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Foto do escritorPhD. Roberto Simões

Atualizado: 23 de ago. de 2022


Nascemos seres desejantes livres, mas vamos sendo marcados no corpo sobre quais desejos devemos nos guiar. É uma jornada sem fim, por isso, sempre inacabados, livres.

CENA 1:

Um bebê sente um desconforto na linha do umbigo, mas não tem a menor IDEIA do que seja aquilo. Ele só sente um desejo que o move, mas é pré-reflexivo, desejo desconectado dos signos que o significam. Ele chora, ato reflexo ou linha-de-fuga desejante que sente, mas não sabe do quê. Não que seja in-significante, é um genuíno desejo des-significado.

O choro é um gesto, uma linguagem corporal

E, com o espanto que o acompanhará toda a infância - até ser totalmente codificado pelos signos daquele coletivo que o adotar - esse bebê vê surgir, no espaço, uma esfera de carne quente, túrgida e com um bico o puxando à sua abertura. Esse agenciamento perfeito, o torna apto a se acoplar: desejo, sucção e o seio mãe. Agora, fluindo, esse corpo|Ser-Todo sente o corpo-líquido quente percorrendo com alegria e potência seus canais internos. E, adivinha? Aquele desconforto, que só anos depois vai compreender ser fome, desaparece como por mágica! Esse feitiço e a alquimia nele pode desaparecer, quanto mais for sendo engolido pela educação, a família, o Estado e a Igreja.

Que mundo louco é esse em que fui parar, totalmente diverso do universo líquido, a-gravitacional, morno e protegido em que vivi por 9 meses

Nesta nova cartografia, em que o reterritorializa com avidez, há outras forças que insistem em sugá-lo para o centro da terra com a boca escancarada e faminta, tanto quanto ele estava alguns minutos antes. Há um perpétuo convite a ser devorado e comer tudo por inteiro. A morte o espreita, tanto quanto ele, ambos, num canto escuro da floresta. O bebê não sabe que o seio da mãe pertence ao corpo dela (e até essa ideia que eu acabei de escrever, é só mais uma invenção, pois, em algum outro plano de consistência, os corpos podem estarem sendo vividos como únicos: extensões de um único e mesmo corpo ou Substância (salve Espinosa). Assim, todos os corpos recém-chegados aqui, ou em seus platôs pré-reflexivos - antes de suas significações - são imanentes por natureza.


CENA 2:

No velório de um velho pai-de-santo, sua filha, desde pequena sendo preparada para herdar o terreiro, mas que se convertera ao neopentecostalismo devido o amor ao marido, recusava-se a seguir o rito da religião do pai. Mas, assim que sua tia entoa um cântico de orixá, e os ogãs elevam o caixão em procissão, “um vento se desprendeu do vácuo, a filha rodopiou num giro abrupto e sentiu a força de Iansã. Em um segundo, uma multidão toda de branco tomou cada espaço. Vieram todos os orixás, mas Iansã seguiu na frente. Sacudindo os braços, tremendo os ombros e abrindo caminho para o cortejo com sua rama de folhas de peregun. As tias da Bahia comentaram entre si:

– Oxê, mas ela não se converteu?
– Ela se converteu, mas Iansã não....

CENA 3:

Entre jovens do Grupo de Oração Ágape da Paróquia Sagrada Família de Goiânia/GO/Brasil, outros corpos estão sendo experienciados e construídos:

Enquanto cantavam, alguns servos faziam imposição de mãos em participantes, na maioria das vezes tocava-se no ombro e na cabeça. Quando tocadas, a maioria das pessoas chorava ou contraía a face simulando o início de um choro. Sandra rezava por ela e também realizava movimentos pendulares leves para frente e para trás. A pessoa repousou caindo na diagonal para frente e para o lado, enquanto Sandra tentara amenizar a queda.

O repouso no espírito é uma “experiência marcada pela tomada de todo o corpo do sujeito pelo Espírito Santo – consequência simbólica e física, da entrega de si a Deus”. É uma experiência espiritual muito importante entre os católicos da renovação carismática, pois é quando o “Espírito rende o corpo humano de suas resistências de forma que a própria pessoa não tenha controle sobre o seu corpo e, por isso, acabe caindo ao solo”. O corpo dessa pessoa que repousou, que era totalmente dela até então, agora, é só desejo pelo Espírito Santo.



