascimento (que mesmo proibido constitucionalmente ainda vigora no ethos do povo indiano).

Esse sentido híbrido da ambiguidade, característica da “racionalidade capitalista tradicional”, é instrumento funcional para a conservação e a naturalização da desigualdade, como dissemos, assim como, para a legitimação do darwinismo social. Para a massa, entretanto, a duplicidade de mensagens funciona opondo obstáculos à melhoria da autoestima, da cooperação social e da participação política (p.231), como o exemplo da criança pobre que assiste na TV e recebe mensagens oficiais de igualdade e individualidade vigente no país.

Pela TV, a criança será convidada e de forma universal, ao consumo (imagem construída de uma sociedade alfuente e inclusiva e aberta a todos que trabalham). No entanto, ambivalentemente, assistirá a mãe empregada doméstica todos os dias subir pelo elevador de serviço, almoçar sozinha na cozinha, trabalhar sem carteira assinada, ir de ônibus ao trabalho e etc. Há toda uma gama cotidiana imensa de rituais hierárquicos (p.230).

V. Angela Randolpho Paiva

A autora Angela Randolpho Paiva estudou as esferas religiosas brasileiras e norteamericanas entre o que Weber chamou de “afinidades eletivas” (p. 256). Para ela, o hibridismo fortalece e incentiva a imaginação criativa da população na resolução de problemas e de práticas políticas, assim há uma dupla mensagem na linguagem ambivalente da cultura brasileira (p.232). Segundo Weber, como vimos, a racionalização da ética ascética protestante levou a secularização e ao desencantamento dos EUA por parte da sua população.

Os católicos ibéricos e os protestantes ascéticos, então, seriam os tipos ideais de visões de mundo religiosamente contrastantes (p.258) e a ideia de “salvação” do mundo protestante (Calvinista, sobretudo) implica que o “chamado” abre os caminhos para o compromisso responsável e impessoal. Foram abolidos, dentro deste paradigma, os canais de mediação com Deus diretamente e o fiel puritano passa a estar em completa solidão na conquista da Graça, sendo o único responsável portanto, pela própria salvação, restando a ele apenas “a palavra de Deus” e o trabalho profano como referência de “caminho correto” (p.258).

No católico, por outro lado, a expectativa da Graça é esperada tanto ao injusto (impuro) quanto ao justo (puro). O católico não se sente responsável por sua ”salvação”, pois é de responsabilidade eclesiástica e a liberdade da consciência do católico resume-se na obediência ao Papa e à hierarquia eclesiástica. Assim, a “salvação” do protestante advém da sua ascese cultivada pelo trabalho para que ele possa ser escolhido e para os católicos, pela absolvição (p.259). Isso contribuiu para que a responsabilidade individual fosse melhor executada no racionalismo protestante e transformações de ordem paternalista aos católicos, dessa forma, a profissão como “vocação” inseriu o indivíduo protestante no mundo. Ele, então, não separa o sentir religioso da vida diária, pois é uma conduta que Weber entendeu como “metódica-racional” e que levou aos extremo a racionalização do mundo, contribuindo na implantação do ideal capitalista (calvinistas, pietistas, metodistas e os batistas como ex.) (p.259).

Segundo Weber, os católicos não conseguiram levar tão longe a racionalização do mundo por não terem eliminado por completo a ideia da magia para a “salvação”, para eles então o exercício da fé permanece numa relação de afastamento ou deslocamento do mundo (p.260), comum também aos indianos. Os católicos e indianos, podemos dizer, são avessos à racionalização do mundo, justamente o inverso dos protestantes (interessante lembrar foi justamente esse tipo de pensamento racional que colonizaram a Índia). O exemplo brasileiro desse fato está no envolvimento dos católicos em movimentos rurais e na Teologia da Libertação, quase uma ideologia “contra” o capitalismo.

A ideia de “salvação” protestante, assim, reside na responsabilidade pessoal e impessoalidade nas relações sociais e eliminar o sentido de irmandade do mundo orgânico católico (p.261), e a ideia de “vocação” protestante repousa no envolvimento do fiel no mundo, pois a realidade é vivida no mundo, por isso a livre associação de seitas (protestantes e suas “versões” pentescostais e neopentescostais) com a concepção de “pertencimento”, contribuindo dessa forma, para a atividade eletiva da democracia. Isso fomenta, ao racionalismo protestante capitalista, a pluralidade religiosa com a proliferação das diversas denominações protestantes com uma “religião privatizada” e associação voluntária (p.262). Dessa forma, entende o autor, religião e política vivem de acordo sob o ponto de vista protestante mas não em situação de dependência (p.262).

Os católicos, por sua vez, vivem “fora do mundo” com a manutenção de mundo mágica (ou se é um cidadão ou um “santo”). Por isso, argumenta Angela Randolpho Paiva, o engajamento católico brasileiro nos movimentos contra o Estado (CEB’s e etc) ou no sentido de obediência e conservadorismo, pois no mundo católico há uma ausência de conflitos, obediência/submissão, respeito à hierarquia e uma busca harmoniosa do todo orgânico.

Conclusão

Esses fatores descritos acima sobre os católicos contribuíram para um ajustamento ao desenvolvimento de práticas sociais fechadas e desiguais no contexto mais amplo impossibilitando uma democracia mais pluralista, ao menos no início da nossa colonização. Fica claro pela leitura dos autores acima uma busca por desligitimizar o paradigma ainda vigente e em franca época de globalização, da superioridade capitalista racional ética do protestante ascético (EUA) como superior com relação ao racionalismo capitalista do católico ibérico (Brasil), pois ambos possuem uma ambivalência intrínseca do próprio ser humano e esse paradigma (ideologia ou “metafísica” de atraso brasileiro) coloca-nos como um ser patológico impossibilitados de acessar ao modelo de “moderno” imposto.

No estudo como objeto a Itália, como paradigma racional católico de capitalismo, fica evidente que não somos atrasados mas uma nova forma de viver o “espírito capitalista” onde a criatividade, o pluralismo de iniciativas heterogêneas, os desvios, a improvisação e o “familismo”, ao mesmo tempo em que podem manter a desigualdade social e a submissão hierárquica, podem também incentivar e fortalecer a ausência de conflitos, a imaginação criativa da população na resolução de problemas e de práticas políticas, haja vista o movimento de não violência liderado por Gandhi (considerando a Índia, como um país neste mesmo “espírito” capitalista “tradicional”). Uma das razões do conformismo pelo papel “tupiniquim” do brasileiro talvez resida nos resquícios que o pensamento “mágico” de mundo seja sinônimo de atraso cognitivo, mas vê-se, por outro lado, contemporanemente uma luta pelo consumo consciente, visão de mundo menos utilitarista, ideiais absolutamente avesso à racionalização “reducionista” do capitalismo “protestante” e muito mais cooperativo e solidário, característica, pelo que se viu, fruto do capitalismo “católico”.

Referência

SOUZA, J. (org.). 1999. O Malandro e o protestante : a tese Weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília, Ed. UnB.

SIMÕES, R. 2011. Fisiologia da Religião: Uma análise sobre vários estudos da prática religiosa do Yoga. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Notas

[1] Interessante notar que o Movimento religioso “Nova Era”, claramente contra ao espírito consumista do capitalismo, surge nos EUA, talvez por parte de indivíduos descontentes com o tipo de racionalismo ético protestante. Dessa forma, muito mais afeitas a uma visão de mundo “encantada”.

Foto do escritorPhD. Roberto Simões

Não acredito em religiosidades nascidas incólumes ao contexto histórico em que floresceram. Todos nós somos frutos de nossa história e o que erigimos com o nome de cultura também é marcado pela vida de outros. Com o Yoga, espiritualidade nascida na Índia e atualmente integrante das sociedades do mundo inteiro, não poderia ser diferente e passando por diversas ressignificações ao longo de sua história.

O xamanismo dravídico, hipoteticamente, antes da invasão ariana, é bastante documentado como fundamento de um Yoga autóctone. Depois, temos a religião samkhya influenciando na construção dos sutras de Patanjali marca o seu período clássico, comentado e discutido de acadêmicos a cursos de formação ioguica pelo planeta. Além disso, temos a alquimia dos muçulmanos, o budismo, o tantra e o vedanta advaita na idade média indiana, bastante evidentes nos textos ioguicos deste período (Pradipika e Gheranda, por exemplo).

Modernamente, não há dúvida que a ciência ocidental (biomedicina, a anatomia e a fisiologia principalmente), os cristãos (pense na colonização britânica na Índia), o ocultismo de Blavatsky, a cultura do treinamento desportivo e as religiões denominadas como Nova Era formaram o contexto que fomentou o Yoga que conhecemos hoje. Assim, de Ramakrishna, passando por Vivekananda, Kuvalayananda, Sivananda, Yogananda, Yogendra, Krishnamacharya, Iyengar, Pattabhi Jois dentre outros tão importantes quanto, possuem em seus livros marcas destas influências.

