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Foto do escritorPhD. Roberto Simões

Atualizado: 19 de set. de 2022


Só se faz possível apreender a filosofia yoguica pelos afetos produzidos. Nenhum yogamento vive de argumentações. Um yogin que perambula 12 anos pelas ruas da Índia com um dos seus braços levantado, que passa o dia sustentado numa perna por 8 anos, sem falar (em mauna) por 20 anos, é enterrado vivo por horas e dias, possui práticas de canibalismo, uso de haxixe, ritualiza o sexo com prostitutas-santas para o alcance de moksa e siddhis, são exemplos encarnados da subversão de ordenamentos da realidade indiana, na pele de yogins.


Estes, são corpos extremamente perigosos para a integridade da tessitura social hegemonica. A força das castas, do karma, de outros tabus como comer carne, "intoxicação" pelo uso de drogas ou o celibato de monges, é absolutamente queimado no corpo destes, cozidos pelo fogo do yoga.


Qualquer yogin autêntico é um destruidor de toda e qualquer cristalização de um “eu” eterno e construções metafísicas. Ele não deseja ser “ele mesmo”, ou seja, há um esforço em não ser mais o que pensou sempre ser e toda a força coesiva da sujeição social. Não é que ele controla o corpo para atingir uma "consciência cósmica" ou Eu Maior.


Pelo contrário, eles estão matando esse Self imaginário (até aquele sadhu ideal é morto - eles não concordam entre si, nem em qualquer técnica, livro, guru ou tradição está certa), pois esses yogins ascetas errantes e suas caosmóticas ordens religiosas e tradições-rizomas, fazem de tudo para dar provas materiais que se pode alcançar a liberação (moksa, kaivalya, samadhi) bebendo urina, comendo puta, fumando bong, meditando em meio a bosta de vaca e outras escatologias espirituais e asceses masoquistas.


Eles não estão buscando afrontar, sofrer, conquistar ou vencer algo; estão fazendo passar desejos, prana, propósitos, orgones, tao, yin-yang, conatus. Enquanto sobrecodificado e, pior, desatento a essa sobrecodificação de signos sociais, não vivo, mas sobrevivo inconsciente de tudo o que se passa, me move, compõem e decompõem, mas imagino ser: campo fértil para as metafísicas germinarem.


Não é a força da mente ou a resistência do corpo que eles estão demonstrando, mas o que pode um corpo. Os yogins autênticos pertencem a tradições selvagens e primitivas. Em suas plurais ordens espirituais, desorganizam mundos imaginários que a cultura indiana estruturou em castas e organizou em karmas. O yogar (talvez não os yoga-alguma-coisa, mas o yogar) é anterior a isso tudo (yogamentos): vedas, jainas, budistas, sikhis, sufis e cristãos.


Antes, um sujeito criado e mantido pelo socius (seja estruturado pelas castas ou classes sociais), após um yogar autêntico com muito esforço|tapas e propósito|sankalpa, um indivíduo.

Yoga como aliado na desconstrução constante do eu ou a certeza da inconstante alma selvagem. Os yogins civilizados ou “lojistas” (como se referem os próprios sadhus indianos contemporâneos), aqueles nascidos sob o selo da espiritualidade do capital (e sua ordem mais recente, os neoliberais) capturam e anestesiam corporalidades, enfeitiçando yogas (yoga como fetiche): organizam tudo o que não-É, para sempre-SER.


Os yogins autênticos não, organizam e fazem passar tudo o que não somos, aquilo que não pode. Todo yogin metafísico (seja o gestado no socius despótico ou do capital) defende uma desafetação da forma de yogar. Para estes, a corporeidade é irracional, a consciência é “líder” e o corpo, algo a ser domado.


A consciência ou Eu|Self só age devido ao corpo, é uma parte dele, e não sua autonomia. O que é liberdade aos metafísicos do yoga, para os nômades (os marcados pela Natureza), é servidão.


