O que é a harmonia entre corpo, mente e espírito do que voltar a acreditar no discurso do corpo?
Compreendo Yoga, esse rizoma que não se deixa capturar nem em suas definições e delimitações mais básicas contidas em escrituras, mas que, contraditoriamente, soube, de maneira elegante e simples, produzir corpos e mais vidas capazes de irem além do imediato apreendido. Todes yogins autênticos são filósofes do corpo (gymnosofistas) antes mesmo dessa personagem ser reconhecida - e não seria essa contradição uma autoexplicação per si de quem são os yogins?
Yogins selvagens, esses indomáveis, aprenderam a mediar constantemente o que estão-sendo-em-ato: um acontecendo-acontecido. O palco é a superfície de todos os corpos que se compõem, naturalmente, onde mais? Natureza-naturante e natureza-naturada. Yogar é muito mais Arte do que Ciência, e bem antes de uma Religião, mas que pode ser só isso também. A compreensão, isso que yogins tolos denominam de autoconhecimento, é nossoconhecimento, algo que se vivencia no entre-relacional.
A tecnologia corporal yoguica, erigida por suas mais diversas e esquizas ordens nômades primitivas, muito antes de yogins não-asiáticos, como Kierkegaard, Espinosa, Schopenhauer, Nietzsche, Ponty, Gaiarsa, Guatarri, Kopenawa e Viveiros de Castro souberam criar próprias linhas-de-fuga ou perspectivismos contra aparelhos-de-captura dos corpos desejantes que somos. Mas não se trata em destruí-los, não, isso é pequeno-fascismo; yogins autênticos, em seus yogares viscerais, fluem na força invisível aos yogas-performaticos, pois devoram tudo num banquete ritual antropofágico.
A principal captura dos yogins indianos nacionalistas corporais modernos, em que somos herdeirios, foi da Máquina-Yoga-Despótica. Figuras como Osho, Sai Baba, Kuvalayananda, Sivananda, Vivekananda, Jois, Yogananda e Iyengar (dentre muitos outres), são sobrecodificações despóticas em nós. Tivemos nossos corpos construídos de tal jeito a desejarmos ser como eles: um passado romântico paranóico. A mudança material que a colonização britânica produziu, o yogar postural moderno e seus ídolos, transformando a realidade material yoguica indiana. Houve uma desterritorialização. Qualquer tentativa de compreensão do yoga hoje sem considerar o assujeitamento dos corpos yogins indianos colonolizados, será superficial.
Estes yogins indianos se esforçaram muito em renegar o presente colonial numa busca de retorno a vidas que imaginavam serem melhores que aquelas que viviam. Esse panorama reflete no corpo e na mente de todos yogins posturais modernos e os contemporâneos (ou pós-modernos?). Os yogares posturais modernos orbitaram ao redor de seus livros sagrados, mestres ascensionados e coletivos idealizados ou "tradições" reinventadas. Os discípulos destes continuaram negando a realidade, se esforçando em replicar ensinamentos sem mudar nada (na verdade, se orgulham de seus sedentarismos), tornando-se replicadores de saberes resignados e portadores de niilismos passivos, abridores de terceiros olhos na nuca.
Yogins contemporâneos, os nascidos sob a lua minguante da transplantação yoguica postural moderna, após captura inicial, se libertam de toda herança discipular (parampara) e encapsulamentos religiosos (tradições); mas, pasmem, libertos, não sabem o que fazer com ela. Ficam se perguntando, já libertos: "ser livre do quê"? E não, livres para quê? Totalmente perdidos, são capturados pela Máquina-Yoga-Capitalística, sobretudo na sua versão neoliberal. Se transformam em yogins individualistas, relativistas, medrosos, depressivos, ressentidos: se transmutam em estetas-sem-existência.
E a saída?
A saída é entrar de onde nunca saíram, pois não há fora. Os yogins (conservadores despóticos e os capitalistas neuróticos) se esqueceram de voltar de seus mundos imaginários: do passado que nunca chega e do presente eternamente insuficiente. Na ânsia do fim de maya, inventaram desilusões que, distantes da realidade e da potência criativa de novas utopias, os vampirizam: yogins uberizados. Enquanto yogins paranóicos cartografam mundos delirantes, yogins neuróticos peregrinam suas faltas e carências entre retiros, formações, festivais e clínicas liberais de corpos endurecidos. Mas como assim a saída é entrar? Entrar no fluxo real, sem fechar seus chackras para as contradições que acompanham todos os corpos imersos na imanência.