O encontro do Yoga com os laboratórios de fisiologia ocidentais, por exemplo, marcou forte na ressignificação simbólica de suas práticas e doutrinas, muito mais para a magia e a mística dos tempos medievais indianos, para um reducionismo que transformou as práticas ioguicas notadamente por seu valor de libertação das agruras do mundo (kaivalya) para de técnicas de diminuição do estresse, ansiedade, depressão e remissão de doenças orgânicas e alinhamentos ortopédicos. Será que o Asthanga Yoga proposto por Patanjali ainda dá conta de “libertar” os homens e mulheres modernos do séc.XXI ou estamos falando de, assim como o fizemos com o tai-chi e a acupuntura, de reduzir o Yoga a mais uma terapia de cura?

A minha hipótese é que o Yoga vive um grande paradoxo, pois ao mesmo tempo em que a modernidade o “desencanta” reduzindo-o a técnicas de cura - o que permitiu ser aceito pela medicina ocidental e aplicado em larga escala em hospitais e pronto-socorros do SUS por exemplo, “valida” e reencanta os seus adeptos com intuito espirituais em busca de sentidos as suas vidas. Interessante, é que mesmo estes - os iogues em busca de mais "espiritualidade" e não apenas de diminuição de cortisol - consideram o Yoga como “científico”, portanto, eles pensam, diferente das religiões tradicionais. Esse pensamento permite aos iogues modernos fugirem do rótulo de religião para as suas práticas e doutrinas escondendo-se com o nome de “espiritualidade” em nítida ingenuidade quanto ao papel e ao valor que o iogues teriam se não tivessem medo de assumir o caráter soteriológico do Yoga realmente.

Houve uma ressignificação na doutrina clássica e medieval do Yoga no seu encontro com a ciência ocidental. É só ler os principais iogues modernos e nos deparamos com aproximações da fisiologia ocidental com a sutil/mágica/mística de outrora. Isso denota a busca por parte dos iogues modernos em legitimar as suas crenças religiosas, desacreditadas pelas sociedades seculares desde a invasão britânica em terras indianas, pelo conhecimento tido como “superior” da ciência. Está claro a todos que os iogues ainda fazem o papel de "colonizados" pelo pensamento dominante da ciência sobre o da religião? Estamos ainda, como na Renascença Indiana, buscando dar respostas sobre a legitimidade religiosa do Yoga frente aos outros que nunca pisaram em um mat. Devemos compreender que a religião e a ciência são duas formas de conhecer o mundo e uma não anula a outra ou a supera por maior valor intrínseco de “Verdade”. O Yoga visto pelo viés exclusivo da ciência perde a sua força de transformação da realidade, empobrece a busca dos seus adeptos na elaboração individual de um mito criador que dê sentido a sua vida. Isso não significa (ser religioso) que necessitemos de um mundo transcendente para viver, mas de que podemos almejar com base na doutrina e prática religiosa do Yoga uma transcendência na imanência, mas isso é assunto para outras meditações.


O Yoga na modernidade se vê envolto por desafios que obriga os yogues a se ajustarem às novas racionalidades que surgiram no contato com a ciência moderna ocidental. A fisiologia e a neurociência trouxeram soluções que antes eram monopólio exclusivo da sua fisiologia sutil ou espiritual, como, entre tantas outras, explicar o samadhi, o poder terapêutico de muitos ásanas, dos pranayamas, e dos kryias.

No momento atual, em que o corpo humano parece ser o cerne de uma confluência das investigações de diferentes áreas acadêmicas como a neurociência, a fisiologia, a filosofia e as ciências cognitivas e, num mundo em que a embriologia humana foi estabelecida, os neurônios investigados por emissão de pósitrons, as pesquisas com células-tronco reconstituindo órgãos e a psique humana entendida de forma integrada com os sistemas imunológicos e endócrinos, a fisiologia espiritual yoguica não poderia continuar como nos tempos medievais indianos.

O surgir do Yoga Moderno

Para o ocidente, o Yoga desembarca oficialmente nas suas terras com o Swami Vivekananda (1863-1902), em 1893, na cidade de Chicago nos Estados Unidos. A sua visita foi, por convite do Primeiro Parlamento Mundial das Religiões, como o representante do Hinduísmo nesse evento. No seu discurso apresenta já um Yoga com distintos sincretismos dos tempos Pré-modernos (Pós-clássico ou Medieval), tanto em termos ideológicos quanto fisiológicos (STRAUSS, 2008, p.58-63). Para Vivekananda, o Yoga é então considerado como um ideal de “religião universal” (ver o seu discurso no Parlamento em VIVEKANANDA, 2007), sendo ele um dos primeiros a ressignificar a fisiologia sutil do Yoga com termos científicos (KUVALAYANANDA, 2008, p.103-104 em notas; STRAUSS, 2008, p.63).

O Yoga que Vivekananda oferece aos emissários das principais religiões ali presentes, é o de uma tradição religiosa pautada em uma das formas pela qual o ser humano alcança a sua “verdadeira liberdade” e manifesta a sua “divindade interior”. Vivekananda procura demonstrar, nos seus pronunciamentos e depois em outras palestras e livros, que a religiosidade indiana, condensada por ele com o nome Yoga, se sustenta tanto filosoficamente quanto cientificamente e está à altura de qualquer outra religião ali representada.

O seu discurso ficou bastante popular, o que lhe possibilitou fundar organizações yoguicas por cidades do mundo inteiro, tendo o seu pensamento, em relação à religião Yoga e à ciência formado a base intelectual de uma geração de yogues que veio depois dele (DESIKACHAR et.al., 1980). Vivekananda também ficou conhecido como um defensor da tolerância religiosa, tornando-se um dos grandes ídolos do Hinduísmo moderno, além de um grande inspirador dos novos movimentos religiosos (principalmente da Nova Era) que primam, assim como o Yoga dito Moderno, por assimilar os seus ensinamentos religiosos como científicos (NANDA, 2007; VALLE, 2008, p.200; STRAUSS, 2008, p.64-65).

O Yoga, então, inicia mais uma vez as suas relações híbridas com novas culturas, sociedades, políticas, economias e geografias, como em outros momentos históricos. Contudo, agora, esse contato vai mudar o caráter do yogue renunciante do mundo de tempos passados, para um ascetismo que dialoga com o mundo nos tempos atuais (STRAUSS, 2008, p.64), pautando-se em escrituras religiosas como o Bhagavad-Gita.

Consideremos agora a diferença entre um yogue-asceta e um monge samsari (que se propõe a participar do jogo exterior de maya). Diga-se desde já que o “samsari” não precisa jogar obedecendo ao ego. Com efeito, é grato por Deus e muito útil ao desenvolvimento espiritual participar do jogo divino sem recorrer ao ego, em vez de procurar envolvê-lo no processo. (KRIYANANDA, 2007, p.241).

Enquanto aqueles yogues clássicos e medievais abandonavam o convívio social e dedicavam a sua busca religiosa retirados em ashrams e cavernas isoladas (ver sutra I.16 do HYP), os modernos se globalizam e adquirem a preocupação de difundir os seus ensinamentos para o mundo. Esta passagem histórica de renúncia necessária ao mundo e agora, de participar do mundo e difundir as suas ideias yoguicas aos outros se configura uma das características mais marcantes do Yoga que se conhece atualmente segundo Sarah Strauss (2008), antropóloga da Universidade de Wyoming nos Estados Unidos (p.63-64). Assim sendo, segundo estudiosos contemporâneos, o Yoga atual precisou aprender a lidar com os acontecimentos, principalmente os advindos do nacionalismo indiano, do ocultismo ocidental, da filosofia Neo-Vedanta, dos sistemas de cultura físicos modernos (DE MICHELIS, 2008, p.20), do islamismo, do cristianismo primitivo, da ciência moderna (principalmente a fisiologia e a biomedicina) e do movimento Nova Era (LIBERMAN, 2008, p.100-117). Este é o novo pano-de-fundo que configura o Yoga que se conhece atualmente.

Elizabeth DeMichelis salienta os pontos-chaves que facilitam a compreensão do surgimento do Yoga Moderno. Segundo De Michelis (2008), desde 1600, por intermédio da Companhia das Índias Orientais, que a Índia vem estabelecendo relação com os países da Europa e América, mas é a partir de 1750 que as sociedades ocidentais voltam o seu interesse para a economia, o sistema político e a cultura indiana. Com isto, desde 1830 que surgem os debates devido aos movimentos de reforma social na Índia Britânica, abrindo-se um diálogo entre os intelectuais e as autoridades sobre a “Anglicização” da colônia. Os primeiros sinais de uma ocidentalização da religiosidade indiana ocorrem por volta de 1850, como se pode ler nos escritos do naturalista, poeta e transcendentalista norte-americano, Henry David Thoreau (p.30).

No início do século XX presenciam-se o surgimento do Movimento Nova Era e a rápida modernização das religiões asiáticas, as quais dão início a um produtivo diálogo com outras crenças e culturas, fato que continua até hoje. Entre 1914 e 1945, devido às duas grandes guerras mundiais, a disseminação das idéias modernas do Yoga diminui a sua influência, sendo retomada novamente a partir da independência da Índia em 1947. Por intermédio de yogues carismáticos e convidados pela onda contracultural que acontece nos anos sessenta, várias organizações do Yoga se popularizam por todo o mundo. Após um período de certa indiferença pelo Yoga, na década de oitenta, nos anos noventa surge uma entusiástica aculturação por uma geração de praticantes e de devotos seguidores da sua proposta salvífica e de saúde (DE MICHELIS, 2008, p.21).