Yogins metafísicos (aqueles sem-corpos) buscam uma “vontade pura”, mas somos o que nos movem. E o que nos move é involuntário, não irracional, pois puro desejo. Sim, somos corpos desejantes. Tudo o que os metafísicos passam vidas buscando controlar, os nômades se dedicam a surfar. Os outros corpos também me causam.


Uma onda se forma ao acaso, é imprevisível. Todo surfista metafísico é um haole, um estrangeiro, o não-local que não conhece a cartografia do pico - ele grita reclamando pela demora das séries, entra atrasado na onda, não sabe ler as marés, ventos, bancos de areia e correntes oceânicas. Vive no delírio de que algum mal ou bem acontecerá no futuro. Desse delírio, nascem todos yogins desatentos em seus yogas-Instituições com seus livros, igrejas e gurus que garantirão proteção de que esse mal (inventados por eles mesmos) não se abaterá a todos que se devotarem a eles e seus deuses que moram desterrados.


Há aqui, a criação de apenas dois afectos yoguicos: o medo e a esperança, ambos, alimentando corpos melancólicos, resignados e que se re-sentem, ou seja, passa sempre a mesma coisa em seus corpos, por isso tanto ressentimento e sempre as mesmas ideias; claro, se passa o mesmo no corpo, as ideias se repetem como uma indústria de mais do mesmo.


Seria samsara viver sentido sempre a mesma coisa?

Por pertencermos a uma tradição nova (sim, em nossa imensa maioria, fomos gestados pela tradição yoguica postural moderna), ainda não produzimos tantos corpos yoguicos, como exemplos vivos da subversão social que assistimos entre os sadhus|yogins ascetas e errantes indianos.


São todes, yogins inúteis, aqueles em yogamentos nômades, por isso, sem nenhuma expectativa de alcance do bem ou do mal futuros, vivem incorporados, portanto.


Todo acontecimento yoguico autêntico, acontece “pelas aberturas e possibilidades em latência criados no social”

Então um yogin contemporâneo indiano que manteve seu braço pro alto com os punhos cerrados por 10 anos, abre possibilidades de romper seus karmas e mete um foda-se para toda verticalização religiosa hindu orientada pelo Vedas.


Por quê?

Ele se torna um herói, santo, feiticeiro, artista do corpo para todo e qualquer indiano submetido a esse ordenamento social, político, espiritual e econômico. São todos manés de barros produzindo inutilidades exemplares.


Parece que nós temos produzidos apenas desprezadores de corpos no yogar brasileiro. Mas há exceções, como todos os yogares que encarnam a possibilidade do impossível, impulsionando que o novo aconteça. A criação yoguica não é um novo método ou conjunto de técnicas, mas “atualizações do presente”.


É difícil para você pensar em exemplos concretos do que descrevo, tamanha a ausência do criativo no seu yogar. Falo criativo, e de novo, você já associa com algo a ser preenchido em um “nicho do mercado” e um curso para vender.


Isso acontece, pois fomos assujeitados a desejar o passado yoguico ou performáticos nessa sociedade maluca em que todes se imaginam professores de um curso para lançar 6-em-7. É tudo como se não houvesse força para transformar nada. Pensar isso é “perda de tempo”, já que tenho que “alcançar moksa, liberdade, nirvana, meu Euzinho” ou, "isso não vende", "tudo vende é só uma questão de disparar os gatilhos-mentais certos".


E a roda gira: “autoridade de técnicas de yoga”, não yogin mesmo, mas um treineiro de técnicas yoguicas. São melancólicos e lamentam sempre o que são e não poderão (ou poderiam) ser (ou terem sidos).



Foto do escritorPhD. Roberto Simões

Yoga, o que é isso? Difícil responder, pois são muitos seus significados, práticas, ordens espirituais de uma mesma tradição; e não há uma só tradição ou forma de yogar, mas somos muitos.


