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Foto do escritor: PhD. Roberto SimõesPhD. Roberto Simões

Atualizado: 17 de out. de 2022


Cultura é um conjunto de costumes, ideias e comportamentos de um determinado coletivo. Tradição é a transmissão dessa cultura de uma geração a outra. Toda cultura, portanto, é uma invenção humana (leia Roy Wagner, A invenção da Cultura). E toda cultura humana só se torna visível pelo "choque cultural" que produz ao estrangeiro. Este, em choque, de forma automática, inventa um jeito de entendê-la. Assim, nascem todas as tradições de yoga, com suas escolas, ordens religiosas e metodologias que conhecemos. Estas, por sua vez, podem ser transmitidas de forma oral, escrita, mas sobretudo, todas, passam de geração em geração, de forma corporal.


A tradição religiosa afro-brasileira, por exemplo, é oral, a católica é escrita. A tradição védica (essa cultura indiana inventada), foi oral por milênios e, só por volta do século II a.C., transcrita, ou seja, passou a ser transmitida de forma escrita. Os hinos védicos, portanto, eram cantados e, não apenas "recitados". Há uma imprescindível incorporação para se compreender uma cultural oral e, muito mais ainda, as suas tradições. Por isso que se diz, ser "uma ingenuidade ler um texto oral uma ou duas vezes" e supor que já o compreendeu. Segundo Fu Kiau, do Zaire, toda tradição oral "deve ser escutado, devorado, digerido, como um poema, e cuidadosamente examinado" para que se possa apreender seus múltiplos significados (apud J.Vansina, A tradição oral e sua metodologia).


Já está bem documentado que a tradição hatha-yoga Natha (e suas inúmeras ordens e subgrupos religiosos), são constituídas por muitos poetas (leia A.Muñoz e D.Lorenzen, Yogi Heroes and Poets: Histories and Legends of the Naths). Toda poesia natha expressa verbalmente uma rítmica de afecções (sensações, sentimentos, pré-sentimentos, emoções) que atravessa corpos de um dado coletivo, mas condensados no verbo, antes, no corpo. Todo yogin-natha-poeta é um observador atento da sua realidade, e não seria isso mesmo a definição do que é ser (ou estar) yogin?


Já é também exaustivamente demonstrado, que Yoga não possui uma, mas várias "raízes" (leia M.Singleton, The roots of yoga). O trabalho mais recente e importante sobre Yoga possui, já no seu título, o plural de raiz, corroborando conosco que a Cultura e as tradições yoguicas serem multifacetadas. Isso nos autoriza a pensar Yoga não enraizado, ou fincado na terra, mas rizomático. Ou seja, não é que suas raízes estejam "perdidas", aguardando serem resgatadas por abnegados mestres, gurus ou acadêmicos, mas espalhada pelo solo e produzindo infinitas dobras de si mesma, sendo inventada, convencionada e reinventada mais uma vez. Os yogins ascetas errantes (os sadhus), por exemplo, pertencem a uma cultura e tradições distintas dos yogins da cultura e tradições védicas. Ficou convencionado, nestes últimos 120 anos (desde Vivekananda), que o Yoga-Sutra de Patanjali, ser a base textual de todos os yogins do mundo - a "Bíblia do Yoga" -, mas isso não se sustenta pelo que apresentamos até aqui.


Segundo a pesquisadora Daniela Bevilacqua, investigando os yogins sadhus contemporâneos (aqueles que estão vivos hoje, peregrinando pelas ruas da Índia), que a sua imensa maioria nunca leram um sutra de Patanjali e, alguns outros, nem de sua própria tradição yoguica - como o Pradipika ou o Gheranda. Nos parece lícito pensar que a tradição dos yogins sadhus é, eminentemente corporal; ou seja, eles não são intérpretes de seus textos, mas experimentadores. A tradição yoguica dos sadhus (Hatha-Yoga) e suas inúmeras ordens religiosas (sampradayas), pertencem a uma cultura yoguica ascética, ou seja, canais espirituais de mestre para discípulo (parampara). Mas o parampara é muito mais corporal, do que oral e, muito pouco, textual, numa acepção como entendemos entre os exegetas cristãos, por exemplo. Os sadhus incorporam costumes, práticas, gestos, regras yoguicas de sua cultura ascética nas experimentações que realizam, sobretudo, nos tapasyas (leia D.Bevilacqua, Let the sadhus talk).