O Yoga, no início da década de noventa, se lança no mundo, principalmente por meio de alguns yogues, entre tantos outros, como Swami Vivekananda, Sri Yogendra, Paramahansa Yogananda, Swami Kuvalayananda, Swami Sivananda e Krishnamacharya (ALTER, 2004; FEUERSTEIN, 2005, p.53-55; SINGLETON & BYRNE, 2008). Os métodos yoguicos mais populares e praticados contemporaneamente se devem aos yogues mencionados acima, tendo as suas ideias edificado algumas das inúmeras escolas, tradições ou organizações yoguicas religiosas no mundo atual, como, The Yoga Institute (1918), de Sri Yogendra; Self-Realization Fellowship (1920), de Paramahansa Yogananda; Kaivalyadhama Yoga Institute (1924), do Swami Kuvalayananda; “Yoga de Krishnamacharya” (1924), de Krishnamacharya; Sivananda Yoga: The Divine Life Society (1936), do Swami Sivananda; e o Vivekananda Kendra Yoga Research Foundation (1972), fundada por Eknathji Ramkrishna Ranade (1914-1982), organização esta baseada nos princípios de Vivekananda.

Todas estas organizações yoguicas, de uma forma ou de outra, fomentam e divulgam as suas religiosidades também nas pesquisas fisiológicas dos seus métodos de ensino yoguicos. Elas se orgulham de terem artigos publicados em revistas científicas sobre os benefícios das suas práticas para a saúde. Para Iyengar (2001), por exemplo, yogue contemporâneo e discípulo de Krishnamacharya, bastante conhecido por adaptar seu método ao público ocidental, principalmente por introduzir “utensílios”, como almofadas, fitas e outros, nas salas de práticas, afirma que “a pessoa indisciplinada é alguém sem religião; a pessoa disciplinada é religiosa; a saúde é religião; a doença é falta de religião” (p.38). O interessante aqui é o apelo à “saúde” como compensador fisiológico que a prática oferece, e a sua correspondência com religião. Para se entender o que permitiu esta configuração atual, o que transformou a religiosidade yoguica também na prática física e terapêutica, é necessário voltar para 1750, período histórico em que o continente indiano inicia um processo que veio mais tarde ser chamado de “Renascença Indiana”, quando a cultura deste país principia um diálogo maior e aberto com o mundo ocidental.

“Renascença” Indiana

É no período “renascentista” em que alguns indianos vão estudar para a Europa e percebem o que seu país, apesar da grandiosidade da sua terra, a sua história e cultura, sofre, com a precariedade do seu sistema de saúde, com as crenças populares envoltas pela sua religiosidade, com uma educação ineficiente e pela economia explorada pelos britânicos. Muitos destes jovens, na sua maioria da região de Bengala - área do nordeste indiano onde se localiza Bangladesh, Calcutá e Daca - entendem que seu povo poderia (e deveria) se beneficiar também dos avanços da ciência, da tecnologia e da medicina ocidental que eles testemunham, geralmente nos centros acadêmicos do mesmo país que os colonizava.

Os “intelectuais de Bengali”, como ficaram conhecidos, abriram o diálogo com os ingleses, instituido uma ideologia e a modernização do seu país, o que veio a influir na formatação de um Yoga menos místico e mais condizente com o pensamento racional ocidental. Entre aqueles que deram início a isto, merece destaque Raja Ram Mohun Roy (1772-1833), filósofo filho de um pai Vaishnava e de uma mãe Shivaísta, que causou grande impulso no surgimento da Índia “Renascentista”. Raja Ram fundou o primeiro movimento religioso Neo-Vedanta, o Brahmo Samaj (“Comunidade de Devotos a Brahma”), em 1828.

Politicamente Roy influenciou bastante as reformas sociais e religiosas do povo indiano. Ele entendia que o sistema hindu de então não estava bem ajustado para promover os interesses políticos do país de acordo com o pensamento ocidental. Seria necessário que algumas mudanças ocorressem na sua religião também. A experiência de Roy trabalhando com o governo britânico lhe ensinou que a tradição religiosa hindu muitas vezes não era respeitada para os padrões intelectuais ocidentais, por isso tentou demonstrar que as “práticas supersticiosas” que, para o europeu, configuravam a religião hindu como primitiva, não correspondiam à sua real tradição como ele a entendia. Tais práticas religiosas, ditas “primitivas” eram frequentemente a razão oficial para que os britânicos afirmassem que tinham uma certa superioridade moral sobre a nação indiana. As ideias sobre religião que Raja Ram Mohan Roy buscou então construir, por meio da implementação de práticas semelhantes aos ideais cristãos, eram a de uma sociedade justa e humanitária para que assim, fosse possível autenticar o Hinduísmo no mundo moderno (ELIADE & COULIANO, 2009, p.183).

Swami Dayananda Saraswati (1824-1883) foi um religioso e asceta hindu que também se envolveu no movimento de reforma da Índia. Ele acreditava na autoridade infalível dos Vedas, no ceticismo do dogma, além de se posicionar contra a idolatria religiosa. Ele tentou reavivar o sistema das idéias védicas lutando pela tradução dos Vedas do sânscrito para o híndi para que todos, mesmo às pessoas comuns, tivessem acesso aos seus ensinamentos. Um dos seus princípios foi o respeito e a reverência para todos os seres humanos, pois na doutrina védica, dizia ele, todos os indivíduos possuem uma natureza divina, sendo o corpo o templo da essência humana ou atman. Fundou também, em 1875, assim como Raja Ram, uma organização religiosa conhecida como Arya Samaj (“Sociedade dos Nobres”) mas, ao contrário de Roy, desferiu fortes golpes contra as tentativas de aproximação entre o Hinduísmo e as outras religiões.

O Arya Samaj condena inequivocamente a adoração de ídolos, o sacrifício dos animais, o culto dos antepassados, as peregrinações, as “embarcações” de sacerdote, as oferendas em templos, o sistema de castas, a “intocabilidade”, o casamento infantil e a discriminação contra a mulher, pois, segundo o Arya Samaj, a todas estas práticas falta à sanção dos Vedas (Ibid., p.183).

Paramahansa Ramakrishna (1836-1886) foi um dos líderes religiosos mais carismáticos do movimento de modernização da Índia. A sua vida religiosa se inicia como devoto à Deusa Mãe, mas ele queria, sobretudo, conhecer o que as outras religiões ensinavam de verdadeiro e em comum. Ramakrishna foi iniciado no Advaita Vedanta por um monge peregrino chamado Totapuri, na cidade de Dakshineswar, e enfatizava que a realização divina era o objetivo supremo de todos os seres vivos, sendo que, para ele, a religião servia como meio para atingir esta meta. A realização místico-religiosa de Ramakrishna levou-o a crer que todas as religiões são caminhos para alcançar Deus(a), e que a Realidade nunca poderia ser expressa em termos humanos. Isto estava de acordo, segundo ele, com o que declara o Rigveda: “A verdade é única mas os sábios a chamam por diversos nomes”. Como resultado desta Verdade, Ramakrishna passou momentos intensos da sua vida praticando, de acordo com seu entendimento, o Islã, o Cristianismo, vários tipos de Yoga e de seitas Tântricas dentro do Hinduísmo. Mas o ceticismo também permeava os seus ensinamentos tanto que passou muito tempo se perguntando se estava adorando uma pedra ou a própria Deusa em sua imagem, questionando assim a razão na adoração de ídolos (Ibid., p.183).

Ramakrishna teve como um de seus discípulos mais importantes e conhecidos, o filósofo Narendranath Dutta, mais conhecido como Swami Vivekananda (já mencionado no início do artigo). Este, como se viu, foi o pioneiro em propalar o Yoga para o Ocidente, mas como representante do Hinduísmo (e de todo esse “renascimento” indiano) ele não foi “sozinho”, levou na sua bagagem toda a religiosidade da Índia do seu tempo com elementos cristãos, esotéricos ocidentais, científicos e neo-hindus, distintivos da efervescência dos pensadores libertários com quem convivia, principalmente do seu guru, Ramakrishna. Nos comentários de Yogananda (outro importante yogue contemporâneo), sobre o Bhagavad-Gita, está muito claro o sincretismo com a ciência fisiológica ocidental, a mística e o Cristianismo, além de uma busca por uma universalidade religiosa que, segundo ele e outros, o Yoga é o seu maior representante nos tempos modernos (KRIYANANDA, 2007, p.47). O modo crítico como estes intelectuais de Bengali trataram as suas escrituras religiosas, marcou profundamente a maneira como o Yoga atual repensou também a fisiologia sutil dos seus tratados religiosos.

Keshab Candra Sem (1838-1884), outro importante religioso de Bengali, foi um dos primeiros a procurar instituir a universalidade religiosa pelo Yoga. Em meados de 1876, Sem, já convertido ao Cristianismo e também avesso ao misticismo e à idolatria, se encontra com o até então desconhecido yogue Ramakrishna Paramahansa, identificando nele um verdadeiro santo. Do encontro destas figuras do “renascimento” indiano surge mais uma sincrética organização religiosa chamada Nabo Bidhan ou New Dispensation, a qual almejava unir os princípios cristãos, hindus e as tradições místicas ocidentais, forjando uma síntese Neo-Vedanta da Índia tradicional com o Ocidente (Ibid., p.183).