CENA 4:

Muitos vivem em outros corpos, diferentes do seu. Entre as diversas tradições yoguicas, por exemplo, por mais diversas que sejam em suas doutrinas e formas, as fisiologias espirituais se interseccionam compondo corpos yoguicos.

Kundalini é uma serpente adormecida enrolada na base da coluna espinhal.

Muitas técnicas espirituais, sobretudo, hatha-yoguicas e tântricas, resultam no aumento do calor corporal pela (ou para?) desobstrução de canais prânicos por respirações especificas, combinadas com mudras, asanas, mantras. Há, aqui, e nos demais exemplos cênicos anteriores, uma transformação corporal, alguns autores chegam até a propor z ideia de uma alquimia corpórea. Mas tudo isso, possui um propósito religioso. No caso específico de algumas igrejas, seitas e cultos yoguicos, por exemplo, a ascensão kundalínica pela coluna ou sushummuna, entende que a cada chackra conquistado, poderes supranaturais (siddhis) serão vivenciados: viagens para fora do corpo biológico, visitas a mente de outros corpos e, até, a desnecessidade ingestória alimentar, pois passam a viver de prana cósmico.


A grande experiência espiritual yoguica (samadhi) ocorre, quando um|a yogin avançado|a, em seu ascese (sadhana), alcança um corpo imortal. O sucesso e velocidade desse treinamento corporal vigoroso, depende de muitos fatores, como do corpo herdado por seus ancestrais, utilização ou não de plantas do poder, além de questões sociais e, até, planetárias.

Se ele (yogin) tiver sucesso na manutenção de sua concentração (samyama), o seu corpo vai, lentamente, iniciar um resfriamento, e um novo tipo de corpo (corpo yoguico) é construído”. Em outras palavras, este yogin terá alcançado um status divino.

TODOS, UM SÓ E MESMO CORPO, MAS COM SIGNOS E DESEJOS DIFERENTES


Toda corporeidade é marcada pela intenção e o poder de gerar sentido. Ninguém pensa antes de falar, sua fala é seu pensamento. E todo pensamento são ideias do corpo. Assim, a palavra, num mantra ou no total silêncio, “torna-se a presença do pensamento no mundo sensível, que é seu corpo”. Por meio da linguagem, o corpo projeta-se para um mundo. Mas a linguagem aqui não se restringe a falada, pois o corpo fala, e muito.


Antes da consciência reflexiva, há uma consciência perceptiva. Entenda que eu estou te levando de volta ao seu corpo invisível; aquele que não é o objetivo, físico, de carne, nem mesmo o corpo-psique e, muito menos, aqueles sutilizados das escrituras religiosas: sagrado coração de Maria ou Hanuman. O corpo invisível não é marcado pela terra, pelo déspota ou capital, é puro fluxo. Mais do que isso, estamos relegando a uma sub-categoria, tudo o que antes era superior no mundo "clássico" criado por yogins modernos. Eles sobrecodificaram corpos em metafísicas, tornando-os visíveis, racionalizados, reflexivos. E sim, mesmo você que se diz "não-dual", pois parou de buscar fora, mas continua sua peregrinação para dentro, como se houvesse algo encoberto, imaculado, ideal. Sim, isso é transcedentalismo ainda, seu corpo não existe, é metafísico. Mas estamos aqui, no campo pré-reflexivo.


SEGURA, QUE VAMOS AVANÇAR


Há uma rizomática relação entre percepção, motricidade e representação. Mas, estes, se agenciam pelo desejo, libido ou tesão: uma intenSão que movimenta. O oposto disso, é o sedentarismo: aquele corpo que faz passar sempre a mesma coisa, por isso se move tão pouco.


A prática de exercícios físicos regulares, por exemplo, também aumenta a libido, mas não porque o corpo biológico fica mais atraente, mas pelo alargamento da superfície corporal em seu poder de afectar e ser afectado. Antes, constrangido - um corpo rijo - passa pouco ou quase nada por ele. A libido são intensidades pedindo passagem. Movimentar corpos, produz acelerações, repousos necesssários e estabilidades instáveis (seria isso os gunnas?). Não obstante, há que encontrar, explorar as aberturas, os agenciamentos e os aliados certos. Para isso, exige-se deslocamentos exploratórios: vida nômade. Como se sentir - olha só o termo - atraído-desejoso-tesudo pela vida, se nada é percebido, se passa pouco ou quase nada no corpo? Diminuindo as possibilidades intensivas ou desejantes, tudo se contrai.