Meu foco de estudos sempre foram os yogins vivos e não os que já morreram, por isso me interessa menos como eles viveram (o que não desmerece quem se dedica ao estudo arqueológico e filológico - até teológico - de seus textos, costumes e comportamentos), e muito mais como vivem hoje. Por isso, sempre me perguntei o porquê algumas formas de yoga (e yogins) são legítimas e outras não. No meu mestrado investiguei como as escrituras do yoga se ressignificaram no seu encontro com a Ciência, sobretudo a biomédica. Dissertei ali, que muito da fisiologia "sutil" havia sendo redesenhada com os contornos da fisiologia científica: nadis como sistema nervoso e chackras ao sistema endócrino e etc. Meu objetivo não estava na mística e, muito menos, em "desmascarar" os yogins modernos, como Iyengar, Jois ou Sivananda; de como eles estavam se "apropriando" da Ciência ou se tornando mais "comerciais" ao público "ocidental"; mas nas inovações culturais de uma antiga tradição, que não mais se encaixava frente a nova Cultura ("Ocidental") em que estava sendo transplantada (ver SIMÕES, 2013). O yoga entre os brasileiros que investiguei e os yogins-sadhus indianos de Bevilacqua traçam linhas-de-fuga constantes, pois vivos e coexistem com os contraditórios de seus próprios contextos sociais atuais. Mais simples, há uma tradição que nasceu à 122 anos (1897 com Vivekananda até hoje, 2022), que hoje denominamos de Yoga Postural Moderno, mas há também uma dobra dessa tradição yoguica embrionária sendo gestada em geografias espirituais fora do contexto espiritual asiático, são inspiradas nestes, sem dúvidas, mas não, de forma alguma, "iniciadas" por aqueles (ver SIMÕES, 2018).


No doutoramento sai à campo e entrevistei yogins brasileiros que se dedicavam a "formar novos professores de yoga" (ou yogins) inspirados, mas fora da Cultura e Tradições Yoguicas indianas. E, para espanto de alguns, viram eu desenvolver a tese que o Yoga Brasileiro era malandro, pois poderia ser compreendido como uma (possível) nova religião em andamento no país (leia R.Simões, Yoga Malandro: sofrimento, libertação e outras ficções).


Quando Mircea Eliade escreve sua tese (M.Eliade, Yoga, Imortalidade e Liberdade) descreve a tradição dos yogins sadhus que Bevilacqua estudou hoje, como selvagens e primitivos, como proto-yogins feiticeiros, o que não é uma inverdade, mas ele utiliza essa expressão de forma pejorativa e imoral. Foi a trinca de pesquisadores M.Eliade, G.Feuerstein e H.Zimmer que inventaram uma "tradição yoguica" onde Patanjali e seu Yoga-Sutras, são a própria personificação ideal e absoluta do Yoga, e as demais (tradições hatha-yoguicas) como secundárias; as mesmas que hoje continuam vivinhas-da-silva, como já demonstramos com o trabalho de Daniela Bevilacqua. É só por volta dos anos de 1990, que uma pesquisadora norte-americana, E.DeMichelis, "funda" a Tradição Yoguica Moderna (leia A History of Modern Yoga: Patanjali and Western Esotericism). Mais simples, Eliade e seus colegas descredibilizavam os yogins modernos como falsificações, e elegeram Patanjali como a "régua" moral de toda a Cultura Yoguica; mas é DeMichelis e seus principais alunos (sobretudo M.Singleton) que legitimam os yogins modernos, mas ignoram completamente todas as inovações nascentes yoguicas que se desdobraram para fora da cartografia espiritual asiática, como "neoliberais" (ver Andrea Jain) ou "apropriacões" e etc. Eu não descarto que muitos realmente o sejam, mas há muitas experimentações yoguicas que não se encaixam facilmente assim, como os yogins restaurativos, sarra-yogins, yogares que se mesclam com a capoeira de angola no Brasil e, mesmo as aproximações entre comunidades religiosas ayahuasqueiras e o yoga, dentre outras (leia R.Simões, Early Latin American Esoteric Yoga as a New Spirituality in the First Half of the Twentieth Century. International Journal of Latin American Religions, v. 1, p. 1-25, 2018).


Quais as semelhanças que fazem as diferentes tradições yoguicas serem identificadas como Yoga? Há uma resposta fácil e outra longa. A fácil é, pois, aquelas "convencionais" ou que gozam de hegemônicas, são as dominantes e, por isso, ditam as regras. A longa é compreender como esta ou aquela tradição se torna dominante, pois goza de círculos de consagração de poder (leia P.Bourdieu, A economia das trocas simbólicas). Não há espaço aqui para destrinchar a teoria de Bourdieu, mas entenda que os grupos dominantes de uma Cultura organizam-se em torno de símbolos que aumentam o seu valor, tornando suas invenções culturais, tidas como naturais, absolutas e "perfeitas em si-mesmas" (ver Wagner, A invenção da Cultura").