Lokmanya Tilak (1856-1920), assim como todos os anteriores, nasce em uma família brâmane. Ele entendia que a religião e a vida cotidiana não eram diferentes, portanto, para se tornar um sanyasa (religioso renunciante). Não seria preciso, dessa forma, abandonar a sua família para obter a salvação prometida pelo Yoga. Este pensamento seria uma característica importante que facilitaria a expansão yoguica pelo ocidente, fato tão comum entre os yogues e os praticantes de hoje em dia. Para Tilak, a vida religiosa não consistia em se alienar do mundo cotidiano, pelo contrário, cada um deveria harmonizar a sua existência. Um reflexo disto pode-se ler nos textos do yogue contemporâneo Iyengar (2001), em que para ele “bramacharya é a vida conjugal feliz” (p.38, 57, 62), o oposto do que era definido como bramacharya no contexto histórico-social e religioso da Índia antiga, onde se pregava a absoluta castidade (FEUERSTEIN, 2005, p.282) – ou como se viu com Vivekananda (ver p.114-115).

Tilak graduou-se em matemática, tendo sido um jornalista bastante ativo e adepto das causas nacionalistas indianas. Ele fundou, junto com amigos, a Deccan Education Society, escola com um novo sistema de ensino afiliado com os ideais de independência da época. Em 1903 lança o livro The Arctic Home in the Vedas, em que propõe um modo radicalmente novo de determinação do momento histórico exato dos Vedas, bem mais lógico do que mítico. Também outros livros como o Shrimadbhagwadgeetarahasya, que analisa o Karma Yoga no Bhagavad-Gita, tratado fundamental da tradição hatha-yoguica.

Outra figura importante, dentro da educação e da política no movimento nacionalista indiano, é Sri Aurobindo (1872-1950), intelectual que, em Bengala em 1906, comanda uma revolução contra os ingleses. Durante a sua prisão pelo governo inglês passa por diversas experiências místicas e, depois de libertado, devota a sua vida ao caminho salvífico religioso do Yoga. Entre os seus livros que influenciaram a geração atual de yogues está O Yoga de Sri Aurobindo, Renascimento, Yoga, Mantra e Oração. Viveu até aos setenta e oito anos, tendo a sua atuação política e religiosa sendo muito relevante entre os intelectuais da época.

Os intelectuais e religiosos que se seguiram, buscaram preservar as tradições culturais indianas e divulgá-las ao mundo, mas retirando-lhes toda a carga mítica, mística e mágica do Yoga Medieval. Entre as suas conquistas, sempre embasadas nas escrituras religiosas, estão a luta pelos direitos das mulheres, a extinção constitucional das castas, da poligamia e das crenças populares religiosas, assim como a obrigatoriedade do ensino da língua inglesa nas escolas (fato este que permitiu um salto qualitativo no ensino para os jovens indianos). Além disto, eles tentaram instituir um Deus único dentro do panteão hindu, tendo sido os primeiros a traduzirem a literatura védica para o inglês, permitindo um debate inter-religioso saudável, ecumênico e crítico.

Foi assim, por meio de uma verdadeira reforma social, política, cultural e religiosa, que a Índia procurou construir e expor a sua nova face ao mundo. Com isto, o Yoga, como um emblema da sua religiosidade, sofreu influências que transformariam o seu sistema de crenças e de práticas sofrendo mutações e propiciando o advento de diversas outras organizações yoguicas, sendo algumas bem mais profanas do que outras. Um dos resultados dessa abertura foi o embate entre o racionalismo pragmático, desse novo pensamento liderado por intelectuais e religiosos reformadores da Índia moderna, e a mística (DE MICHELIS, 2008, p.20-21, 30; ELIADE & COULIANO, 2009, p.183).

Mas os custos morais e ideológicos que a religiosidade yoguica medieval carregavam nesta época já não valiam mais a pena para os yogues modernos. O secularismo ocidental estava levando a Índia, altamente mística e mágica, a não ser respeitada pelo seu colonizador, o que representava, entre outras coisas, o ocidente e os desenvolvimentos industrial e acadêmico. O progresso, segundo Stark e Bainbridge (2008), pode estimular o “descrédito das crenças religiosas tradicionais” (p.397), produzindo novos problemas enquanto resolve outros para que só as religiões tradicionais (no caso o Hinduísmo para o povo indiano) dispunham de compensadores.

A secularização significa a perda de poder por parte das organizações religiosas, o declínio concomitante da coerção em nome da tradição religiosa, o descrédito progressivo das explicações religiosas tradicionais e o abandono, por parte das igrejas-padrão, da parcela da magia que elas previamente ofereciam a seus participantes [no caso aqui da fisiologia sutil do Yoga, sobretudo]. (Ibid., p.399)

Desta forma, o Yoga Medieval, pautado altamente pela fisiologia sutil e pelas crenças populares perde espaço frente ao progresso e o “renascimento” do continente indiano e, com ele, todos os problemas também que o acompanham, obrigando aos yogues da geração moderna (re)construírem a sua fisiologia sutil frente aos avanços da fisiologia científica ocidental que tomavam contato agora.

Os Primeiros Yogues da Geração Moderna

Um dos primeiros yogues da nova geração, discípulo agora de Vivekananda, a se destacar no cenário yoguico atual, foi Sri Yogendra (1897-1989), jovem estudante que, desde cedo, atua como educador em uma das primeiras escolas modernas da Índia. Incentivado pelo seu guru, mescla, ainda em 1917, a educação formal com os preceitos éticos e religiosos ensinados por Ramakrishna. Um ano mais tarde (1918), Yogendra inaugura a primeira organização moderna de ensino yoguico do mundo, com a missão bem clara em difundir a “ciência” do Yoga

, ao mesmo tempo em que se mantel fiel a sua tradição religiosa. O que foi um artifício importante para a difusão da suas crenças, que ainda lhe serve (DeMICHELIS, 2008, p.23; STRAUSS, 2008, p.62-67).

O Instituto de Yoga de Yogendra, desde a sua fundação se vincula, assim como todas as organizações yoguicas posteriores, ao bem-estar físico, mental e espiritual que o seu método de ensino propaga, bem como à cura de enfermidades como o diabetes, a hipertensão, o estresse, e os problemas cardíacos, ortopédicos e respiratórios (STRAUSS, 2008, p.65). Uma presença muito mais marcante de elementos da fisiologia científica sobre a sutil de outrora.

Outro indiano a fomentar o Yoga que se conhecem atualmente, é Mukunda Lal Ghosh, um destacado desportista que também se alinhou com a ciência e o Yoga. Mukunda nasce em uma abastada família bengalês, ficando mais conhecido pelo seu nome iniciático, Paramahansa Yogananda (1893-1952), e por ser o responsável por fundar as primeiras organizações yoguicas fora da Índia. A sua história se inicia após se formar pela Universidade de Calcutá, onde dedica a sua vida à divulgação religiosa do Yoga. Em 1920, a convite de um congresso com líderes religiosos nos Estados Unidos, e incentivado pelo seu guru, Swami Sri Yutkeswar (1855-1936), ele viaja para Boston com a intenção de proferir uma palestra sobre a Ciência da Religião, e divulgar o método do Kriya Yoga (método yoguico com características semelhantes ao da tradição hatha yoguica, fruto da mentalidade yoguica medieval). No mesmo ano, após um ciclo de palestras em diversas cidades norte-americanas funda a sua própria organização religiosa, a Self-Realization Fellowship (SRF), localizada nos Estados Unidos e hoje com sedes espalhadas por todo o mundo.

Yogananda refere-se ao Yoga como o “caminho da espinha dorsal” e afirma que o prana “penetra no corpo através da medula oblonga, na base do cérebro” (KRIYANANDA, 2007, p.50-51).

(...) por meio dos exercícios (de Yoga) mantemos nossa flexibilidade e força da coluna vertebral, assim a circulação (sanguínea) é aumentada e os nervos mantém seus suprimentos de nutrientes e oxigênio (...) os ásanas também afetam os órgãos internos e o sistema endócrino.

Segundo relatado na sua autobiografia o Yoga que trazia ao mundo era um renascimento da mesma “ciência” que Krishna deu a Arjuna (referindo-se ao clássico tratado religioso Bhagavad-Gita), sistematizado por Patanjali (Yoga Sutras) e trazido aos apóstolos por Jesus Cristo. Segundo o mesmo texto, a Libertação pode ser alcançada por meio da cessação dos nossos processos inspiratórios e expiratórios (YOGANANDA, 2009, p.245-254). Assim, tanto a fisiologia científica e sutil quanto o Cristianismo recebem grande atenção nos seus trabalhos, práticas e pesquisas.

