Nascemos seres desejantes livres, mas vamos sendo marcados no corpo sobre quais desejos devemos nos guiar. É uma jornada sem fim, por isso, sempre inacabados, livres.
CENA 1:
Um bebê sente um desconforto na linha do umbigo, mas não tem a menor IDEIA do que seja aquilo. Ele só sente um desejo que o move, mas é pré-reflexivo, desejo desconectado dos signos que o significam. Ele chora, ato reflexo ou linha-de-fuga desejante que sente, mas não sabe do quê. Não que seja in-significante, é um genuíno desejo des-significado.
O choro é um gesto, uma linguagem corporal
E, com o espanto que o acompanhará toda a infância - até ser totalmente codificado pelos signos daquele coletivo que o adotar - esse bebê vê surgir, no espaço, uma esfera de carne quente, túrgida e com um bico o puxando à sua abertura. Esse agenciamento perfeito, o torna apto a se acoplar: desejo, sucção e o seio mãe. Agora, fluindo, esse corpo|Ser-Todo sente o corpo-líquido quente percorrendo com alegria e potência seus canais internos. E, adivinha? Aquele desconforto, que só anos depois vai compreender ser fome, desaparece como por mágica! Esse feitiço e a alquimia nele pode desaparecer, quanto mais for sendo engolido pela educação, a família, o Estado e a Igreja.
Que mundo louco é esse em que fui parar, totalmente diverso do universo líquido, a-gravitacional, morno e protegido em que vivi por 9 meses
Nesta nova cartografia, em que o reterritorializa com avidez, há outras forças que insistem em sugá-lo para o centro da terra com a boca escancarada e faminta, tanto quanto ele estava alguns minutos antes. Há um perpétuo convite a ser devorado e comer tudo por inteiro. A morte o espreita, tanto quanto ele, ambos, num canto escuro da floresta. O bebê não sabe que o seio da mãe pertence ao corpo dela (e até essa ideia que eu acabei de escrever, é só mais uma invenção, pois, em algum outro plano de consistência, os corpos podem estarem sendo vividos como únicos: extensões de um único e mesmo corpo ou Substância (salve Espinosa). Assim, todos os corpos recém-chegados aqui, ou em seus platôs pré-reflexivos - antes de suas significações - são imanentes por natureza.
CENA 2:
No velório de um velho pai-de-santo, sua filha, desde pequena sendo preparada para herdar o terreiro, mas que se convertera ao neopentecostalismo devido o amor ao marido, recusava-se a seguir o rito da religião do pai. Mas, assim que sua tia entoa um cântico de orixá, e os ogãs elevam o caixão em procissão, “um vento se desprendeu do vácuo, a filha rodopiou num giro abrupto e sentiu a força de Iansã. Em um segundo, uma multidão toda de branco tomou cada espaço. Vieram todos os orixás, mas Iansã seguiu na frente. Sacudindo os braços, tremendo os ombros e abrindo caminho para o cortejo com sua rama de folhas de peregun. As tias da Bahia comentaram entre si:
– Oxê, mas ela não se converteu?
– Ela se converteu, mas Iansã não....
CENA 3:
Entre jovens do Grupo de Oração Ágape da Paróquia Sagrada Família de Goiânia/GO/Brasil, outros corpos estão sendo experienciados e construídos:
Enquanto cantavam, alguns servos faziam imposição de mãos em participantes, na maioria das vezes tocava-se no ombro e na cabeça. Quando tocadas, a maioria das pessoas chorava ou contraía a face simulando o início de um choro. Sandra rezava por ela e também realizava movimentos pendulares leves para frente e para trás. A pessoa repousou caindo na diagonal para frente e para o lado, enquanto Sandra tentara amenizar a queda.
O repouso no espírito é uma “experiência marcada pela tomada de todo o corpo do sujeito pelo Espírito Santo – consequência simbólica e física, da entrega de si a Deus”. É uma experiência espiritual muito importante entre os católicos da renovação carismática, pois é quando o “Espírito rende o corpo humano de suas resistências de forma que a própria pessoa não tenha controle sobre o seu corpo e, por isso, acabe caindo ao solo”. O corpo dessa pessoa que repousou, que era totalmente dela até então, agora, é só desejo pelo Espírito Santo.
CENA 4:
Muitos vivem em outros corpos, diferentes do seu. Entre as diversas tradições yoguicas, por exemplo, por mais diversas que sejam em suas doutrinas e formas, as fisiologias espirituais se interseccionam compondo corpos yoguicos.
Kundalini é uma serpente adormecida enrolada na base da coluna espinhal.
Muitas técnicas espirituais, sobretudo, hatha-yoguicas e tântricas, resultam no aumento do calor corporal pela (ou para?) desobstrução de canais prânicos por respirações especificas, combinadas com mudras, asanas, mantras. Há, aqui, e nos demais exemplos cênicos anteriores, uma transformação corporal, alguns autores chegam até a propor z ideia de uma alquimia corpórea. Mas tudo isso, possui um propósito religioso. No caso específico de algumas igrejas, seitas e cultos yoguicos, por exemplo, a ascensão kundalínica pela coluna ou sushummuna, entende que a cada chackra conquistado, poderes supranaturais (siddhis) serão vivenciados: viagens para fora do corpo biológico, visitas a mente de outros corpos e, até, a desnecessidade ingestória alimentar, pois passam a viver de prana cósmico.