Retornemos a Mircea Eliade e sua invenção da tradição yoguica que se torna hegemônica entre os yogins modernos. Ele, um cientista europeu, naturalizado norte-americano conquista sua autoridade, nos círculos de consagração do poder acadêmico a partir de suas pesquisas sobre religiões "orientais" (ver P.Bourdieu). M.Eliade, essa "autoridade", tanto entre os colonizadores, e parte dos colonizados indianos, se junta a um clérigo da religião dominante da Índia colonizada por europeus, Surendranath Dasgupta que, igualmente a Eliade, é um acadêmico com doutoramento em Cambridge, portanto, goza da "autoridade" de um sacerdote e também "acadêmico" legitimado pelo colonizador. E, juntos, consagram Patanjali como a obra mais "filosófica e completa" sobre yoga de todos os tempos históricos, relegando as demais tradições e culturas yoguicas - igualmente legítimas, como os yogas jainistas, budistas e demais denominações heterodoxas ao hinduísmo - como "manuais preparatórios" ao Yoga Real ou da Realeza (Raja Yoga). Isso, perceba bem, não desmerece Patanjali e muito menos os yogas que se baseiam na cultura hinduísta que o Yoga-Sutras constrói sua Tradição. Mas é só mais uma cultura yoguica inventada e suas tradições, como todas as outras, transmitidas por gerações.


A Tradição da Umbanda é um exemplo de transmissão religiosa oral. Não há nenhum texto "original", "raiz" que funda a Umbanda. A sua Cultura, retomo aqui minha tese, foi, majoritariamente (e continua assim), transmitida de forma CORP|ORAL. É a cada gira no terreiro que a tradição umbandista é atualizada no corpo do babalorixá. É ele, autorizado pelo seu círculo de consagração de poder, que outorga carisma nele transmitir sempre a verdade de sua cultura (leia M.Weber, Economia e Sociedade).


Weber definiu o carisma como uma certa qualidade da personalidade de um indivíduo em virtude da qual ele é considerado extraordinário e tratado como dotado de poderes ou qualidades sobrenaturais, super-humanas ou, ao menos, especificamente excepcionais.

Defendo a ideia do Yoga, como ocorre na Cultura dos Yogins-Sadhus e na própria Cultura Védica por milênios e da Umbanda, uma Tradição sendo transmitida de forma corp|oral. Sim, é oral, mas como vimos, antes, se passa no corpo, digerida, para depois, ser transmitida de mestre para discípulo (parampara). A dinâmica culturais yoguicas (e suas tradições multifacetadas) não é e nunca foi estática em sua transmissão como buscamos demonstrar, mas vive entre os yogins ascetas|sadhus, os yogins modernos posturais e as novas denominações sendo inventadas agora nas praças, favelas, centros de assistência psicossocial, sistemas únicos de saúde, entre capoeristas, ayahuasqueiros, moradores de rua, dentre outras tantas experimentações sem transmissão tradicional guru-discípulo, da convenção espiritual que compõem a Cultura Yoguica das matrizes indianas. Em suma, há inúmeros corpos yoguicos se desviando dos yogins indianos que compõem reinvenções yoguicas ainda não estudadas, e sendo ignoradas, do mesmo modo que Eliade o fez com o que hoje compreendemos como yogas posturais modernos.


Isso não faz desses novos jeitos de yogar melhores, menores, mais ou menos "tradicionais", autênticos, falsificações do que outros consagrados e, hoje, hegemônicos; estes (e mesmo os mais comerciais e marqueteiros) são yogas tanto quanto qualquer outra invenção cultural anterior. Se eles farão uma tradição crescer e conquistar maioridade, essa é outra história ainda a ver. Mas que são yogas, mesmo que desprovidas de matriz indiana, isso não há dúvidas. São todos pertecentes à Cultura do Yoga.


Todos as formas de yogar que conhecemos, visam eliminar o Eu que o nosso coletivo edificou em nós. A antiga tradição dos yogins sadhus rompem laços com a família, se tornam celibatários e dedicam suas vidas a servir um guru e sua ordem religiosa (sampradaya). Em troca, zeram seus carmas libertando-os do sistema de castas, que os assujeitavam a viver uma única e defintiva estética de existência possível. Yogins da tradição moderna obedecem à outra lógica; se dedicam as suas escolas iniciáticas com outras regras e leis, diferentes a cultura dos sadhus, mas igualmente com a esperança de alcançar um novo Eu. Ambos creem que a ordem social em que vivem os alienam (avidya), nutrem-se da fé ou propósito (sankalpa) no yoga os conduzir a uma geografia espiritual sem sofrimento, libertos em vida (kaivalya ou moksa)!