Jagannath Ganesh Gune foi mais um universitário indiano a se entusiasmar com a efervescência nacionalista hindu, principalmente com as idéias de Sri Aurobindo, de Lokmanya Tilak e pelo conceito da Fraternidade Universal do educador físico Rajratan Manikrao (1878-1954), discípulo de Paramahamsa Madhavadas-ji (1800-1921) da tradição religiosa yoguica de Gauranga Mahaprabhu e instituidor do Centro de Cultura Espiritual para Elevação da Humanidade. Gune, professor de educação física, assim, entendido de fisiologia e anatomia sob o ponto de vista da ciência ocidental, ficou mais conhecido como Swami Kuvalayananda (1883-1966). Empolgado pelo espírito de renovação cultural, religiosa e social que o seu país vivia, pela possibilidade de investigar academicamente as práticas fisiológicas yoguicas, e com isso aplicá-las gratuitamente à medicina convencional (ocidental moderna) do seu povo, se tornou o pioneiro na sistematização das pesquisas científicas das diversas técnicas físicas do Yoga que se conhecem hoje (ALTER, 2004, p.73-108; STRAUSS, 2008, p.62).

Kuvalayananda inicia suas pesquisas ainda em 1920 e, alguns anos mais tarde em 1924, inaugura o Kaivalyadhama Yoga Institute com o intuito de coordenar a ancestralidade do Yoga com a ciência moderna. Em 1929, Kuvalayananda inaugura uma pós-graduação em Educação Yogue para alunos do mundo inteiro, o Gordhandas Seksaria College of Yoga Cultural Synthesis, com uma proposta bem clara e fazendo jus ao pensamento “renascentista” indiano, o desejo de desmistificar o Yoga por meio das suas análises científicas sob a sua fisiologia sutil. A sua revista de divulgação científica, intitulada Yoga Mimansa, se estabelece como a precursora das pesquisas fisiológicas sobre as práticas do Yoga desse período e sendo publicada e com fôlego até os dias de hoje (Ibid., p. 62-67; ALTER, 2004, p.73-108; KUVALAYANANDA, 2005, p.82; Id., 2008, p.6-7).

Em seus livros, apesar da precisão e do volume de pesquisas laboratoriais com as práticas yoguicas e da vontade do Swami Kuvalayananda em desmisitificar o Yoga pela ciência fisiológica, este recorre muitas vezes à fé, à fisiologia sutil e a doutrina religiosa para justificá-lo.

[A intenção do Instituto de Kaivalyadhama é] desvencilhar [o Yoga] de toda uma capa de misticismo acumulada ao longo de séculos de transmissão oral (...) Isso só poderia ser conseguido com pesquisa exaustiva em textos e escrituras originais [doutrinas], e por meio de experimentação laboratorial [fisiologia científica]. (KUVALAYANANDA, 2008, p.2)

Isso não significa que os ateus não possam praticar as posturas yoguicas. Queremos dizer, portanto, sendo todos os outros fatores iguais (doutrina e fé), um genuíno “teísta” poderá praticar os asanas com maiores vantagens que um ateu. (KUVALAYANANDA, 2005, p.50 em notas)

Kuvalayananda e os seus colaboradores investigaram fisiologicamente as implicações das práticas yoguicas como o nauli, o uddiyana e o basti, tendo descoberto as suas atuações positivas, tanto nas pressões intra-pulmonares, intra-torácicas e intra-esofagal, quanto no músculo do diafragma e nos órgãos internos. Uma das descobertas que recebeu mais atenção nessas pesquisas iniciais foi a descoberta do Vácuo Madhavadasa.

É a primeira vez que a fisiologia sutil do Yoga são descritas com tanta agudeza, e com a possibilidade de aplicação clínica na medicina ocidental. Os seus resultados, antes descritos pelos textos medievais em geral apenas com fins religiosos e portadores de uma fisiologia sobrenatural e mágica ímpar, podem agora também servir como excelentes promotores da saúde das vísceras abdominais (para casos terapêuticos de dispepsia), da prisão de ventre, dos males do fígado, do baço, do pâncreas e dos rins, além de curar casos de menstruação dolorosa. No entanto, são contra-indicados, algumas técnicas yoguicas, segundo as pesquisas de Kuvalayananda, para as pessoas com problemas circulatórios, pulmonares, apendicite crônica, hipertensão e perturbações abdominais (KUVALAYANANDA, 2005, p.144-145). De certa forma, a partir dos trabalhos de Kuvalayananda o Yoga começa a ser respeitado nos meios médicos modernos ocidentais como tendo uma possível aplicação terapêutica, fomentando a inclusão dos ásanas, dos pranayamas, dos kriyas e dos bandhas, no que hoje se conhece como Medicina Integrativa e Complementar, possibilitando desvinculá-lo, pelo menos quando aplicados nos hospitais ocidentais, da sua fisiologia sutil religiosa.

As primeiras pesquisas de Kuvalayananda publicadas na revista Yoga Mimansa foram muito bem recebidas não só na Índia mas também por psicólogos e médicos da Inglaterra, da França, da Alemanha e da América do Norte (ALTER, 2004, p.85). A partir daí, Kaivalyadhama se expande e as suas pesquisas e atuações sociais também. Kuvalayananda provê novo fôlego ao caráter terapêutico do Yogano mundo moderno. Para muitos yogues e leigos, este fato autenticou pela chancela da ciência, o que até então era considerado apenas como simbólico, primitivo e pertencente a uma fisiologia sutil e mística, totalmente desacreditada pelo pensamento inglês, sobretudo protestante.

Outro destaque na consolidação do Yoga considerado Moderno, foi Swami Sivananda Saraswati (1887-1963), um estudante de medicina do Tanjore Medical College e com gosto pelo desporto. Em 1936 ele inaugura o Sivananda Yoga: The Divine Life Society (DLS) na Índia, utilizando-se das pesquisas médicas nas suas práticas, e traduzindo textos como o Bhagavad-Gita com uma evidente abordagem que já mescla a fisiológica ocidental com a sutil do Yoga, um flerte claro com a ciência moderna como todos da sua geração.

A aproximação da ciência fisiológica inicia uma ressignificação fisiológica dos textos medievais e clássicos yoguicos, que os yogues filhos da renascença indiana se encarregam de propalar mundo fora. Sivananda (1993), por exemplo, incentiva os seus alunos a abrirem as suas próprias organizações religiosas (que ele as intitulava de “missões”) e a divulgar esses ensinamentos em outros países. Na sua autobiografia Sivananda dedica um capítulo aos seus ideais yoguicos, intitulado Minha Religião, sua técnica e disseminação (p.59-74), em que ensina como os seus discípulos devem proceder com as suas próprias organizações yoguicas. Esses seus ensinamentos ajudaram a fundar o International Sivananda Yoga Vedanta Centres (1959), estabelcido por Swami Vishnudevananda no Canadá; o Yoga da Linguagem Oculta (1956), escola desenvolvida pela Swami Sivananda Radha (1911-1995); e o Yoga Integral, desenvolvido pelo Swami Satchiananda (1914-2002), que foi quem apresentou este método, em 1969, aos hippies durante o festival de Woodstock.

Swami Visnhudevananda, por exemplo, tomou conhecimento de Sivananda, aos vinte anos de idade após a sua carreira militar na Índia, por meio de um folheto que difundia o Yoga do seu futuro guru, que dizia que quem praticasse Yoga, filosofia e religião todos os dias alcançaria a auto-realização. Após algum tempo dedicado ao ashram de Sivananda, ele é nomeado professor de Hatha-Yoga da instituição e, depois de dez anos ensinando Yoga, é convidado pelo Sivananda a ir ao ocidente divulgar a sua prática e a sua doutrina. Funda então, em Montreal, no Canadá, a primeira organização yoguica de Sivananda fora da Índia, assim como já o haviam feito outros yogues do período moderno do Yoga.

No verão de 1961, Vishnudevananda realiza o primeiro retiro com alguns ocidentais e, em 1962, inaugura mais um ashram no Canadá, mas em Valmorin, nas Montanhas Laurentian. Cinco anos mais tarde em Nassau, nas Bahamas, Vishnudevananda expande ainda mais a organização yoguica de Sivananda, o Ashram Yoga Retreat: “O mar e os céus tropicais fazem este lugar ideal para a expansão da mente através da prática da yoga”, dizia um de seus panfletos de divulgação do ashram com perfil de hotel spa. Realizaram-se cursos de formação com um mês de duração, como o Teacher´s Training Courses, cuja função era propalar a sabedoria yoguica pelo mundo todo, tanto que o seu site tem uma agenda de cursos onde se pode escolher o país e a língua em que será proferida a aula. A proposta expansionista de levar o Yoga para todos os cantos do mundo é muito forte e nítida, como o demonstra também a pesquisadora Sara Strauss (2008, p.67-72).

Sri Turumalai Krishnamacharya (1888-1989), é mais um yogue e médico ayurveda a se destacar na formação do Yoga Moderno. Ele é considerado o “reformador” do Yoga ou fundador do Modern Postural Yoga (NEVRIN, 2008, p.119-139). Krishnamacharya, depois de focalizar os seus estudos, na Universidade de Benares, em Lógica e Sânscrito, volta para Mysore, a sua cidade natal, e se aprofunda no Vedanta. Em 1914 estuda filosofia indiana na Universidade de Patna, mas, em 1924, a pedido do Maharajah de Mysore, uma cidade da Índia, começa a lecionar Yoga até à década de cinquenta. Após a independência da Índia os governos locais trocam de poder e Krishnamacharya perde a tutela do Maharajah. A partir daí, em 1952, muda-se para Chennai (antiga Madras), a quarta maior cidade da Índia, para tratar da saúde de um renomado político. Estabelece-se aí, e professa o seu Yoga até ao final dos seus cem anos de vida.