O fim, mas que fim?
Nunca saíamos da Natureza!
Resignados com a morte do deus transcendente, abraçam seus yogares-coisa e não a vida vivida. Yogar é entrar na fruição vital que ora nos movimenta em velocidades, ora em lentidões. Desistir do empirismo tecnológico racional e experimentar o que se passa de real no pré-reflexivo, no irracional e visceral do resíduo (de tudo aquilo invisível que fica do pós-treino|prática no mat): o entre objeto que eu vejo fora e as sensações que ecoam dentro nas afecções em mim refletidas por purusa. Não seria o samadhi atravessar o espelho|purusa?
O que se propõe aqui é voltar para terra, ser marcado por ela e não por ideias. Abraçar a Grande-Máquina-Territorial-Yoga e voltar a se espantar com a realidade, estabelecer unidade imanente da terra como "motor imóvel". Todo yogar primitivo e selvagem (antigo, medieval, moderno ou contemporâneo) é uma máquina territorial em sentido estrito e não transcendente. Ela funciona declinando alianças e filiações definitivas, antes que estas se tornem Yogas-Estado: despótica ou capitalística. Busca-se aqui bio-filiações e novas alianças assimétricas em fluxos intensivos de pertença. Mas a eficácia mágica deste sadhana e suas asceses, só enquanto marcados pela terra (essa grande aldeia global) e, não, pertencente à estrutura. Essas bio-filiações funcionam muito mais como uma estratégia, uma práxis, nunca mera prática|treino. A produção não é mecânica, mas quântica.
O yogin nômade e selvagem é um caçador de fluxos. Sempre à espreita, esgota seus desejos nesse grande sertão: veredas. Esse yogin, sertanejo originário, estabelece filiação direta com deus, o diabo, orixás, botos, espectros, plantas de poder, Rochas e encantados da floresta na Terra do Sol. O yogar nômade não se assenta à produção de yogas em máquinas desejantes e linhas produtivas. Não, ele corre adjacente (não alheio, alienado), na periferia do sistema, pois não produze excedentes a serem comercializados. É um yogar sem silo.
Todo yogin nômade é um xamã-Conselheiro (uma benzedeira preta da rua) que se lança nas matas e caatingas, tipo Celso Antunes, para suas experimentações, seus acampamentos, sua Canudos e Palmares: liderança anárquica, intelectual orgânico. Prudente, invisível, vive em clareiras ou buracos abertas à beira da floresta, em aldeamentos, quilombos e assentamentos que se desfazem assim que a lua da colheita, da caça, do perigo e do rito se findam.
Yogin errante (budista, jaina, naga, natha, zumbi ou conselherista), de ontem, atual, das bandas de lá, de cá ou desbundando, se desloca com seus bandos, sem se fixar em lugar algum, pertence a todos os lugares, pois marcado pela Terra, estabelece bio-filiações inconstantes.
Toda desterritorialização que se efetua (inclusive agora, enquanto devora cada letra e palavra caçando significados e significantes) em incursões na floresta da vida, produzindo disruptivas momentâneas (que pode durar anos, meses, semanas, dias ou alguns minutos - você pode até largar tudo agora e voltar depois, talvez eu seja muito para você agora) de uma cadeia de significantes. Essa força disruptiva yoguica libera fluxos que podem (ou não, pois nem toda caça resulta em sucesso) produzir conexões xamânicas satisfatórias. Todo xamã experiente, malandro, sabe estabelecer comunicações esquizas com as forças da terra, pois aprendeu estar sempre à espreita (esse é um, habitus que adquiriu) para não ser capturado pelo inimigo nas batalhas que estabelece a cada yogar autêntico. Corre-se perigo ali.
Há produção de novos significados aos objetos da meditação escolhidos. Estes, quando em voos místicos, despedaçam corpos yoguicos. Descodificados, enquanto viajam à terceira margem, são, literalmente, seres marginais, periféricos, caramelos. Todo yogin xamã, esse autêntico yogar livre-pensador, deve marcar em todo corpo-terra, suas experimentações, atualizar-se, cartografar novos platôs de existência. Desse processo lento e gradual, algo se transmuta: um novo habitus ganha corpo, e aquele yogin inseguro, capturado, dócil que mantrava por saídas, se percebe indomável.