Nosso corpo busca, incessantemente, por mais vida, essa é sua "essência". Mas se fechamos\bloqueamos nosso corpo às passagens experimentais, o que se passará nele? Nada. Ou, re-SENTIMENTO: é sempre o mesmo que passa, e você se vicia e passa acreditar em promessas de espera: corpo poroso. Capturado.


CORTA PARA O ESPIRITUAL


Yoga, então, é um potente expansor de afectos. Mas entenda, cada yoga-Estado disputa com outros yogares o seu corpo. Cria-se aqui um gigantesco campo de disputa (aqui é Pierre Bourdieu gritando no seu ouvido). E como um yoga, de potente expansor de afectos, abridor de corpos a novos desejos que pedem passagem em mim, pode me capturar a viver só de um jeito? Ué, organizando seu corpo de fora de tal jeito-FORMA que seu tesão passa a desejar apenas esse yogar, com seus livros, seus deuses, gurus e práticas. Preciso desenhar quem até passa mal, tem crises de ansiedade por não conseguirem praticar ou atrapalharem suas doses diárias da morfina-yoga dele|a?


YOGAS COMO APARELHOS-DE-CAPTURA E OS YOGARES NÔMADES E SELVAGENS


Mas um Yoga-Igreja é algo ruim? Claro que não, ser alienado desse jogo, sim. Se manter em servidão voluntária, muito. Ser um pequeno-fascista do yoga capturado? O foco aqui. Agora, talvez, você compreenda por que alguns livros, práticas e falas se tornam proibidas, tabus, pecados, heresias em muitos núcleos yoguicos sedentarizantes e castradores.

E, se esse fluxo-yoga-Outre liberar um novo tesão que me desvie do Yoga-igreja confessional?
Estarei livre! E o que eu vou fazer quando kaivalya chegar? Por isso, o rolê não é estar livre disso ou daquilo, mas liberdade para quê?
O que farei com esse tal de Moksa? Mais nada? Ah, mas isso não é Moksa, é o Céu Cristão!

Perceber o amor de Jesus, a compaixão budista, os santos e os orixás ou a kundalini percorrendo nadis, exige um esforço (tapas) danado. Os corpos sentem e depois decodificam em signos, e percebem. Só depois surgem as ideias para organizar isso tudo.


Cada religião ou espiritualidade deve, na verdade, precisa, para se manter viva e atualizada, provocar aumento da libido em seus conversos. E ninguém se converte pela razão, mas pelo corpo, é ali (e tudo) que vive os sentimentos. Há, portanto, um erotismo nas shalas do mundo para manter seus yogas atraentes e desejantes.


NÃO HÁ YOGAS SEM YOGINS. E NÃO YOGINS, SEM DESEJOS


Livro nenhum, sozinho, movimenta kundalini pela palavra grafada num papel. Há uma TEnSÃO aí, agenciamentos corporíficos, esquemas corporais e suas técnicas que precisam conectar corpos aos desejos yoguicos asthangueiros, tântricos, restaurativos ou marginais. Os afectos que movimentam corpos búdicos não são os mesmos tesões que percorrem corpos yogaterapêuticos. Se liga tiozão, o rolê não está no campo do racional fisiológico e seus hormônios, de uma citta psicologizada ou do sutil em ida e pingala. Cada coletivo yoguico (espiritualizado, psicologizado ou biologizado), tensionam seus adeptos a se apaixonarem por suas diferentes formas e desejos. E paixão é o que movimenta corpos. A história religiosa inteira se faz em corpos eroticamente atraídos por diferentes ambientes, experiencias e estruturas de condutas. São dos corpos invisíveis que estamos falando, mesmo porque, você é um corpo.


Sim, esse é outro jeito de olhar seu yogar, sem dúvidas. Os desejos movimentam os yogares humanos, cristianismos e xamanismso. Mas o erotismo não é a existência, é seu movimento desejante. Por isso que os estímulos desejantes externos, yoguicos ou heideggerianos, sozinhos, não dão conta da paixão que alguém pode obter com eles. Há um mundo pré-objetivo ou reflexivo que permite a “vivência do corpo próprio em seus modos”, ou seja, em sua unidade modal (de modificações possíveis), motriz (de movimentos) e singular..


Tento lhe trazer de volta, pois sei que, talvez, tenha se perdindo em algum momento da sua primeira leitura.