Seus principais discípulos, Indra Devi (considerada a primeira-dama do Yoga nos Estados Unidos), B.K.S.Iyengar (Iyengar Yoga), Pattabhi Jois (Asthanga Vinyasa Yoga) e Desikachar (Viniyoga), fundam as organizações de Yoga considerados os mais conhecidos atualmente no ocidente (SMITH, 2008, p.140-160). O sistema de prática yoguica ensinado por Krishnamacharya se consolidou com os seus livros Yoga Makaranda (1934), Yoganjali (1952), e Yogasanagalu (1973) (DESIKACHAR et.al., 1980, p.281) e a popularização dos seus discípulos no ocidente.

O seu método torna-se bastante popular pelo vigor físico e pela combinação de posturas, de exercícios respiratórios e de contemplação, tudo em uma única prática, criando um Yoga “para quem tem pouco tempo livre”, além de possibilitar certa liberdade que permite aos seus alunos construírem a sua própria prática (DESIKACHAR, 2006, p.13-36). Segundo Desikachar (2006), a essência dos ensinamentos do seu pai está em adaptar o Yoga ao aluno e não o contrário (p.20), característica que caiu bem ao gosto do impaciente ocidental contemporâneo, mas sem perder a religiosidade devocional do Yoga (SINGLETON, 2008, p.91-92).

A influência da Ciência Fisiológica na Fisiologia Sutil do Yoga

Vai-se, a partir de agora, entender as ressignificações fisiológicas que estes yogues contemporâneos produziram no Yoga considerado Moderno. Andrea R. Jain, professora assistente de estudos religiosos da Indiana University-Purdue University Indianapolis, avaliou que as formas como o Yoga Moderno se apropria do discurso científico na sua doutrina (JAIN, 2010), em particular das técnicas corporais e meditativas dos sistemas de Yoga Clássicos e Pré-modernos, está fundamentalmente baseada no discurso biomédico ocidental moderno. A autora percebeu que o corpo no Yoga investigado, tornou-se uma “sutil metafísica somatizada”, utilizando-se da compreensão biomédica da ciência fisiológica para localizar e identificar as funções de partes do corpo sutil e os processos do corpo. Para a pesquisadora, esta reinterpretação não substituiu apenas a simbologia fisiológica antiga pela científica, mas a reinventa, formatando uma nova fisiologia sutil yoguica que se exporá adiante.

O que se indicará a seguir, é que o fato mencionado por Jain não é algo isolado de um grupo religioso ou de um yogue específico, mas da própria história do Yoga Moderno, que se justifica pela aculturação que o complexo religioso yoguico sofreu no contato com os outros povos, na busca para manter a sua veracidade num mundo onde a razão hoje parece prevalecer mais do que a fé. O antropólogo brasileiro Tales Nunes (2008) defende em seu mestrado a ideia que houve quatro períodos que marcam o desenvolvimento do Yoga Moderno. O primeiro seria o de descoberta/encantamento, o segundo de psicologização/experimento, o terceiro como a fase da corporificação/desencatamento e, por último, de forma um pouco otimista e ingênua, Nunes acredita que há uma fase de resgate/reencantamento onde determinados yogues brasileiros, pesquisados por ele no Sul do Brasil, estariam na busca de resgatar a “essência” do Yoga por assim dizer.

O primeiro momento do Yoga, segundo Nunes, destaca-se pela descoberta/encantamento, como dissemos, sobretudo pelos filósofos e pelos escritores românticos como Schopenhauer e Thoreau com os primeiros textos orientais traduzidos, que têm como centro uma busca pela “interioridade” e “essência pessoal” (Ibid., p.17). O segundo período seria o de psicologização/experimento, que se pauta na tentativa de tradução das doutrinas religiosas orientais para uma linguagem da psicologia e o uso destas enquanto terapias alternativas. O autor credita a este período a transformação das organizações religiosas com objetivos iniciais na salvação dos seus adeptos do sofrimento humano em processos de cura orgânica. Seria o início da profanação das práticas religiosas antigas do Yoga em “técnicas” como vistas abundamente hoje com a meditação e etc. A terceira fase insititui-se pelo processo de corporificação/desencantamento, no sentido de uma secularização que chega ao oriente devido à demasiada centralidade na fisiologia científica e ao seu caráter essencialmente terapêutico. O último período é o resgate/reencantamento, ligado a uma tentativa, por parte de alguns yogues modernos, em resgatar a sua religiosidade na busca de um Yoga direto da Índia (Ibid., p.19).

Mesmo não tendo dados históricos que possam confirmar, é possível que o Yoga nos tempos medievais também tenha se “encantado” em algum momento quando os yogues do período Pós-clássico precisaram reinventar-se por meio da alquimia, do Tantra, do Budismo e de outras influências, ressignificando as suas escrituras e atos, como acontece hoje e reavivando suas crenças de acordo com a realidade da época

. Atualmente, pode-se localizar organizações religiosas que ressoam daquele Yoga da Índia medieval num verdadeiro resgate das raízes da sua tradição até escolas e linhagens yoguicas totalmente ocidentalizadas como o Somatic Yoga de Thomas e Eleonor Hanna (1928-1990), além de outras que buscam conciliar o conhecimento das mais recentes pesquisas científicas na fisiologia, na neurociência, na psicologia e nas ciências cognitivas com textos religiosos yoguicos medievais e atuais.

A Fisiologia Sutil do Yoga Revisitada à Luz da Fisiologia Científica Moderna

Depois de Vivekananda em 1893, outros yogues viriam para os países ocidentais com a intenção de divulgar os seus métodos de ensino e de difundir a religiosidade yoguica, como se viu. Um deles foi Yoganananda e a sua influência e discurso foram importantes e, a sua estadia nos Estados Unidos rendeu-lhe diversas palestras e comentários, entre as quais um artigo publicado no Washington Post, em janeiro de 1927, citando as suas (re)interpretações modernas sobre a fisiologia sutil do Yoga. No referido artigo, o autor faz alusões à mudança química das células do corpo em uma “nova ordenação” dos neurônios, sempre que o “receptor das ondas vibratórias” (referindo-se ao bulbo encefálico) esteja devidamente concentrado e imbuído de devoção pelo yogue durante as práticas religiosas (YOGANANDA, 2008, p.IX). Em Afirmações, livro em que Yogananda procurou correlacionar o poder terapêutico do Yoga por meio, segundo ele, de descrições científicas, investe em uma argumentação sobre a fisiologia cardiorrespiratória para justificar a prática yoguica, “cuja aplicação o ser humano pode alcançar uma experiência pessoal e direta com Deus (...) comum a toda religião verdadeira” no intuito de promover harmonia entre os diversos povos e os países do mundo. Não é apenas ele, mas outros como Iyengar (2001) também fazem frequentes referências a isso.

O pranayama é o elo de ligação entre o organismo fisiológico do homem e sua dimensão espiritual. Tal como o calor físico é o cerne de nossa vida, o pranayama é o cerne do ioga. (p.183)

O Yoga Moderno vai alicerçando-se, segundo os seus emissários contemporâneos, devido a “um conjunto de técnicas científicas utilizadas para alcançar a comunhão com Deus” (Ibid., p.130-131). A sua doutrina baseia-se agora também na fisiologia científica para, assim como os yogues medievais o fizeram com as outras sabedorias, dialogar (ou ressignificar) com os conceitos fisiológicos sutis de outrora. Desta forma, a fisiologia científica e os tratados religiosos yoguicos se confundem.

Se estimarmos a quantidade de sangue expulsa em cada contração dos ventrículos do coração, soma ao redor de cento e dez mililitros, este órgão move um peso equivalente a oito quilogramas de sangue por minuto. Assim, no lapso de um dia, o coração impulsiona aproximadamente doze toneladas de sangue (...) Estas cifras demonstram o enorme trabalho do coração. (...) O controle consciente do sono – aprender a dormir e despertar com nossa vontade - forma parte do treinamento yoguico que capacita o ser humano em regular os batimentos cardíacos. Quando se é capaz de controlar conscientemente a freqüência cardíaca, se alcança o domínio da morte. (...) (YOGANANDA, 2008, p.134)

(...) a cortisona [principal hormônio do estresse] do ioga é vislumbrar a alma (Iyengar, 2001, p.138)

É evidente aqui uma apropriação da linguagem fisiológica científica para elucidar a representação sutil do corpo nos textos yoguicos. Assim como Kuvalayananda tentou aliar o valor religioso com o científico do Yoga, Iyengar (2001) também se dedica às correlações entre a anatomia, a fisiologia e a mística do Yoga. Segundo ele, “ao controlar a respiração, você está controlando a consciência, e, ao controlar a consciência, você dá ritmo à respiração”. Este yogue ainda faz uma releitura moderna do Hathayogapradipika (sutras I-41 e II-2), dizendo que “quando não há movimento nas células, na mente ou em qualquer um dos vasos da alma, prevalece o que se chama de kumbhaka” (p.29, 185). No entanto, os caracteres fundamentais do Yoga, que fundamentam as suas recompensas não se alteram, pois continua a ser preciso desobstruir os nadis para que prana flua e libere kundalini a ascender pelo sushumna.

