Só se faz possível apreender a filosofia yoguica pelos afetos produzidos. Nenhum yogamento vive de argumentações. Um yogin que perambula 12 anos pelas ruas da Índia com um dos seus braços levantado, que passa o dia sustentado numa perna por 8 anos, sem falar (em mauna) por 20 anos, é enterrado vivo por horas e dias, possui práticas de canibalismo, uso de haxixe, ritualiza o sexo com prostitutas-santas para o alcance de moksa e siddhis, são exemplos encarnados da subversão de ordenamentos da realidade indiana, na pele de yogins.
Estes, são corpos extremamente perigosos para a integridade da tessitura social hegemonica. A força das castas, do karma, de outros tabus como comer carne, "intoxicação" pelo uso de drogas ou o celibato de monges, é absolutamente queimado no corpo destes, cozidos pelo fogo do yoga.
Qualquer yogin autêntico é um destruidor de toda e qualquer cristalização de um “eu” eterno e construções metafísicas. Ele não deseja ser “ele mesmo”, ou seja, há um esforço em não ser mais o que pensou sempre ser e toda a força coesiva da sujeição social. Não é que ele controla o corpo para atingir uma "consciência cósmica" ou Eu Maior.
Pelo contrário, eles estão matando esse Self imaginário (até aquele sadhu ideal é morto - eles não concordam entre si, nem em qualquer técnica, livro, guru ou tradição está certa), pois esses yogins ascetas errantes e suas caosmóticas ordens religiosas e tradições-rizomas, fazem de tudo para dar provas materiais que se pode alcançar a liberação (moksa, kaivalya, samadhi) bebendo urina, comendo puta, fumando bong, meditando em meio a bosta de vaca e outras escatologias espirituais e asceses masoquistas.
Eles não estão buscando afrontar, sofrer, conquistar ou vencer algo; estão fazendo passar desejos, prana, propósitos, orgones, tao, yin-yang, conatus. Enquanto sobrecodificado e, pior, desatento a essa sobrecodificação de signos sociais, não vivo, mas sobrevivo inconsciente de tudo o que se passa, me move, compõem e decompõem, mas imagino ser: campo fértil para as metafísicas germinarem.
Não é a força da mente ou a resistência do corpo que eles estão demonstrando, mas o que pode um corpo. Os yogins autênticos pertencem a tradições selvagens e primitivas. Em suas plurais ordens espirituais, desorganizam mundos imaginários que a cultura indiana estruturou em castas e organizou em karmas. O yogar (talvez não os yoga-alguma-coisa, mas o yogar) é anterior a isso tudo (yogamentos): vedas, jainas, budistas, sikhis, sufis e cristãos.
Antes, um sujeito criado e mantido pelo socius (seja estruturado pelas castas ou classes sociais), após um yogar autêntico com muito esforço|tapas e propósito|sankalpa, um indivíduo.
Yoga como aliado na desconstrução constante do eu ou a certeza da inconstante alma selvagem. Os yogins civilizados ou “lojistas” (como se referem os próprios sadhus indianos contemporâneos), aqueles nascidos sob o selo da espiritualidade do capital (e sua ordem mais recente, os neoliberais) capturam e anestesiam corporalidades, enfeitiçando yogas (yoga como fetiche): organizam tudo o que não-É, para sempre-SER.
Os yogins autênticos não, organizam e fazem passar tudo o que não somos, aquilo que não pode. Todo yogin metafísico (seja o gestado no socius despótico ou do capital) defende uma desafetação da forma de yogar. Para estes, a corporeidade é irracional, a consciência é “líder” e o corpo, algo a ser domado.
A consciência ou Eu|Self só age devido ao corpo, é uma parte dele, e não sua autonomia. O que é liberdade aos metafísicos do yoga, para os nômades (os marcados pela Natureza), é servidão.
Yogins metafísicos (aqueles sem-corpos) buscam uma “vontade pura”, mas somos o que nos movem. E o que nos move é involuntário, não irracional, pois puro desejo. Sim, somos corpos desejantes. Tudo o que os metafísicos passam vidas buscando controlar, os nômades se dedicam a surfar. Os outros corpos também me causam.
Uma onda se forma ao acaso, é imprevisível. Todo surfista metafísico é um haole, um estrangeiro, o não-local que não conhece a cartografia do pico - ele grita reclamando pela demora das séries, entra atrasado na onda, não sabe ler as marés, ventos, bancos de areia e correntes oceânicas. Vive no delírio de que algum mal ou bem acontecerá no futuro. Desse delírio, nascem todos yogins desatentos em seus yogas-Instituições com seus livros, igrejas e gurus que garantirão proteção de que esse mal (inventados por eles mesmos) não se abaterá a todos que se devotarem a eles e seus deuses que moram desterrados.
Há aqui, a criação de apenas dois afectos yoguicos: o medo e a esperança, ambos, alimentando corpos melancólicos, resignados e que se re-sentem, ou seja, passa sempre a mesma coisa em seus corpos, por isso tanto ressentimento e sempre as mesmas ideias; claro, se passa o mesmo no corpo, as ideias se repetem como uma indústria de mais do mesmo.
Seria samsara viver sentido sempre a mesma coisa?
Por pertencermos a uma tradição nova (sim, em nossa imensa maioria, fomos gestados pela tradição yoguica postural moderna), ainda não produzimos tantos corpos yoguicos, como exemplos vivos da subversão social que assistimos entre os sadhus|yogins ascetas e errantes indianos.
São todes, yogins inúteis, aqueles em yogamentos nômades, por isso, sem nenhuma expectativa de alcance do bem ou do mal futuros, vivem incorporados, portanto.
Todo acontecimento yoguico autêntico, acontece “pelas aberturas e possibilidades em latência criados no social”
Então um yogin contemporâneo indiano que manteve seu braço pro alto com os punhos cerrados por 10 anos, abre possibilidades de romper seus karmas e mete um foda-se para toda verticalização religiosa hindu orientada pelo Vedas.
Por quê?
Ele se torna um herói, santo, feiticeiro, artista do corpo para todo e qualquer indiano submetido a esse ordenamento social, político, espiritual e econômico. São todos manés de barros produzindo inutilidades exemplares.
Parece que nós temos produzidos apenas desprezadores de corpos no yogar brasileiro. Mas há exceções, como todos os yogares que encarnam a possibilidade do impossível, impulsionando que o novo aconteça. A criação yoguica não é um novo método ou conjunto de técnicas, mas “atualizações do presente”.
É difícil para você pensar em exemplos concretos do que descrevo, tamanha a ausência do criativo no seu yogar. Falo criativo, e de novo, você já associa com algo a ser preenchido em um “nicho do mercado” e um curso para vender.
Isso acontece, pois fomos assujeitados a desejar o passado yoguico ou performáticos nessa sociedade maluca em que todes se imaginam professores de um curso para lançar 6-em-7. É tudo como se não houvesse força para transformar nada. Pensar isso é “perda de tempo”, já que tenho que “alcançar moksa, liberdade, nirvana, meu Euzinho” ou, "isso não vende", "tudo vende é só uma questão de disparar os gatilhos-mentais certos".
E a roda gira: “autoridade de técnicas de yoga”, não yogin mesmo, mas um treineiro de técnicas yoguicas. São melancólicos e lamentam sempre o que são e não poderão (ou poderiam) ser (ou terem sidos).