Quando um yogin com esquizofrenia do CAPS em Florianópolis, pertencente à cultura yoguica restaurativa, portanto, um yogar contemporâneo brasileiro e sem matriz indiana, pergunta ao final de uma aula, depois de mais de 90min no savasana ritual,

...que lugar é esse que você me levou que eu não sentia mais doente da esquizofrenia?

Ele, provavelmente, vivenciou o mesmo que um sadhu da cultura ascética ou um darsana-yogin da cultura védica, algo muito próximo descrito nas escrituras yoguicas e relatado por yogins experientes, um estado de samadhi. O seu Eu esquizofrênico, aquele ordenado pela sociedade em seu "sagrado" livro DSM-V e legitimado pelos "xamãs civilizados" - os psicólogos, psicanalistas e psquiatras -, perdeu, mesmo que momentaneamente, sua pertença no mundo dele, abrindo-se para uma possível nova realidade. Enquanto o sadhu natha perde seu status de pertença de casta, este yogin-restaurativo do CAPS, perde seu status de doente e, ambos (hatha-yogin-sadhu e yogin-restaurativo) reconquistam suas posições de humanos extraordinários. Não teria sido o Budismo uma invenção de um princípe indiano que, praticando e sendo iniciado nas ordens yoguicas ascéticas da tradição yoguica da sua época, um inventor de uma realidade onde o sofrimento de muitos corpos assujeitados pelo Vedas (organizados pela tradição religiosa e política védica) deixara de existir, após um longo processo de iniciação espiritual?


A Cultura Yoga e suas infinitas possíveis tradições (e cosmologias próprias) aqui, então, alarga sua superfície conceitual, política e espiritual para experimentações corporais de dissolução (ou afastamento temporário) do Eu social-pessoal, para uma tomanda de consciência libertária para outras formas de existir, não seria isso moksa ou kaivalya?


Ciente que muitos mais estudos e debates devem ainda ser realizados, espero ter conseguindo contribuir com mais um seixo na ampla discussão sobre yoga e suas intersecções com a sociedade, a política e a religião de nosso tempo para fora dos muros duros de tradições e culturas ainda percebidas de formas que excluem o diferente e o contraditório do yoga hoje (e de todos os tempos), integrando-os a coexistir para além de retóricas de aniquilação do diferente de mim.

Foto do escritor: PhD. Roberto SimõesPhD. Roberto Simões

Atualizado: 27 de set. de 2022


O Yoga é uma invenção humana que não se deixa capturar. Sim, sim, você e eu, provavelmente, fomos capturados por um yogar X ou Y. Eu, por exemplo, fui "formado" pela tradição de Kaivalyadhama, uma formatação que tem como lema, ser um "yoga científico", outra invenção. Mas nem o hinduísmo, o budismo, o cristianismo ou o Yoga são revelados, mas inventados. Cada um deles, por sua vez, produziu centenas de outros processos desviantes: theravada, soto-zen, mahayana e etc, compõem toda cultura budista.


O hinduísmo e o próprio "oriental", é uma criação europeia

Os cristãos, por exemplo, desenvolveram, ao longo de 2 mil anos, múltiplas variações de si mesmos: apostólicos, calvinistas, presbiterianos, os infinitos cultos ao pentecostes, e outras, tudo invenção humana. E com o Yoga não difere, temos os aghoris, kapalikas, nagas, nathas, iyengueiros, kundalini-yogins, acro-yogins, anandas-marga, awaken-lover's... Não caberia aqui tantas diferenciações que existem hoje, existiram e irão ser "existidas".


Todas essas invenções culturais espirituais e suas dobras produzem mais tensões no campo. Nenhuma tentativa de unificação trouxe paz; na bem da verdade, a busca pela harmonia espiritual produziu inúmeras guerras-santas e mortes.


O fim das invenções espirituais (resolvida por uma só igreja, seita ou culto) é a morte prematura de vidas pulsantes - mesmo o ateísmo ou agnosticismo, são matizes espiritais possíveis de se estar. Vivemos em caosmoses!

Esse campo de batalha é lindo, pois o fim da guerra, como bem explica o Gita, é um delírio de covardes, que pressupõem transcendentes e absolutos como fim revelados por indivíduos especiais, escolhidos ou messiânicos. Dessa delirante falta de imaginação de possíveis realidades coexistindo, surgem as castas, as classes e raças, num ordenamento vindo de fora para dentro, esquecendo-se completamente de nossa habilidade humana de vidas coletivas conviverem com o diferente, com o espanto.