Desde as primeiras traduções dos textos religiosos indianos, realizados pela geração atual de yogues, que estes vêm justificando a sua fisiologia sutil e adquirindo papéis mais orgânicos, portanto, “verdadeiros” sob o ponto de vista da ciência. Este fato mostra uma preocupação para racionalizar a fisiologia religiosa do Yoga, já desde o início do século passado. Assim pode-se entender Sir John Woodroffe, britânico graduado em Direito por Oxford que, depois de alguns anos trabalhando na jurisprudência indiana, se interessou pela religiosidade e pela mística deste povo, e traduziu em 1917, diversos textos tântricos e yoguicos como o Tantra Sastra. Neste livro, Woodroffe (2004) explica os nadis, por exemplo, como sendo nervos, artérias ou eixo cérebro-espinal, alertando que nas escrituras aqueles não possuem características físicas, eles representam canais sutis de energia (p.48-49). Esta representação é produto do seu esforço para tornar lógico o entendimento de uma fisiologia “irracional” para o padrão de entendimento da ciência.

No período Pré-moderno, os textos antigos também sofreram transformações evidentes. Basta lembrar os tratados de Svatmarama, onde se comparou a mente (chitta) com o mercúrio, pois “ambos eram instáveis” (ver sutra 26-27 e 96). Em vez da alquimia, influência da invasão muçulmana na Índia medieval, é a ciência fisiológica moderna que surge modernamente revigorando os textos medievais yoguicos.

(...) aplicando-se fundamentalmente a vontade (tapas [nota minha]), deverá fixar-se a atenção entre sobrancelhas (shambavi mudra [nota minha]); quando se utilizam afirmações do tipo intelectual, o centro da concentração será o bulbo raquídeo (centro da força vital inteligente); e as afirmações devocionais, a concentração se focará no coração (...) Por meio da prática dessas afirmações, adquire-se o poder de dirigir conscientemente a atenção para as fontes vitais da vontade, do pensamento e do sentimento. (yogananda, 2008, p.76)

Concentrar-se, com os olhos fechados, na região do bulbo raquídeo, e sentir que o poder da visão, presente nos olhos, fluem através do nervo óptico para a retina. (...) Fixar o olhar entre as sobrancelhas, imaginando que o fluxo da energia vital se dirige desde o bulbo raquídeo para os olhos, transformando estes últimos em dois focos de luz. Este exercício produz benefícios tanto físicos como mentais. (Ibid., p.114)

Yogananda, desta forma, faz uma releitura do clássico e importante mudra da doutrina medieval yoguica, o shambavi mudra, pelo prisma da fisiologia científica. Isto é o que toda a geração atual de yogues fez. Em outra obra, Kriyananda (2007), comentando o seu guru Yogananda, volta a se referir ao bulbo (ou medula oblonga) e ao nadi sushumna como a espinha, e prana como energia.

(...) o caminho do despertar divino é, conforme dissemos, a espinha. A energia penetra no corpo através da medula oblonga, na base do cérebro. (...) A energia (...) transita pelos nervos [nadis] (...) até o cérebro, desce pela espinha (...). Quando, por ocasião da morte, a consciência se retira do corpo, a energia primeiro recua das extremidades para a espinha, sobe por ela e sai pela medula oblonga, deixando o corpo. (p.51)

O bulbo ou medula oblonga para Yogananda possui também, um pólo negativo e outro positivo. O primeiro, que corresponde ao ajna chackra, situa-se no próprio bulbo; e o segundo, que o reflete, localiza-se na confluência dos três principais nadis (ida, pingala e sushumna), que ele reinterpreta como sendo os nervos (Ibid., p.51), da região conhecida como shambavi mudra, dentro da anatomia e da fisiologia sutil do Yoga (WOODROFFE, 2004, p.56). A evocação reiterada ao bulbo não se refere à ciência da fisiologia, mas é absolutamente coerente dentro da fisiologia sutil religiosa construída pelo Yoga, pois esta região cerebral ser a responsável por inúmeros nervos motores e sensitivos cranianos. Logo, no Hathayogapradipika, segundo Iyengar (2001), o Yoga é prana-vrtti-nirodha (acalmar as flutuações da respiração), já no YogaSutras afirma que Yoga é citta-vrtti-nirodha (acalmar as flutuações da mente) (p.29); assim, é lícito pensar, dentro desta nova racionalidade fisiológica sutil do Yoga que o bulbo tenha participação direta nesse processo, como afirmam os yogues acima, pois ele também é o centro respiratório pela fisiologia científica.

[O yogue] pode-se perguntar: o olho espiritual [ajna chackra] é puramente simbólico? Não, é real e constitui, de fato, um reflexo da medula, a partir da qual a energia desce a espinha por três nadis ou canais sutis de força vital [prana]. (...) A espinha é o canal principal por onde a energia flui. O fluxo ascendente da energia [que conduz kundalini] pode ser bloqueado por alguns plexos [chackras] na espinha, de onde ela passa para o sistema nervoso e daí para o corpo, sustentando e ativando os diferentes órgãos e membros. Quando em meditação profunda, o yogue transfere energia do corpo exterior [koshas] para a espinha e a faz subir para o cérebro [último chackra], ele encontra essa passagem bloqueada pelo fluxo externo de energia proveniente daqueles plexos (ou centros, mas que nos tratados yoguicos recebem o nome de chackras). A energia de cada chackra deve ser conduzida para a espinha a fim de prosseguir sua jornada ascendente. (KRIYANANDA, 2007, p.52-53)

Yogananda, na voz de seu discípulo Kriyananda, continua a sua argumentação questionando-se se a sua descrição é real ou puramente imaginativa, e dá a sua representação dos chackras aos plexos, e os nadis - canais da fisiologia sutil do Yoga - aos impulsos nervosos autônomos e centrais, além de, a todo tipo de passagem por dentro do corpo como o ar, a água, o sangue e aos nutrientes (IYENGAR, 2005, p.274; SOUTO, 2009, p.42). Os chackras também sofrem ressignificações significativas na sua interação com ciência fisiológica. Eles continuam a ser representados nos corpos sutis, mas ganharam correspondências das mais variadas dentro da fisicalidade orgânica da fisiologia científica, como plexos, glândulas e junções celulares (gap junctions), como se observa nas pesquisas modernas, mas também na voz da doutrina yoguica.

Chakras são centros da energia espiritual. Eles estão localizados no corpo astral, mas eles possuem correspondência com centros no corpo físico também. (...) a certos plexos no corpo físico. (SIVANANDA, 2000, p.7)

Mais de dois milênios atrás, Patanjali deu-se conta da importância do cérebro. Ele descreveu a parte frontal como o cérebro analítico, a posterior como o cérebro do raciocínio, a inferior com a sede do estado de graça (o que, a propósito, corresponde às descobertas da ciência médica moderna, segundo a qual o hipotálamo, situado na base do encéfalo, é o centro do prazer e da dor), e a parte superior como o cérebro criativo ou sede da consciência, a nascente do ser, do ego ou do orgulho, o berço da individualidade (IYENGAR, 2001, p.174).

Por meio (...) das posturas do Yoga, podemos ajudar a suprimir e aliviar a congestão dos nervos ou das vértebras (nadis), facilitando assim o livre fluxo da energia vital (prana). (YOGANANDA, 2008, p.43).

O yogue, segundo Yogananda (2009), “faz circular mentalmente sua energia vital [prana] (por meio das técnicas físicas, kriyas, ásanas, mudras e pranayamas), em direção ascendente e descendente, ao redor dos seis centros da coluna vertebral [chackras] (plexos medular, cervical, dorsal, lombar, sacral e coccígeo)” (p.248). Muitos yogues contemporâneos têm realizado paralelismos puros e simples, como associando diretamente os centros energéticos sutis de susumna aos plexos e a medula da anatomia científica. Mesmo o Swami Kuvalayananda, o mais afinado com a ciência fisiológica dos yogues descritos, afirma que “havendo condições, os chackras poderão ser investigados cientificamente” (SOUTO, 2009, p.46).

Percebe-se que as aproximações das escrituras yoguicas modernas esforçam-se em estabelecer conjunções com a fisiologia científica como se elas precisassem destas para manter-se vivas, ultrapassando as simples analogias anatômicas. Há tentativas de aproximações reais entre os dois saberes (ciência e religião) por parte também de cientistas, mesmo admitindo estes que os fenômenos religiosos associados a fisiologia sutil do Yoga não podem ser reduzidos a simples processos físicos (MAXWELL, 2009). Estes argumentam que ignorar as possíveis repercussões físicas entre a fisiologia sutil com a científica seria tão contraproducente quanto ignorar os seus aspectos transcendentes dentro das práticas religiosas. Um fato semelhante também ocorre com a fisiologia sutil no Espiritismo brasileiro, que compara há muito, a glândula pineal com os chackras ou mesmo como a sede anatômica da mediunidade humana.