O parampara define bem o sistema errático (errante ou rizomático) de transmissão do conhecimento yoguico, seja espiritual, artístico ou educacional. O saber yoguico é absorvido (e não transmitido). Talvez, mais do que isso, inventado de forma viva e não estrutural e hierarquizado, como muitos pensam por associar yoga ao aparelho-de-captura dominante hoje em dia, a cultura hindu. Claro que no Yoga existem líderes carismáticos e seus circuitos de consagração, mas é aberto, pois pulsa da|com à Terra, nunca em metafísicas.


O ensinamento de mestre para o discípulo (parampara) é assimétrico e não de cima para baixo, da direita para esquerda, do passado para o presente. Quando um discípulo (após anos de sadhana) é reconhecido por uma tradição|escola como mestre|guru, isso acontece pelo seu carisma.


Carisma é uma qualidade pessoal considerada extracotidiana e em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, extracotidianos específicos, ou então se a toma como pessoa enviada por Deus, como exemplar e, portanto, como um líder (WEBER, 2000, p. 158, 159).

Um guru|mestre yogin autêntico, assim, não o é pela demonstração de suas habilidades físicas, intelectivas ou mágicas (siddhis), mas pela consagração dos inúmeros coletivos yoguicos que o legitimam como um yogin autêntico. E quanto mais distante o coletivo consagrador, maior sua força de instituir carisma.


Os circuitos de consagração social serão tanto mais eficazes, quanto maior a distancia social do objeto consagrado (BOURDIEU).

Matsyendra adquire e mantém seu carisma até hoje, pois consagrado por Shiva; Vivekananda por Ramakrishna, Iyengar e Jois por Krishnamacharya, Glória Ariera por Dayananda, Hermógenes por Chico Xavier e depois Sai Baba, e muitos outros yogins hoje, por Mark Zuckerberg e seu Tempo Instagram. Um yogin em processo (sadhaka), ou seja, ainda não consagrado pelos circuitos, incorpora (devora) o yoga, se torna ele, a sua tradição (e não ele à tradição). É um acontecimento metabólico dos ensinamentos e práticas: a tradição está ali (no corpo e mente dele e de seu guru). O corpo de ambos (no processo) digere e vão juntes, desterritorializando e desfazendo os códigos que significaram aquele sujeito (antes de uma casta X ou classe social periférica), tornando-o, novamente, um indivíduo: um ser descodificado. Todo yogin autêntico, é alguém que se transformou (seu corpo e consciência) de volta a um não-ser. Todo yogamento (processo ritual yoguico), é uma a-significação do eu-sujeito.


Todo yogin autêntico, é aquele que deixou de ser e passa a estar humano

E, quando este (antes neófito, agora aluno, e quem sabe um dia, guru) for iniciar outro corpo neófito assujeitado, este receberá a tradição digerida por aquele. Mais do que isso, o próprio guru, em diálogo com seus discípulos (sadhakas), se transformará também. Não tem ninguém aqui des-afectado. Pelo contrário, yogar é alargar sua superfície em afectar e ser afectado: o principal siddhi é o de fazer passar desejos. Este é o princípio do parampara, uma alquimia corporal conectiva, disjuntiva e conjuntiva que torna o rizoma yoguico múltiplo e tradicional. E o que se conserva (se repete) é o sistema digestório.

Sentimos que um certo corpo é afetado de muitas maneiras
Não sentimos nem percebemos nenhuma outra coisa singular além de corpos e dos modos de pensar (Axiomas 4 e 5: Ética de Espinosa)

Yogar autêntico é, portanto, um banquete, um processo ritual antropofágico, nunca uma prática pedagógica bancária, esse delírio em imaginar alguém depositando seu saber milenar na “cabeça|mente” de outro corpo de forma imaculada. Não, é tudo uma práxis, um procedimento e até uma estratégia (D&G, O Anti-Édipo, p.196). Pode parecer um jogo de palavras e, para os desatentos, um vale-tudo que se perde no relativismo dos yogins neoliberais, ou uma afronta moral aos yogins conservadores. Estamos falando de uma liberação dos fluxos que serão codificados e, lentamente, incorporados a tradição num corpo. E, sendo corpo, corre-se sempre o perigo de que as filiações e alianças deixem de ser provisórias.