Deixamos de nos admirar com o novo, de novo. Todes yogins (e outres xamãs, bruxas, pajés e feiticeiros) pertencem à sociedades guerreiras que, marcados pela terra, lutam contra toda e qualquer tipo de colonização de corpos e, ato contínuo, pensamentos. Yogins autênticos são como quilombolas, caboclos e canudenses resistindo e inventando seus próprios modos de vida coletiva.



Vidas fascistas são o oposto disso. Se organizam em torno de corpos dóceis, domesticados e adestrados a não desejarem luta, mas resignarem-se por trás de karmas, dharmas, símbolos e livros. Vidas vigiadas e punidas por qualquer desvio da régua imaginária com seu centro fincado em outro mundo.


Há toda uma economia cármica e meritocrática que orbita no corpo de déspotas e acumuladores de coisas - povos da mercadoria e cultuadores de cargas

A outra forma de organização social é a primitiva, comunista e selvagem. A cultura inventada por esses povos é nomádica e não-consensual, mas bonsensual. Seus líderes não são "representantes do povo", mas guardiães dos costumes e hábitos, constantemente postos à prova e reinventados frente as contradições inerentes da vida. Outra função do líder é manter-se em guerra constante (estar à espreita) às tentativas de fusão cultural, ou seja, da uniformização das nações - o que seria o fim das invenções e da singularidade humanas. Essas nações guerreiras, selvagens e nômades podem até se unirem para um fim comum e temporário: construção de uma roça, festividades religiosas, reuniões conciliatórias, casamentos, mas sobretudo, contra outra nação paranóica ou neurótica que passa a desejar expandir sua cultura para outros povos - ao invés de culto ao diferente, passa a desejar o delírio de um déspota. Todos os yogins em nomadismo lutam contra expansões imperialistas e capitalíticas.


Os europeus, quando chegaram na costa das Américas em fins de 1400, por quase 100 anos foram vistos como mais um povo chegando pelas bandas de cá. Foram bem aceitos em sua cultura, curados de suas feridas, dado banho neles, apresentados a fartura de alimentos e pluralidade de costumes. Nunca um tapajó ou guarani, por exemplo, pensou em transformá-los em iguais a eles.


As culturas selvagens, nômades e guerreiras abraçam a diversidade e não as excluem, pois dependem delas para explusar de dentro de si, o desejo pelo acúmulo e a hegemonia de um só desejar. Se festeja a diferença!

A colonização e a uniformização dos mesmos gostos, arquiteturas, desejos e estéticas de existência surgem apenas em corpos que desaprenderam a fazer fluir tesões nos desarranjos tensionais pulsáteis - analfabetos corporais, não sabem mais como fazer passar coisas diferentes. Os povos sedentários percebem|sentem tudo o que é diferente deles, como errado, imoral, sujo, corporal, emocional e irracional. É uma total incompetência em lidar com o espanto, o esquisito, o corpo que sente e percebe o outro: propriocepção negativa. Vivem por 2 afectos: o medo e a esperança.


Toda a cultura humana se torna visível pelo "choque cultural" que produz ao estrangeiro.


Quando outro corpo (forasteiro ou outsider) se espanta, automaticamente, concretiza uma invenção para entendê-la.

Não é imaginação (esse delírio, pois não embasada em dados materiais da realidade), mas criatividade, pois se inventa parâmetros vitais àquela outra realidade na sua própria. E isso ocorre depois de sucessivas experimentações. Mas se inventa, não para aniquilar o outro, cooptá-lo; o que se deseja mesmo é comê-lo vivo, com respeito e honra em tê-lo agora, totalmente transubstanciado no e pelo próprio corpo. Eu não me converto ao outro (ou o forço ser nós), o transformo, alquimicamente, como parte de mim também.


Os guaranis rezavam o Pai-Nosso na praia com Pe. Anchieta de manhã, e participavam do banquete ritual de um tupinambá capturado em guerra à noite.

Todos os yogins sem motriz indiana, aqueles da geração posterior aos modernos, são inventores de um novo yogar, do mesmo modo, que os yogins indianos modernos e pré-modernos (como os sadhus hoje, que perambulam pelas ruas da Índia), reinventam seus yogares também. Estamos, todos os yogins saudáveis e curados, em guerra constante. Nossa singularidade coletiva (e não individualismo) depende disso. Uma guerra em honra do próprio Yoga.