No seriado israelense (Jornada de Heróis), uma das personagens é um soldado super devoto (único do pelotão) que, ao passar pela morte de seu companheiro numa missão, do desaparecimento de sua irmã, a loucura de outro colega, o câncer terminal de um amigo de infância, e outro viciado em heroína (sim, é tragédia em cima de tragédia), deixa de usar a quipá (aquela espécie de boina, símbolo da religião judaica). Ele começa a perceber que, em suas oração obrigatórias diárias, as intensidades judaísticas deixaram de passar pelo seu corpo: ele (a personagem em crise existencial religiosa) não sente mais nada, perdeu o sentido judaíco as suas orações. O corpo daquele judeu devoto, construído por anos de formação judaíca - na família, escola, comunidade, ritos e etc - não está mais ali: o desejo pelo judaísmo deixou de ser tesudo, a religião não o move mais. Ele se torna ateu.


O QUE É O YOGAR AUTÊNTICO, ENTÃO?


É toda força (e não forma) que agencia intensidades desejantes-tesudas ou passagens eróticas. Intensidades que diminuam a alienação de quem pensamos ser; que permitam às forças desejantes passarem nos corpos com (e por) mais vida, ocupando os espaços devidos que lhe caibam por desejo passar. É estar à espreita, em nomadismo, para não ser capturado.


Como fazer isso:
(1) ampliar seu corpo na atenção do que se passa;
(2) perceber se o que passa é alegrador|potente, que lhe compõem, ou não, entristecedor|despotencializador de vida, decomposições.

Quase todos os estudos em yoga se debruçam sobre um passado, num desejo paranoico e|ou neurótico de retorno de um yoga que nunca foi. Só montando num yoga tesudo, se tornará possível aprender visitar o passado, para se atualizar o futuro - e salve Chico Science e Nação Zumbi, pois meu yoga|maracatu pesa uma tonelada de surdez e pede passagem.




Foto do escritorPhD. Roberto Simões

Um jovem de, aproximadamente, uns 16-17 anos está numa área verde de um camping praticando yoga. A cena mostra a realização de alguns asanas encadeados, talvez vinyasa flow, mas qual a forma de yogar que o rapaz utiliza, é o que menos importa aqui. Ele está sem camisas e vestindo uma bermuda jeans surrada que um dia foi uma calça. Cabelos compridos presos em um rabo de cavalo desgrenhando, despojado, veste a persona do ideal-yogin-desapegado. Tudo no rapaz apresenta que sabe o que está fazendo, não é um principiante, fica evidente que já pratica há algum tempo. Ele domina as técnicas do seu yoga muito bem. Seu corpo é magro, esguio, forte. É um virtuoso do yoga.


Perto dali, mas sem ser avistada pelo rapaz, uma garota de mesma idade, o observa sentada num balanço do parque enquanto fuma um cigarro desajeitadamente. Segura e traga o cigarro de forma performática. Enquanto ela fuma, ele yoga, unidos pela insegurança. Tudo neles é ensaiado, mas, enquanto o corpo dela passa despercebido para ele, o dele, intensidades no dela. Olhos pintados com lápis preto forte, rímel, veste camiseta e calças pretas para combinar com o loiro dos seus cabelos, programadamente rebeldes. Ela parece o oposto da saúde “natural” que o rapaz ostenta. Mas são muito similares na diferença: ingênuos e alienados em seus próprios mundos|ficções ou mayas. É que o rapaz compartilha muito pouco do coletivo em que vive nele. Numa high school típica estadunidense, ela é estranha ou representa bem a obrigatória bad girl. Tudo neles, está, estranhamente, próximos e distantes.

Isso é yoga?

Ela dispara sem admiração exagerada, apenas o questiona se é o que ela imagina, por saber de vista, talvez já tenha folheado algo similar em revistas, assistido em TV ou arrastado para cima em mídias sociais. O rapaz, assim que percebe que está sendo observado, absorto, distraído ou alienado em sua prática e nos processos que lhe envolvem, se levanta rapidamente. Totalmente desconfortável, veste às pressas sua camiseta de costas para ela. Enquanto se recompõe, responde:


É a sua respiração, eles a chamam de pranayama. Ela flui com os seus movimentos, seu asana. Supõe-se que isso, conecte a mente e o corpo para abastecer seu samadhi.