A grande experiência espiritual yoguica (samadhi) ocorre, quando um|a yogin avançado|a, em seu ascese (sadhana), alcança um corpo imortal. O sucesso e velocidade desse treinamento corporal vigoroso, depende de muitos fatores, como do corpo herdado por seus ancestrais, utilização ou não de plantas do poder, além de questões sociais e, até, planetárias.
Se ele (yogin) tiver sucesso na manutenção de sua concentração (samyama), o seu corpo vai, lentamente, iniciar um resfriamento, e um novo tipo de corpo (corpo yoguico) é construído”. Em outras palavras, este yogin terá alcançado um status divino.
TODOS, UM SÓ E MESMO CORPO, MAS COM SIGNOS E DESEJOS DIFERENTES
Toda corporeidade é marcada pela intenção e o poder de gerar sentido. Ninguém pensa antes de falar, sua fala é seu pensamento. E todo pensamento são ideias do corpo. Assim, a palavra, num mantra ou no total silêncio, “torna-se a presença do pensamento no mundo sensível, que é seu corpo”. Por meio da linguagem, o corpo projeta-se para um mundo. Mas a linguagem aqui não se restringe a falada, pois o corpo fala, e muito.
Antes da consciência reflexiva, há uma consciência perceptiva. Entenda que eu estou te levando de volta ao seu corpo invisível; aquele que não é o objetivo, físico, de carne, nem mesmo o corpo-psique e, muito menos, aqueles sutilizados das escrituras religiosas: sagrado coração de Maria ou Hanuman. O corpo invisível não é marcado pela terra, pelo déspota ou capital, é puro fluxo. Mais do que isso, estamos relegando a uma sub-categoria, tudo o que antes era superior no mundo "clássico" criado por yogins modernos. Eles sobrecodificaram corpos em metafísicas, tornando-os visíveis, racionalizados, reflexivos. E sim, mesmo você que se diz "não-dual", pois parou de buscar fora, mas continua sua peregrinação para dentro, como se houvesse algo encoberto, imaculado, ideal. Sim, isso é transcedentalismo ainda, seu corpo não existe, é metafísico. Mas estamos aqui, no campo pré-reflexivo.
SEGURA, QUE VAMOS AVANÇAR
Há uma rizomática relação entre percepção, motricidade e representação. Mas, estes, se agenciam pelo desejo, libido ou tesão: uma intenSão que movimenta. O oposto disso, é o sedentarismo: aquele corpo que faz passar sempre a mesma coisa, por isso se move tão pouco.
A prática de exercícios físicos regulares, por exemplo, também aumenta a libido, mas não porque o corpo biológico fica mais atraente, mas pelo alargamento da superfície corporal em seu poder de afectar e ser afectado. Antes, constrangido - um corpo rijo - passa pouco ou quase nada por ele. A libido são intensidades pedindo passagem. Movimentar corpos, produz acelerações, repousos necesssários e estabilidades instáveis (seria isso os gunnas?). Não obstante, há que encontrar, explorar as aberturas, os agenciamentos e os aliados certos. Para isso, exige-se deslocamentos exploratórios: vida nômade. Como se sentir - olha só o termo - atraído-desejoso-tesudo pela vida, se nada é percebido, se passa pouco ou quase nada no corpo? Diminuindo as possibilidades intensivas ou desejantes, tudo se contrai.
Nosso corpo busca, incessantemente, por mais vida, essa é sua "essência". Mas se fechamos\bloqueamos nosso corpo às passagens experimentais, o que se passará nele? Nada. Ou, re-SENTIMENTO: é sempre o mesmo que passa, e você se vicia e passa acreditar em promessas de espera: corpo poroso. Capturado.
CORTA PARA O ESPIRITUAL
Yoga, então, é um potente expansor de afectos. Mas entenda, cada yoga-Estado disputa com outros yogares o seu corpo. Cria-se aqui um gigantesco campo de disputa (aqui é Pierre Bourdieu gritando no seu ouvido). E como um yoga, de potente expansor de afectos, abridor de corpos a novos desejos que pedem passagem em mim, pode me capturar a viver só de um jeito? Ué, organizando seu corpo de fora de tal jeito-FORMA que seu tesão passa a desejar apenas esse yogar, com seus livros, seus deuses, gurus e práticas. Preciso desenhar quem até passa mal, tem crises de ansiedade por não conseguirem praticar ou atrapalharem suas doses diárias da morfina-yoga dele|a?