Roy Wagner fala dos antropólogos reversos, aqueles nativos que também fazem seu trabalho de campo, pois sofrem seus próprios choques culturais, e inventam, igualmente, uma cultura para o antropólogo acadêmico e profissional. Não seriam estes os yogins posturais modernos desde Vivekananda que, estimulados por seus gurus, levaram seus yogas inventados às terras dos colonizadores? Antes deles o destruírem por completo, reinventam-se mais uma vez. Ao mesmo tempo em que Vivekananda transforma seu próprio jeito de yogar neste processo de campo, protege a sua tradição, atualizando-a em seu corpo, na inventação de um novo yogar.


Yogins e seus yogares bhakti, jnana, hatha, mantra e raja; yogins e seus yogares antigos, "clássicos", medievais, modernos e contemporâneos; yogins e seus yogares sedentários, nômades, capitalistas ou "lojistas"; yogins e seus yogares aghoris, nagas, nathas, kapalikas, "tantras" e kamphatas... todos aqui, são invenções yoguicas humanas.


A tradição yoguica não se deixa domesticar

Se a cultura humana é criativa, inventando, como no "ocidente", tantas formas de yogar, então a cultura indiana também têm de sê-lo (SAID, O Orientalismo).


Em recente pesquisa se demonstrou que a maioria dos yogins indianos ascetas contemporâneos, iniciados por ordens religiosas do século X-XVII, portanto, com mais de 500 anos de tradição, não têm o hábito de ler ou seguir a doutrina das escrituras "tradicionalmente" yoguicas, como Yoga-Sutras, Pradipika, Gheranda e outras (BEVILACQUA, sem data. Let's the sadhu talk). É a cultura yoguica postural moderna (essa nova tradição em andamento), gestada na própria cartografia indiana, que inventa esse habitus e escolhe Patanjali-Yoga como seu método preferido. Isso foi uma escolha dos modernos, pois a cultura yoguica medieval dos sadhus contemporâneos na Índia continua oral, na verdade, diria, corporal.



Cada yogin asceta errante indiano hoje, atualiza sua tradição no corpo - a cada prática, uma experimentação

E a cada experimentação de um tapasya, um corpo yogin é produzido pelos afectos de sua ordem espiritual, de outras que ele encontra, do corpo do seu guru que ele presta seva e de todo entorno social, político, psicológico e religioso que o atravessa. É uma alquimia corporal viva que mantém o yoga atualizado, portanto, autêntico e afastado de qualquer delírio metafísico.


Por mais que possa parecer a nós, corpos colonos da Europa cristã, que kaivalya ou moksa sejam conceitos metafísicos, há sempre a possibilidade de se inventar outra perspectiva sobre. O rio Ganges é natural, mas é sagrado, ou seja, aquelas águas reais que escorrem dos Himalaias (outra geografia viva, real, material e consagrada), atravessam corpos humanos reais (e naturais), formados por 2 modos d'Deus ou Natureza (corpo|prakrti e "alma"|purusa) que se banham e absorvem milênios de cultura viva invandindo seus corpos em experimentações reais e divinas. A Natureza|Deus|Isvara é encantada e Natural tanto quanto as árvores, os rios, as pedras e os animais amazônicos aos povos da floresta. Não há metafísica alguma percorrendo os corpos em experimentação yoguica - não seria por isso que desprezam os livros e mantém a tradição corpORAL ? Assim como os xapiris (os encantados para os povos da floresta) são convidados a viverem no peito da pajelança ianomâmi, o saber de um preto-velho ou de um yogin estão ali, incorporados no babalorixá e no sadhu. Nada aqui é imaginação ou metáfora.


Entenda isso de uma vez, samadhi não é uma ideia abstrata, mas uma experimentação corpórea. Kundalini não é um algo interpretado como uma serpente enrolada na base da coluna, ela mora ali, está assentada no seu corpo agora; do mesmo modo como os xapiris o estão no corpo dos xamãs, e os santos na cabeça de todo iniciado afrobrasileiro. Não é qualquer corpo que percebe isso, só o que soube se preparar para experimentar, um iniciado que cumpriu suas obrigações e participou de um processo ritual. São anos de preparo desse corpo para sentir passar prana. Há um programa (sadhana) com propósito firme (sankalpa), formado por uma série bem específica de realizações espirituais (tapasya).


Desse modo, um yogin-antropólogo que se recuse a aceitar a universalidade da mediação, que "reduz o significado à crença, dogma à certeza, será levado à armadilha de ter que acreditar ou nos significados nativos, ou nos seus próprios", perde a inventividade cultural que se processa nele (WAGNER, p.66). Todo "choque cultural", portanto, nos força a objetificar e a buscar compreensão. A compreensão (ou discernimento, lit. viveka) só ocorre nas relações mediadas, ou seja, em dialética material e histórica. A principal ferramenta yoguica, esta que muitas vezes se confunde com o próprio ato yoguico (práxis), o yogar, a meditação, portanto, é aprender a experimentar seu corpo mediando o mundo corporalmente - e haveria outro lugar para isso acontecer?