Enquanto ele fala, ela, sempre na persona da parisiense, continua a se balançar. Corpo totalmente relaxado, cigarro entre os dedos, a cabeça acena afirmativamente, enquanto ele explica na persona do iluminado mestre zen. Quando ele acaba a sua exposição professoral, ela compreende que ele não está sendo arrogante, nota bem antes certa ingenuidade sedutora. Talvez, pensa ela sem se dar conta, com certeza foi assim que lhe ensinaram e dispara:


E isso, realmente, funciona?

Ele fica sem saber o que responder. Seu corpo desajeitado, congela com a pergunta e a situação, nova, distante das cartografias que ele conhece. Ninguém nunca havia questionado de forma tão pura seu sistema de crenças. Cultua Noam Chomsky, pois acha non sense o Natal, mas, contraditoriamente, afirma chackras, nadis, prana e outras invenções humanas, iguais a do menino Jesus. Toda a sua tentativa de esclarecer o que fazia, perdeu sua tração absoluta: se a Bíblia não faz sentido, por que os sutras teriam? Ele sabe que ela entendeu o que disse, não precisaria explicar mais uma vez; pior, ele não sabe responder a simples pergunta dela:


Does this, really, works?

Seu corpo não sabe como se portar à indisciplina dela. Há uma indisposição que aquela impostura comporta. Ela, seu corpo, suas roupas, o cigarro, o relaxamento, não é desconfiança se aquilo tudo sobre yoga que ele disse seria verdade. Não, não. A pergunta o obriga se posicionar se “realmente” aquilo ali que estava fazendo, realmente funciona nele. Há uma drástica transição daquele corpo de menino-homem flexível, forte, decidido sobre o que e como se colocar de novos jeitos frente a uma nova cartografia yoguica. Ela seria também uma yogin que deseja saber se o yoga dele (ou nele) está dando certo. Talvez, só seu endurecimento, sem jeito diante da presença do corpo-pergunta-jeito dessa menina-mulher que o observa, o interpela, mas, sobretudo, deseja só saber que se trata aquilo tudo nele, não em livros, mestres ou escolas.


Passam-se mais de 20 segundos entre a última pergunta dela. Bem da verdade, ele responde, mas é gestual sua fala, ele não sabe como dizer, mas o corpo sempre responde nessas e em todas as outras horas. E o corpo do menino-yogin-homem é clara: “eu não sei lhe responder”. Ela, “ouvindo” a resposta corporal dele, se levanta, anda calmamente, mas firme para mais próximo dele. Quem sabe os corpos se entenderão melhor que suas mentes? Seu quadril o enlaça no andar, mas é duro também, aquele andar performático de que pensa que sabe o que faz aos seus plenos 17 anos. Ela é tão insegura perante ao mundo quanto ele, mas conhece melhor o mundo que a envolve e atravessa do que ele, que até ontem, se deslocava na floresta. Mas ali, sozinho com ela, diferia.


Se pudesse correria, mas não tinha mais idade para tal ação disparatada, seus hormônios diziam para ficar e seus pensamentos para fugir. Yoga é um processo lento e gradual de desenvolvimento do estar à espreita. Há dois dias vencia um cervo com uma faca, hoje morria pela língua de uma Durga urbana. Ela caminha e senta há uns 10 passos dele. Ele rijo, olhar pro chão, tentando encolher o que dizer. Então ela o ajuda, e se apresenta dizendo seu nome: Claire. Parece que ele está vestindo uma roupa que não serve mais de tão apertada, seu corpo não encontra jeito de se ajustar ao encontro. É tanta intensidade pedindo passagem que ele não sabe quais comportas abrir e quais fechar, por isso, tudo entra no modo espera. Ela é plena e ele luta-fuga-congelamento. É como se sua vida corresse perigo. Sim, ele responde para mim: A minha vida, realmente, está prestes a morrer... morreu. Ele já não é o mesmo e experimenta, pela primeira vez, um savasana em tadasana.


Seu rosto se contrai em micro-expressões de fuga. Seu maxilar não cabe mais em sua rostidade: Bodevan, ele responde, meio que balbuciando seu próprio nome a ela.


Bodevan? Que tipo de nome é esse? Ela o interpela mais uma vez.