Quando um yogin em processo de yogamento com seu guru, ambos, cozem tradições em vossos corpos, e há, aí, um risco real de uma nova ordem se estabelecer. Ao invés da repetição simples do mesmo, pode nascer a diferença: ambos de transformam costurando alianças e filiações outras. Todo yogar autêntico funciona na razão da repetição e da diferença. Os confrontos e quebras decorrem daí, até que a inconstante estabilidade da alma selvagem yoguica, enfim, retome seu rumo natural de repetir e diferir.



É similar ao sistema de parentesco onde os casamentos (as filiações e alianças yoguicas entre guru-discípulo) estão abertas, não são nem monogâmicas ou definitivas. Quando um preto-velho vem trabalhar no seu cavalo, ele, enquanto atende seu socius (sangha ou comunidade) com passes e aconselhamentos, atualiza a tradição no corpo do médium. Do mesmo modo que num ritual daimista, enquanto corpos cantam, miram e bailam no hinário (toda lua cheia e nova), acontece a transmissão da tradição em atualizações: um padrinho pode receber a inspiração de um novo hinário e mirações se repetem e diferenciam corpos.


Toda tradição espiritual, assim, libera, corta e produz fluxos. Codificações de fluxos que filiam membros novos na tradição, descodifcações de fluxos outros, rompem linhagens e abrem novas linhas-de-fuga, criando ordens e até tradições. Veja o exemplo do yogin Sidarta Gautama que, iniciado por uma ordem espiritual hatha-yoguica, desiste de seu sadhana, direcionando seu tapas numa nova direção: nasce daí o Budismo. Quantas linhas de umbanda existem, formas de yogar e consagrar ayahuasca? Até a Igreja Católica produziu teologias diferentes. Nem na mais lisérgica viagem de Marx e Engels, imaginariam que padres latino-americanos poderiam, inspirados n'O Capital, fundarem a Teologia da Libertação. O protestantismo é outro corte de fluxo católico que abriu novas conexões espirituais, coadunadas com o capitalismo, funda a Teologia da Prosperidade (leia M.Weber em, A ética protestante e o espírito do capitalismo).


Mas não perde o fio. Para que essas dobras possam ocorrer, alguém (um pretendente a yogin, p.e.) precisa, antes, ser aceito por um guru (e o coletivo espiritual) de uma tradição; não há um yogin autodidata (lobo solitário, rishi em revelação sozinho): pode até criar uma linha-de-fuga yoguica, mas esta precisa ganhar materialidade para se tornar real; até lá, é só um delírio. Mais simples, uma forma de yoga não nasce do nada, por inspiração individual, "revelada" do além-físico. Somos seres coletivos e viventes na imanência, o metafísico (as ideias) vem depois.


O corpo yogin nômade (este sadhaka sendo iniciado) repousa adjacente à produção do socius (da tradição yoguica). Todo yogin autêntico, se assenta numa ou várias tradições, aquele que ainda não se assentou sobre ela, não pode ser (estar) consagrado ou fazer valer seu carisma. Não é que se sinta deslocado ou sentimento de não-pertencimento, ele precisa metabolizar, comê-la demoradamente, fazer passar fluxos, liberar desejos e apreendê-los (em si), sentir, perceber. Há muita pré-reflexão antes de qualquer yogar revisitar a consciência reflexiva. E há vários processos de iniciação, outros tantos jeitos de yogar e processos de yogamentos.