Se todo ser humano é "o xamã de seus significados" (WAGNER, p.72), o yogin Goraksa, o yogin Sidarta, o yogin Patanjali, o yogin Iyengar e todes outros tantos yogins autênticos são corpos cozidos no fogo do yoga, gestando seus próprios significados. Mas esses significados precisam ser compartilhados em seus coletivos, tradições, ordens espirituais e outros desvios para serem aceitos naquele yoga, ou criar uma nova linha-de-fuga e tentar se estabelecer numa nova cultura. Quem autoriza algo ser ou não yoga legítimo ou autêntico, é o grupo, o povo, a nação, os nativos daquela cartografia ou aldeamento, comunidade.



Por exemplo, quando o yoga ganha corpo em territórios dominados pelos déspotas adoradores do livro Vedas, automaticamente, aqueles yogins nus, com longos dreadlocks, maconheiros e cultuadores do inconstante Shiva, causam espanto. Foi um choque cultural aos brâmanes (tanto quanto aos padres mais tarde) que, rapidamente, ressignificaram tudo em 196 sutras - contidos no Yoga-Sutras. Agora, está tudo bem, yoga é só mais uma perspectiva (darsana) aceita pelo bramanismo - Iyengar e outros antes e depois dele, fizeram algo similar, aproximando Jesus a um dos maiores yogins na Terra, quando adentram a seara cristã com seus yogamentos.


Mas inventar o darsana-yoga (ou transformar Jesus num sidhanta) não foi a aniquilação daqueles yogins cabeludos e esquisitões, mas um "trabalho de campo" do "antropólogo" Patanjali, Iyengar, Hermógenes e outres). Quando um corpo preto e periférica, vivente nas franjas do povo da mercadoria, estruturalmente racista, experimenta o darsana-yoga, faz o mesmo caminho guerreiro, nômade e selvagem de nossos ancestrais de resistência: o devora vivo e inventa mais um jeito singular de sarrar o yoga.


O yoga é posto em movimento por corpos curiosos explorando possibilidades desejantes da vida vivida.

Como tem sido a sua experiência com os yogares? Tem sido guerreiro e destemida ou covarde, ressentida e resignado pelo medo e a esperança? Militar não é "desvio do foco" metafísico que te fizeram se assujeitar para se sentir aceite, mas estar yogin. Yoga vive em corpos, não em livros, gurus ou tradições, mas em experimentações de resistência e luta. E não sou eu "achando" isso, está no próprio mito fundador do Yoga com Arjuna e Krishna, ou Shiva e Durga e seus filhos Skanda (deus da Guerra) e Ganesha (exú-mirim, abridor de caminhos com o machado de Xangô), mas também em todes os corpos vivos e de almas inconstantemente selvagens.



Foto do escritor: PhD. Roberto SimõesPhD. Roberto Simões

Atualizado: 19 de set. de 2022


Entenda isso, você não É nada, mas ESTÁ sendo. Está tudo em movimento. E onde movimenta? Em corpos. A mente também se desloca, mas isso vem depois do corpo. Quem é o motriz de suas ideias, pensamentos (adequados ou inadequados), paixões, sentimentos? Em uma palavra: seu corpo em relação.


O corpo se desloca por desejos, ou vontades se preferir. Se melhor lhe aprouver, associe a desejos e vontades como animas ou fruições prânicas - é que, mesmo prana, é só mais um conceito inventado pela mente. E, mais uma vez, que é só mais uma ideia do corpo. Toda a corporalidade que nos move produz afectos, e estes afectam outros corpos, num circuito rizomático de afecções.


Somos corpos afectando e sendo afectados o tempo todo

É uma caosmose ordenada pela mente, mas que apreende o mundo pelo contato com outros, são os corpos. São eles produzindo afecções, que gestam pensamentos, num ciclo permanente de repetições e diferenças. Tornei-me redundante aqui só para você não desincorporar e assumir, novamente, sua simples-mente, forma-corpo, de novo. Fica assim, tá? Incorporado.


Puxa teu santo para terra, ou melhor, para o seu cavalo
E firmeza, firmeza no amor, firmeza na força

Mas quem organiza esses corpos para sentir e perceber? Sociedades. Elas estão de 3 formas:


Sociedades primitivas. Elas possuem esse nome não, pois, menores cognitivos e epistemologicamente, mas porque vieram na frente, são primeiras - marcam os corpos de seus indivíduos pela Terra, ou seja, eles animam a Natureza. Nossos corpos são naturais, portanto, da Natureza, assim animados pela Terra (e não por outros mundos, tipo Céu Cristão, Nosso Lar ou qualquer outro tipo de abstração, ou delírio transcendente). Nossos corpos como partes da Natureza. Seus deuses são deste mundo e não de outro. Em suma, toda a cultura selvagem dos "marcados pela Terra", têm seus indivíduos codificados pela imanência. Por isso, eles valorizam o corpo e não a mente.