A jaula-corpo do rapaz yogin se fecha ainda mais. Quanto mais contraído, menor os pensamentos que expressam o que se passa em intensidades, muito mais forte do que passava no seu yogar alguns minutos antes. Ele se percebe encurralado. Foi pego de surpresa em sua prática pela vida vivida na vida real e, desprevenido, tem seu yogar e nome questionado. Ele está sendo desterritorializado, seu chão, nome, organismo e tudo o que o sustenta parece não se aguentar mais nesta composição. Haveria outro jeito de estar ali? Ele desapareceu. Não há um lugar em que consiga estar confortável. Apesar disso, ou devido a tudo isso, há uma nova composição se construindo. Ele é o mesmo yogin de nome Bodevan, mas não é o mesmo. Ambos se atraem. Algo está em metabolização ali.

Ele parece escolher melhor as palavras agora, antes de respondê-la:

Meus pais inventaram, responde ele olhando para o lado oposto ao corpo dela que busca encontrar frestas para os encaixes certos.

Ela, inconsciente, é também uma yogin; é a sua guru ali, naquele momento tão delicado de tentativas de (re)composição. Pode não dar nada certo. Assim, como que traçando uma fuga, mas não de afastamento, de atravessamentos. São os desejos por mais vida que desorganiza corpos, há que se alargar superfícies para afectar e ser afectado.


Ela diz:

Que esquisito, por quê?

Ela não entende o motivo de um nome tão inusitado. Qual seria o motivo do nome dele? Ele, olhando para baixo, mas na direção do corpo dela, mira os pés dela, e depois vem subindo para responder:

Nossos nomes são únicos. Só há um de nós em todo o mundo.

Elevando o olhar na seta dos olhos dela, ela que completa:

Isso é muito esquisito, retruca.

Franzindo a testa e o canto da boca, ela o desmonta mais uma vez. Não há ironia no tom de voz, é contradição na sua força mais pura que aqueles corpos buscam se completar. Mais uma vez, ele parece não caber no corpo; eleva os dois ombros juntos, movimento ríspido jogando o queixo para o lado, quase como um tique ou tentativa de sair do corpo que não lhe cabe do jeito que está, pede outro corpo, clama por Artaud e seus corpo-sem-órgãos. Ele mira sua cabeça para o alto, como se estivesse buscando algum apoio, divino talvez? Ele acredita em deuses? É possível ser yogin e ignorar Shiva? Ou seriam todos os deuses uma fraude, mayas ou só mitos?


Ela sorri de forma malandra. Parece agora que já o leu desde o início - estaria ela em samyama nele? Acomoda um novo cigarro no canto da boca, agarrando-o entre os dentes, sem tocar nos lábios. Ela parece brincar com eles agora - o cigarro, a boca e o que restou de Bodevan - tamanho o domínio corporal sobre ele|corpo-dele. Cada gesto, propositadamente pensando para deixá-lo constrangido de quem ele pensava ser, sem ação, força uma abertura em ato-reflexo, como que os corpos realizam, naturalmente, depois que se prende por muito tempo o ar, sabe? Ela é uma xamã quebrando a demanda que fizeram para ele. Ela está abrindo os portais ou canais de um corpo fechado. A frequência cardíaca acelera, falta ar no lugar, parece que vai morrer, mas depois de alguns segundo do limite, nos abrimos num grau profundo de relaxamento e fruição pelas aberturas. Ela sabe disso, é uma fisiologista espiritual.


Todos seus movimentos foram calculados com prudência para encurralá-lo, deixando-o sem ação, sem saber para onde ir. Ele busca construir uma rota-de-fuga. Ela desmonta todo um discurso pronto sobre o que é o yoga, não para buscar uma resposta definitiva, mas para levá-lo ao cerne do yogar autêntico: duvide. Até seu nome é dissolvido no processo. O que era, até então, algo exclusivo em todo o mundo - perde o sentido. Samadhi, ela sabe muito bem, pois é Durga naquele corpo de menina-mulher. Talvez, ambos, repitam um para o outro em silêncio no segundo ato: isso tudo é muito esquisito, rindo das vidas que viveram. Ambos sabem que são estranhos um para o outro e para os coletivos, que insistem em ordená-los de fora. Eles não se sente bem com isso, desalienando-se.


Foto do escritorPhD. Roberto Simões

Atualizado: 17 de ago. de 2022


Beleza professor, mas o que é Yoga então se você defende a multiplicidade de estéticas de existência yoguica?
Não se perderá aí a essência do yoga?
A multiplicidade, é a própria essência do yogar autêntico.
Ah, tá fugindo da reposta que é o que define essas “infinitas forças” que formam e possibilitam alguém afirmar que isso ou aquilo é, ou não yoga?