Mas não se perde, há hoje, três grandes iniciações yoguicas e yogamentos: (1) Conservadora, (2) Nômade e (3) Capitalística; e todas, sem exceção, pertencem ao mesmo sistema de parentesco (filiações e alianças). Yogas indianos podem possuir filiações hindus, sikhis, jainistas, budistas, tântricas, e estabelecer alianças daimistas, maoris, da alquimia e mística sufi, da pajelança ianomâmi e, mesmo com a política nacionalista de Gandhi ou do Moodi. Saber em quais filiações e alianças se está inserido (ou inserindo-se), contemporaneamente, já não é mais tão claro quanto no período pré-capitalista. A recém-tradição yoguica capitalística borrou os limites dos aldeamentos. Somos, hoje (cá ou lá), yogins contemporâneos. Cabe a você descobrir quais códigos lhe foram inseridos, se eles ainda fazer passar algo. Toda tradição de yoga conservadora, produz afectos de medo e esperança; a capitalística, constrói o afecto da falta e plenitude; e as tradições nômades, o desejo pela diferença e incompletude.


Yogar não é só praticar e pronto, é só desfrutar. Não, é também, e sobretudo, apreender o que se passa, é estar à espreita do que estão fazendo passar no seu corpo, ato contínuo, as ideias que seu corpo erigindo na mente.


Foto do escritorPhD. Roberto Simões

Atualizado: 12 de set. de 2022


Nós, corpos yoguicos em deslocamento pelo socius capitalista neoliberal latino-americano, pertencemos ao mesmo período histórico de qualquer yogin asceta errante, que perambula hoje, pelas ruas da Índia. Somos, TODOS, yogins contemporâneos.


Há muita coisa que nos diferenciam deles, mas também de um yogin africano. Não somos iguais, óbvio que não. Mas eles (atuais yogins indianos), também diferenciam-se entre eles, sobre práticas, doutrinas, métodos... igualzinho a nós. É o campo sociocultural em que vivem os yogins, o principal motor na geração de soluções espirituais e outras tantas contradições que movem tradições.


Os afectos religiosos, econômicos e políticos atravessam corpos yogins modificando tradições e fazendo surgir (e morrer) ordens, escolas e métodos yoguicos. Está tudo em movimento, todos em devir. São as condições históricas e materiais que, dialogando com o socius, gestaram escrituras, mestres e transplantaram yogas para a Califórnia e Nepal. Jainistas, budistas, hindus, tântricos, sikkhistas, todos os posturais modernos e a geração "pós-moderna" brasileira - das reboladas marginais cariocas ao savasana restaurativo -, são yogamentos. Yoga é uma tradição viva e rizomática.


Yogar é toda e qualquer ruptura, no próprio corpo, da tessitura organizada pelo socius. Nenhum yogin (lá ou cá) se retira da sociedade, resistem ao seu ordenamento.

A maioria dos yogins ascetas errantes indianos, orbitam em suas diferentes ordens espirituais. Eles estão mais próximos da figura do feiticeiro, pajé e “xamã” do que um sacerdote (padre, brâmane ou rabino). Talvez você, yogin postural moderno, tenha mais acesso aos textos yoguicos deles (pradipika, gheranda, yoga-sutras ou yoga-bija) do que os próprios yogins indianos. Muitos nem se importam com os asanas! Com certeza, essa é uma paranoia só nossa. A paranoia deles, é a libertação, sem dúvidas. Mas de quê? Sabemos que não é do mundo.


A “tradição” yoguica postural moderna nasceu, como qualquer outra, dobra das que já existiam. Nada é revelado do essencial, tudo é substancial. Entrementes, nos diferenciamos muito dos yogares das bandas de lá, pois somos yogins nascidos axiomatizados pelo capital; desde cedo vamos sendo organizados a desejar o capital (seu acúmulo e sua circulação). Eles não, desde cedo são organizados (sobretudo os indianos hindus) a desejarem pertencimento e obediência às castas. Nós, somos criados a negar qualquer vínculo religioso; tanto é assim, que mesmo os yogins devotados a um guru, livro e|ou "tradição" não se declaram "devotados" a nada e nem a ninguém. Entre nós, não há a estrutura de castas, mas um ordenamento alienante de classes sociais.