No plano fisiológico, pingala corresponde ao sistema nervoso simpático; ida, ao parassimpático; e susumna, ao sistema nervoso central. (...) A frieza atribuída a ida (pois, corresponde dentro da representação simbólica da fisiologia do HY medieval como chandra-nadi, ou “canal da lua; e pingala como surya-nadi, ou “canal do sol”) no Hathayogapradipika é explicada, pela ciência moderna, em virtude de sua ligação com o hipotálamo, situado na base do cérebro, e que é o centro responsável pela manutenção da temperatura estável do corpo. Assim, o hipotálamo é o plexo lunar, do qual desce ida, assim como pingala ascende de sua base no plexo solar. (...) Susumna corresponde ao sistema nervoso central, e essa energia divina, produzida pela fusão de ida e pingala, é vista como energia elétrica (kundalini [nota autor]), segundo a fisiologia. (...) Susumna existe em todas as partes do corpo e não apenas na espinha, porque o sistema nervoso central age em todo o organismo (IYENGAR, 2001, p.188-190).

Como se lê acima em um dos textos de Iyengar, que reúne uma série de anotações e transcrições das aulas e das palestras que proferiu na Índia, na Inglaterra, na França, na Itália, na Espanha e na Suíça, entre os anos de 1985 e 1987, é evidente a sua preocupação para associar a fisiologia científica à sutil do Yoga. Ele utiliza-se de um artifício dialógico comum aos yogues modernos, que é associar as definições físicas de um órgão, hormônio ou região corporal à fisiologia que só existe em suas escrituras sagradas. Por exemplo, como o hipotálamo realmente possui relação com o controle da temperatura corporal dentro da fisiologia científica, o autor utiliza-se das investigações biomédicas sobre as práticas respiratórias yoguicas (os pranayamas) com os tratados religiosos yoguicos medievais. Algumas pesquisas científicas que avaliaram as repercussões fisiológicas com as práticas respiratórias yoguicas afirmam que, dependendo do pranayama executado, as descargas elétricas nas narinas produzem potenciais elétricos diferentes (ALTER, 2004, p.98-100; KUVALAYANANDA, 2008, p.102-107). Iyengar (2001) afirma a partir daí, que o nadi pingala - que na fisiologia sutil do Yoga do séc.XI, está associado ao sol e à narina direita - corresponde ao sistema nervoso simpático (SNS) e possui ligação hipotalâmica, pois como ambos (SNS e hipotálamo) estão envolvidos com as mudanças da temperatura corpórea, insiste que tenham a correspondência anatômica e fisiológica (p.188).

Para o mesmo Iyengar (2001), toda a doutrina do Yoga está relacionada às posturas. Assim ele diz, que “talvez seu fígado esteja alongado, mas seu estômago está se contraindo, ou talvez o contrário”, e por isso, orienta a que se toquem em “partes relevantes” do corpo, “de modo que se movimentem harmonicamente” (órgãos e músculos físicos), complementando, que “eu toco de leve a parte em que as células estão mortas para que possa ocorrer uma certa germinação e elas ganhem nova vida. Crio vida nessas células por meio do ajustamento [corporal], que efetuo tocando meus alunos”, no que ele intitula de “ajustamento criativo” (p.78).

É preciso registrar que mensagens vêm das fibras, dos músculos, dos nervos e da pele do corpo, enquanto se está fazendo a postura. Você pode aprender. Não é suficiente vivenciar hoje e analisar amanhã. (Ibid., p.80)

Purusa, a alma, é o senhor do corpo, sua morada. O [músculo] diafragma, acima da sede da alma, é representado na história pela base da montanha. A montanha representa o peito, e o movimento de agitar as águas representa a inspiração e a expiração. (Ibid., p.181)

O pranayama está na fronteira entre os mundos material e espiritual, e o [músculo do] diafragma é o ponto de encontro dos planos fisiológico e espiritual do seu corpo (...) Lembre que kumbhaka não é segurar o fôlego; é reter energia [prana]. (Ibid., p.186)

Kuvalayananda (2008) nos seus comentários faz extensas exposições fisiológicas e anatômicas precisas e condizentes com a biologia, e tece duras críticas às descrições fisiológicas sutis das práticas yoguicas que ele considera como crenças populares, pois não estão pautadas em pesquisas laboratoriais (p.104 em notas). No entanto, frequentemente e ao longo de seus principais livros (Asana e Pranayamas), não deixa de salientar o valor “espiritual” do ásana ou do pranayama descritos pela fisiologia das suas investigações laboratoriais.

A firmeza do pescoço e dos ombros, a vigorosa pseudo-inspiração precedida da mais completa expiração e o simultâneo relaxamento dos músculos frontais abdominais, que antes estavam contraídos, são as três ações que completam a técnica da Uddiyana (KUVALAYANANDA, 2005, p.56).

[Paschimatana é executado quando] Sentado, o estudante mantêm as pernas esticadas e unidas. Inclina então o tronco um pouco para a frente, forma um gancho com os dedos indicadores e segura com eles os grandes artelhos com os dedos assegura não só o completo relaxamento, como também um completo estiramento dos músculos posteriores das pernas. (Ibid., p.120)

Esse exercício é chamado Uddiyana Bandha porque as contrações musculares, acima descritas, permitem a subida da força espiritual (essa força permanece presa na região inferior do abdomen. Uddiyana é um dos diversos exercícios capazes de libertar essa força e de fazê-la subir pela coluna espinhal – em notas). (...) Seu valor terapêutico, nos casos de prisão de ventre, (...) etc., é muito grande. Seu valor espiritual é maior ainda. (Ibid., p.57-58)

A Paschimatana é considerada de grande valor espiritual. São conhecidos casos em que sua prática por cultores espiritualistas permitiu que o praticante ouvisse o Anahata Dhvani, isto é, o som sutil. O tempo de permanência na Paschimatana deve ser criteriosamente regulado. Quando continuado por muito tempo, causará prisão de ventre. (...) Para finalidades espirituais, entretanto, esta Asana deverá ser praticada diariamente por mais de uma hora. (Ibid., p.122)

Como exemplo, selecionou-se do seu livro Asanas alguns trechos que esclarecem o paradoxo criado pelas pesquisas fisiológicas científicas na doutrina moderna no Yoga. Por intermédio das suas explicações científicas sobre o uddiyana bandha e paschimotanasana (ou paschimatana), Kuvalayananda se contradiz. Em Asanas por exemplo, Kuvalayananda dedica um capítulo inteiro ao Estudo científico das posturas yóguicas (p.147-164), dividindo os ásanas em Meditativos e Culturais. O objetivo das posturas Culturais é puramente orgânico, segundo o autor. Kuvalayananda descreve toda a sua tradição da pesquisa fisiológica dos benefícios terapêuticos, em particular do fortalecimento e alongamento da coluna vertebral, assim como as posições anatômicas e as inserções articulares e os principais grupos musculares envolvidos. Como Iyengar e quase todos os yogues modernos, ele também se preocupa muito com o seu método de ensino. No aspecto Meditativo dos ásanas, continua o swami, o alvo é estabelecer-se numa postura confortável para a execução dos pranayamas e dos estados contemplativos do Yoga (samyama), respeitando toda a tradição yoguica desde Patanjali. No entanto, entre as narrações altamente versadas sobre a ciência e as suas observações, surgem demonstrações altamente pautadas na fisiologia sutil religiosa e não na fisiologia científica. Por exemplo, após descrever que os ásanas Culturais têm por objetivo fortalecer a coluna, influenciar as áreas cerebrais e produzir “o mais alto vigor orgânico para todo o corpo”, esclarece que isto deve ocorrer para que ambas “possam suportar a interação da força espiritual do kundalini, quando a mesma for despertada pelas práticas yoguicas adiantadas” (Ibid., p.147).

Esse aumento do suprimento sanguíneo e o consequente fortalecimento dos nervos é responsável até certo ponto pelo despertar de Kundalini (...) (KUVALAYANANDA, 2006, p.162)

O que é a kundalini senão um preceito fisiológico sutil fruto do auto-estudo, da fé nas escrituras sagradas e das experimentações da religiosidade ancestral yoguica? É paradoxal intentar elaborar uma explicação empírica por meio da fisiologia científica para práticas religiosas. O empirismo da fisiologia científica não explica, por si só, a fisiologia sutil religiosa dos nadis, da kundalini e dos chackras. Então, por quê os yogues enverdaram por esse caminho? Para sobreviver a secularização talvez, pois entre cair na mística – fato já presente e condenado pela sua geração pelos custos elevados à moral da sua religiosidade e do seu povo frente aos ingleses, classe dominante da Índia moderna – e se debruçar sobre as bancadas de laboratório e na releitura da sua doutrina pela luz ciência fisiológica, que proporcionaria elevar o nível de sua prática de “primitiva” a científica – fato este inédito – optam (os yogues modernos) pelo segundo. Este foi o caminho mais árduo e paradoxal, mas talvez de outra forma, o Yoga teria ficado sucumbido aos ostracismo. Por outro lado, obrigou toda a comunidade e organizações yoguicas modernas, gostando ou não e, sob o olhar crítico da ciência, mergulhar na ressignificação da sua fisiologia sutil religiosa.

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