Yoga é toda força aliada que agencie intensidades passarem em corpos promovendo a diminuição da alienação dos ordenadores de realidade dominantes. Yoga então não são as técnicas, mantras, gentes ou livros, mas qualquer coisa que lhe deixe à espreita. Por exemplo, o dársana-yoga de Patanjali construiu uma gigantesca máquina-yoguica óctupla que funciona exorcizando demônios-klesas: ignorância, medo de morrer, apego, aversão e orgulho. Já as diversas escolas tântricas organizaram suas máquinas-yoga na desobstrução dos canais corporais prânicos (nadis e chackras), pois segundo essa perspectiva de yogar, o estar à espreita dos aparelhos-de-captura ou ordenadores-de-realidade-Estado se infiltram em corpos doentes e não em quem segue ou não moralismos (e os bons-costumes) de um yamas-niyamas, de “nobres verdades”, das vidas celibatárias, etc.


Mesmo yogares modernos, essas dobras das máquinas-yoga tântricas e óctuplas de Patanjali, não são meras réplicas, mas genuínas linhas-de-fuga daquelas. O Iyengar-Yoga, por exemplo, fundamenta seus agenciamentos de forças no alinhamento corporal para ganho de espaços necessários em fazer passar intensidades. Já o yogar Asthanga-Vinyasa de Jois, orbita em produções caloríferas corpóreas como sinal do fluir prânico, portanto, livre dos obstáculos-demônios-klesas para que intensidades possam agora passar.


Entre as máquinas-yoga de motrizes brasileiras, o Método de Yoga Restaurativa de Miila Derzett operacionaliza a fruição intensiva do seu yogar no alcance de matizes relaxantes profundas agenciadas pela experiência da morte em variações do savasana. Mas há muitos yogas que não objetivam alcançar o fim das ilusões (mayas) desatentas (avidya) que nos organizam a viver capturados; estes agem como terapêuticas e possuem suas próprias clínicas: o yoga hormonal da Profa.Dinah é um exemplo dentre tantos outros possíveis de se elencar. O que não os fazem menores, cognitiva e|ou epistemicamente de qualquer outra máquina-yoga, como a vedântica-moderna ou a vedântica-shankara; são apenas formas de forças perspectivas possíveis de se yogar.


Vamos tentar operacionalizar todos os Yogares-Máquinas:


(1) um programa precisa ser traçado, minuciosamente, da margem do rio em que vivemos - em que estamos organizados socialmente ou em mayas compartilhados -, rumo à segunda margem do rio ou samadhi, onde o plano de imanência se encontra desestratificado ou caosmótico.


(2) deverá acontecer uma tentativa, muito prudente, de desterritorialização ou mergulho momentâneo na caosmose samádhica. Não há yogar autêntico algum, sem algo ou alguém morrer, momentaneamente, para então, renascer sob novos signos e desejos.


(3) a travessia rumo à margem 2 exige muita atenção e esforço (há uma ascese aqui). A escolha do lugar e aliados adequados são imprescindíveis nas tentativas estéticas de existir.


(4) já em terras movediças samadhísticas da segunda margem, avistamos, ao longe, os mayas que nos organiza(va)m na primeira margem da cotidianidade compartilhada: a terra dos distraídos. É um processo lento e gradual essa abertura perceptiva.


(5) muitos yogares, no entanto, se quer desembarcam à segunda margem, só navegando em águas yoguicas|meditativas calmantes; alguns yogares, pode ser programados, inclusive, para docilizar corpos yoguicos. Muitas vezes, só esse passeio (saindo do porto da margem 1 ao meio do rio) é o que desejam yogins, ou seja, yogam para se afastarem, de tal feito, tomarem distância da pressão cotidiana dos mayas que o sufocam. Desejam, precisam ou só conseguem isso hoje, e, compreenda, talvez já seja bastante coisa, pode acreditar. Aqui é o limite de muitos yogares e yogins-nosso-de-cada-dia.


(6) entrementes, pisar em solo desorganizativo da segunda margem não é o fim. Plenos em seus próprios pés sob a segunda margem do rio, yogins conseguem avistar, ao longe, o coletivo em que vivem como espelhos ou observadores (purusas) das infinitas forças que os compõem e decompõem. Mas há os que intentam atravessar o espelho-purusa, e mergulham em direção à terceira margem do rio (o fundo de si), como bem explica o swami sertanejo G.Rosananda.