Todos os yogins - das bandas de lá, de cá, europeia ou americanos do Norte - estão vivos, por isso, produzindo inconstantes encontros. Eles lá, nós aqui no Brasil, e um yogin russo, estamos vivos e pertencendo a um mesmo socius yoguico mundial, mas vivendo em culturas diversas. E é a primeira vez que isso acontece - yogamentos para fora da Ásia -, assim, nada mais natural, que modificações ocorram.


Agora, se essa expansão yoguica para fora das franjas asiáticas, “engrandece”, “empobrece”, é "moralmente" aceitável ou será "reconhecido" pelas tradições indianas, é outro assunto. O que sabemos é que, mesmo na Índia atual, se perguntarmos a diferentes yogins ascetas, qual a melhor prática, sadhana ou ordem religiosa, talvez rirão da sua cara, responderão ser a deles, ou melhor ainda, que essa questão é totalmente tola de se fazer. Você, neste exato momento, é um yogin tanto quanto um Matsyendra foi, o guru-guri moderno marqueteiro o é, ou mesmo o mais "legítimo" representante de Vivekananda, Kuvalayananda, Iyengar ou Gorakhnāth. Quem discorda disso, é porque tem um juízo moralista essencialista (portanto, delirante) do que é ou não yoga, algo que nem os próprios yogins mais tradicionalistas indianos concordam entre si.


Como diferenciar um yogin realizado, de outro no sadhana correto ou um farsante? É o coletivo e o carisma dele que responderão: as circunstâncias. Mais simples, assim como é a materialidade social e histórica que faz girar as mais diversas tradições e suas diferentes e cambiantes ordens espirituais, é o socius que elege e derruba yogas, yogins, yogares e seus yogamentos. Você assistiu algum protesto yoguico pelas ruas da Índia contra o abuso de mulheres ou da politização do dia internacional do yoga entre nathas, nagas, aghoris ou vedantistas? E isso não é porque eles se abstém de envolvimento político e das coisas "mundanas" da vida. Nada disso, o buraco é mais embaixo. Seriam alienados ou fariam parte do sistema?


Os yogins de lá, também pululam de guru a guru, abandonam ordens espirituais e migram de tradições. É comum um inciado naga, pedir abrigo entre os nathas, kampathas ou kaula, sempre que percebe ser necessário mudar seus propósitos (sankalpas) e esforços (tapas) para renovar-se firme em sua senda espiritual yoguica (sadhana). Às vezes acontece de um guru, se desentender com outro líder religioso de sua tradição e migrar para outra, levando consigo parte de seus devotos. Pode acontecer, até, de sair e fundar uma nova ordem espiritual yoguica (exemplo de Sidarta Gautama). É igual aqui. Você pode viver 5, 10 anos entre asthangueiros e, depois, resolver experimentar a vida entre os yogins da tradição sikhi do Kundalini Yoga, ou migrar para uma ordem vedantista-yoguica de um guru nova era.


O que se modifica por aqui, de novo, é o campo social e cultural e seus problemas, faz movimentar soluções yoguicas (sadhanas) singulares. Não somos, portanto, menos yogins do que um aghori (asceta yogin tantra) da Caxemira. Na verdade, precisamos diferir, pois as soluções deles não cabem aqui.


Todo yogar autêntico é constituído de um sadhana com propósito (sankapla) e esforço (tapas) espiritual suficiente para romper os laços de sua conexão ("ego") com os ordenamentos sociais sobrecodificados na sua carne.