Sociedades despóticas. Elas desanimaram a Natureza, portanto, seus corpos (desnaturalizados), direcionam seus desejos (ou que os animavam antes para à Terra) para fora da Natureza, assim, algo sobrenatural ou metafísico precisa nascer para organizar o mundo, e passam a cultuar deuses extra-terrestres, sem corpos de nossa Natureza, assim, se tornam desnaturados. A cultura e a ordem do mundo (e de seus corpos) são transcendentais. Por isso, eles valorizam mais a mente (ou outras invenções extracorpóreas) mais do que o corpo, que para eles, é a sede do irracional, das paixões, em suma, das ideias inadequadas.


Sociedades civilizadas. É a nossa sociedade, aquelas desaminadas com à Terra e assassina dos deuses despóticos extra-terrestres (ou transcendentes). Animam-se pelo Capital. Seus templos não estão mais na Natureza e, toda aquela cartografia metafísica que sustentava as divindades despóticas com suas castas, classes e racialidades, desapropriada e capturada. Todos os desejos canalizam estes corpos axiomatizados para o acúmulo de capital (simbólico, como likes, comendas e followers; ou em mercadorias). Seus xamãs se dedicam com afinco a enfeitiçar produtos e seus templos são os shoppings, distribuídos em inúmeras seitas e cultos: Zara, Gucci, Amazon, Patanjali Ayurved, Yoga Journal e outros.



Essas três organizações sociais são grandes aparelhos capturadores e organizadores de corpos e mentes; e estão operando agora. Um yogin indiano da ordem religiosa aghori pode estar mais próximo dos afectos de um pajé ianomâmi, do que outro indiano sacerdote brâmane, com afecções muito mais próximas a de um rabino do que um babalorixá, por exemplo.


Entrementes, um pastor neopentecostal e homem de negócios, como Silas Malafaia, onde a moral oscila por jogo políticos e ações de investimento, seus afectos estão mais próximos de yogins, igualmente businessman's, como Sadhguru (a favor da lei de cidadania que, se aprovada por levar mais 3,9 milhões de indianos na ilegalidade), Yogi Adityanath (Governador de Uttar Pradesh e divulgador da ideia que o Yoga é, exclusivamente, hinduísta) e Baba Ramdev (que afirma conseguir "curar" a homossexualidade pelo Yoga). Todos aqui, chauvinistas (entusiasmo excessivo pelo que é nacional e menosprezo sistemático pelo que é estrangeiro, minoritário, o outre diferente dele) e colados no soft power religioso de políticos de extrema-direita como Jair Bolsonaro e Narendra Modi.


Qual a saída você me pergunta ansiosa por mais um método, curso, treino, clínica, retiro, yoga camp, tradição certa, guru de verdade e qualquer solução que se compra por dinheiro ou devoção religiosa.


Eu preciso lhe decepcionar aqui para destruir em você qualquer ânsia pelo desafecto. A saída é a viver.


Exemplos como dos trabalhos de Marta Xavier e suas colegas no PerifaYoga/BA, Malu Damião/MG, Nina Sá/BSB, Anderson Martins/TO, Tainá Antônio/RJ, Miila Derzett e Paulo Vasconcellos/SC e há outres yogins anônimos que trabalham na linha de resistência que caracteriza a tradição yoguica nômade e selvagem dos corpos primitivos, marcados pela Terra e crentes da Natureza. Eles estão aí, mas são inacabados, incompletos, pois sabem que se deixarem cristalizar, morrem para à terra, deixando-se capturar pela metafísica, desincorporados e desnaturados, sucumbem ao capital e/ou ao despotismo.


Mais simples, todes yogins autênticos, são a favor do plural e sem retóricas de aniquilação (e medo|ódio) pequeno-fascista, se metamorfoseiam e ajudam outres yogins a se incorporarem (mais do que empoderarem) para estarem perigosos, e não serem um perigo a tudo o que é novo, estranho e diferente.

Seja Bem-Vinde

Você adentrou um espaço em desconstrução. Desacreditamos metafísicas, por isso bricoleurs ou feiticeiros do Yoga quebrando a demanda de todo maya que lhe enfeitiça. Mas entenda, tudo é maya.

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