(7) aos raros que se aventuram a esse projeto, vivencia-se o não-ser ou o estar-sendo nos passos de Shiva, Matsyendra, Sidarta, Kali e outras nossas senhoras, tão (a)parecidas com Padilhas.


(8) ninguém sabe o que irá encontrar na terceira margem, pois cada um singular e coletivo, em simultaneamente. O fundo do rio, ou além-do-samadhi, é escuro e frio, pois a luz do sol diminui sua quentura tanto quanto mais se afundamenta em corporeidades-sem-órgãos. Há que inspirar fundo de um pouco do maya da margem 1 para não ser despedaçado vivo e de uma vez só, embebido de samadhi; faz-se um kumbhaka (retenção) profundo, e inicia a imersão. Encontraremos lama, pedras, algas, outros bichos, espectros, mostros e gentes, quem sabe o que não viveremos ali. Alcançaremos o fundo de nossas superfícies.


(9) todo esse programa pode não funcionar na primeira, segunda ou terceira vez. A eficácia yoguica aqui depende de muitos fatores: um bom yoga-programa-máquina-aliado, o lugar escolhido, a coragem e prudência do yogin, as intensidades... Viver|Yogar é sempre muito perigoso. Sigamos os conselhos do seu Carlos Jung.


(10) mas não dá para viver no fundo do rio (só enquanto tiver ar), ou construir abrigo na segunda margem para sempre. Isso seria caso de uma esquizofrenia de hospital: Jesus voltou do deserto onde falou com o diabo, Buda do nirvana na ideia com Mara e suas filhas, Maomé de Jannah nas asas de Gabriel, e Krishnamurti cagava e fodia como qualquer um de nós. Há que voltar para a primeira margem com segurança. Um dos passos mais negligenciados, hoje em dia, é não planejar um traçado seguro de retorno de volta a primeira margem. Quais resíduos dessa jornada fica? O que se passa ou passou? Quais encontros ocorreram? São perguntas dignas de se fazer (e responder). Um diário de bordo é essencial aqui, já que são de vivekas (discernimentos, intuições e sacações) que se define uma vida de yogin autêntico.


(11) o conhecimento intuitivo nasce dos resíduos de incursões yoguicas. Cada máquina-yoga, como já descrevemos algumas acima, possui suas próprias cartas náuticas, cartografias de rio, potência de motor, autonomia de combustível... Assim, cada yogin precisa aprender sobre os ventos que lhe atravessam, corpos que o (de)compõem, levar consigo um calendário das marés, planejar em qual lua sair (ou ficar) e qual yogar-máquina utilizar afinado com seu propósito (sankalpa). Dessas reflexões e planejamentos que uma máquina-yoga X ou Y pode ser mais eficaz em seu voo xamã, ou não. É uma escolha baseada na vida vivida. Somos todes, no fundo da carne exposta, yogins de ouvido.


(12) ao longo de várias incursões ENTRE margens 1-3, mais e mais percebemos ritornelos que insistem em ficar ressoando em nós, como refrões de músicas-chiclete. Todo retorno de qualquer processo yoguístico autêntico, pequenos pedaços de novas terras serão trazidas à carne firme para a primeira margem. Quiçá aquele maya que lhe organizava deixa de fazer sentido e outras novas e potentes (ou decompositivas) utopias ativas surgirão?


(13) quem sabe um dia, você, enfim, retoma o processo criativo de sua própria vida e inventa um novo maya para chamar de seu ou até, um yogar-máquina que será aliado para outros yogins? Só não esqueça de uma coisa, tudo sempre será só mais uma ficção (ficções que curam); até seu eu|Self e tudo descrito até aqui ou em qualquer outro manual de yoga, será só mais uma perspectiva.


E o yoga em si?

Só mais um maya dessa caosmose linda de se viver em que estamos brincando e dançado (maha-lila). Somos tudo e todes inacabamentos, por isso livres (kaivalya).


 

Inspiração: Moraes Moreira, In: Yogue de ouvido


Seja Bem-Vinde

Você adentrou um espaço em desconstrução. Desacreditamos metafísicas, por isso bricoleurs ou feiticeiros do Yoga quebrando a demanda de todo maya que lhe enfeitiça. Mas entenda, tudo é maya.

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