Mas volta para o conceito de yogin, aquele que visa romper seus laços de pertença à ordem social vigente. Isso, nada mais é do que um processo de desalienação constante de tudo que a cultura, distraidamente, impôs a você desejar SER. Ser yogin lá, de novo, exige um esforço para romper os laços cármicos. Nós, aqui, vivemos entre a tessitura cultural capitalista neoliberal, não temos carma ou sentimos a força das castas, mas a “obrigação" pelo acúmulo do capital e da diferença das classes sociais.


Sim, eu sei, há deturpações e infinitos yogins e seus yogares se organizaram de tal modo, que só utilizam do yoga para comercializarem técnicas e vender yogas como mercadores espirituais. Temos até um nome para isso, são os yogis neoliberais (leia Andrea Jain). Mas perceba, lá na Índia também existem esses yogins exibicionistas, que ganham a vida com suas demonstrações; os yogins indianos autênticos os alcunham de yogins “lojistas” (dukān-dārī).


O que distingue a vida de um yogin asceta indiano hoje, de um pai-de-família da casta Vaishyas ou você, yogin postural moderno brasileiro (professor ou não), é o comprometimento (fé e devoção) com a ruptura do mundo em que vive; e esse compromisso (sankalpa), independente de qual tradição se adote (e suas infinitas ordens iniciáticas), deve conter uma “inabalável determinação” (tapas). Toda tradição religiosa (yoguica hindu, católica franciscana, afro-brasileira ou zen budista) promete, em graus diferentes, rompimento com todo e qualquer sofrimento. O que estas exigem, no entanto, é uma vida dedicada às obrigações de sua espiritualidade. Mas não é uma contradição? Estou livre dos grilhões sociais que aprisionam em maya, mas dedico a minha vida ao yoga espiritual daquela ordem religiosa? Se chegou até aqui, meus parabéns e seja bem-vindo ao mundo real.


E quem mantém tudo isso? O próprio socius que os yogins se dedicam a se desvencilhar. Em troca, as ordens yoguicas (e as escolas yoguicas modernas) oferecem aconselhamentos, trabalhos espirituais, oráculos, terapias, saúde, bem-estar, diminuição do estresse, ansiedade, aumento da criatividade, etc. Mas, o mais importante, os yogins são os exemplos vivos de que, apesar do peso estrutural social que os oprimem, oferecem uma solução para que todos possam subverter esse sistema, mas sem rompê-lo totalmente. Os yogins, em geral, são reformistas e não revolucionários radicais, aqueles que fomentam o desejo desestruturante de todo o sistema. Raros os yogins que lutam para destruir a estrutura de castas na Índia ou a opressão do neoliberalismo.


Será, pois, as ordens religiosas de lá e, as "escolas de yoga" daqui, se beneficiam dessa mesma sociedade injusta e opressora?
Já viu algum yogin asceta indiano trabalhando em roças comunitárias?
Ao invés de máquinas-de-guerra contra os aparelhos-de-captura, seriam os yogins de todo o mundo partes do sistema?

Você, o guru-guri, a monja gringa e outros yogins brasileiros, indianos, africanos e, mesmo o mais instagramático yogin, o que os diferem? O que faz um yogin ser considerado mahant, "iluminado", autêntico, e outro, um "yogin lojista"? Definitivamente não é o sentido de pertença a uma tradição, ordem iniciática, conhecimento das técnicas e escrituras, ou proezas físicas. Yogins de verdade, são inventadores de soluções criativas para problemas reais, lutam juntos (mesmo discordando e cheios de contradições, pois humanos, acima de qualquer coisa) para superação das contradições sociais de seu tempo e socius. Em suma, são exemplos vivos de outras vidas possíveis.

Seja Bem-Vinde

Você adentrou um espaço em desconstrução. Desacreditamos metafísicas, por isso bricoleurs ou feiticeiros do Yoga quebrando a demanda de todo maya que lhe enfeitiça. Mas entenda, tudo é maya.

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