YOGAS COMO APARELHOS-DE-CAPTURA E OS YOGARES NÔMADES E SELVAGENS
Mas um Yoga-Igreja é algo ruim? Claro que não, ser alienado desse jogo, sim. Se manter em servidão voluntária, muito. Ser um pequeno-fascista do yoga capturado? O foco aqui. Agora, talvez, você compreenda por que alguns livros, práticas e falas se tornam proibidas, tabus, pecados, heresias em muitos núcleos yoguicos sedentarizantes e castradores.
E, se esse fluxo-yoga-Outre liberar um novo tesão que me desvie do Yoga-igreja confessional?
Estarei livre! E o que eu vou fazer quando kaivalya chegar? Por isso, o rolê não é estar livre disso ou daquilo, mas liberdade para quê?
O que farei com esse tal de Moksa? Mais nada? Ah, mas isso não é Moksa, é o Céu Cristão!
Perceber o amor de Jesus, a compaixão budista, os santos e os orixás ou a kundalini percorrendo nadis, exige um esforço (tapas) danado. Os corpos sentem e depois decodificam em signos, e percebem. Só depois surgem as ideias para organizar isso tudo.
Cada religião ou espiritualidade deve, na verdade, precisa, para se manter viva e atualizada, provocar aumento da libido em seus conversos. E ninguém se converte pela razão, mas pelo corpo, é ali (e tudo) que vive os sentimentos. Há, portanto, um erotismo nas shalas do mundo para manter seus yogas atraentes e desejantes.
NÃO HÁ YOGAS SEM YOGINS. E NÃO YOGINS, SEM DESEJOS
Livro nenhum, sozinho, movimenta kundalini pela palavra grafada num papel. Há uma TEnSÃO aí, agenciamentos corporíficos, esquemas corporais e suas técnicas que precisam conectar corpos aos desejos yoguicos asthangueiros, tântricos, restaurativos ou marginais. Os afectos que movimentam corpos búdicos não são os mesmos tesões que percorrem corpos yogaterapêuticos. Se liga tiozão, o rolê não está no campo do racional fisiológico e seus hormônios, de uma citta psicologizada ou do sutil em ida e pingala. Cada coletivo yoguico (espiritualizado, psicologizado ou biologizado), tensionam seus adeptos a se apaixonarem por suas diferentes formas e desejos. E paixão é o que movimenta corpos. A história religiosa inteira se faz em corpos eroticamente atraídos por diferentes ambientes, experiencias e estruturas de condutas. São dos corpos invisíveis que estamos falando, mesmo porque, você é um corpo.
Sim, esse é outro jeito de olhar seu yogar, sem dúvidas. Os desejos movimentam os yogares humanos, cristianismos e xamanismso. Mas o erotismo não é a existência, é seu movimento desejante. Por isso que os estímulos desejantes externos, yoguicos ou heideggerianos, sozinhos, não dão conta da paixão que alguém pode obter com eles. Há um mundo pré-objetivo ou reflexivo que permite a “vivência do corpo próprio em seus modos”, ou seja, em sua unidade modal (de modificações possíveis), motriz (de movimentos) e singular..
Tento lhe trazer de volta, pois sei que, talvez, tenha se perdindo em algum momento da sua primeira leitura.
No seriado israelense (Jornada de Heróis), uma das personagens é um soldado super devoto (único do pelotão) que, ao passar pela morte de seu companheiro numa missão, do desaparecimento de sua irmã, a loucura de outro colega, o câncer terminal de um amigo de infância, e outro viciado em heroína (sim, é tragédia em cima de tragédia), deixa de usar a quipá (aquela espécie de boina, símbolo da religião judaica). Ele começa a perceber que, em suas oração obrigatórias diárias, as intensidades judaísticas deixaram de passar pelo seu corpo: ele (a personagem em crise existencial religiosa) não sente mais nada, perdeu o sentido judaíco as suas orações. O corpo daquele judeu devoto, construído por anos de formação judaíca - na família, escola, comunidade, ritos e etc - não está mais ali: o desejo pelo judaísmo deixou de ser tesudo, a religião não o move mais. Ele se torna ateu.
O QUE É O YOGAR AUTÊNTICO, ENTÃO?
É toda força (e não forma) que agencia intensidades desejantes-tesudas ou passagens eróticas. Intensidades que diminuam a alienação de quem pensamos ser; que permitam às forças desejantes passarem nos corpos com (e por) mais vida, ocupando os espaços devidos que lhe caibam por desejo passar. É estar à espreita, em nomadismo, para não ser capturado.
Como fazer isso:
(1) ampliar seu corpo na atenção do que se passa;
(2) perceber se o que passa é alegrador|potente, que lhe compõem, ou não, entristecedor|despotencializador de vida, decomposições.
Quase todos os estudos em yoga se debruçam sobre um passado, num desejo paranoico e|ou neurótico de retorno de um yoga que nunca foi. Só montando num yoga tesudo, se tornará possível aprender visitar o passado, para se atualizar o futuro - e salve Chico Science e Nação Zumbi, pois meu yoga|maracatu pesa uma tonelada de surdez e pede passagem.