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Dr.Roberto Simões

Espiritualidade em Cuidados Paliativos: Cuidando para uma boa morte


Introdução

Todos nascem condenamos à morte. No entanto, há meios de negar a sua existência. O medo da morte, do pós-morte e da dor sempre contribuíram para que se desenvolvesse e herdasse, ao longo da história, respostas fisiológicas e culturais que ainda hoje auxiliam os indivíduos afugentar, para longe das suas experiências cotidianas, o selo da única certeza absoluta da vida.

Com o advento das sociedades laicas, o valor cultural da religião e das suas crenças perde o seu trono de detentor exclusivo da verdade para outras formas de saber, como o da ciência. Surge então, o questionamento de explicações sobrenaturais, mas que são substituídas por outras nem sempre tão distantes assim dos antigos mitos e dogmas de outrora. Hoje, a fé na eterna juventude também é depositada em cosméticos, em cirurgias plásticas, em dietas, na obsessão por exercícios físicos, em nanotecnologias, e outras que disputam o elixir da imortalidade ao lado das tradicionais explicações religiosas, como a vinda de um messias, dos banhos de ebó e amaci, participação em kuras, viver de prana ou a crença na existência de mundos celestiais. O que há em comum em todas elas? O fim do sofrimento, da dor e a garantia da vida eterna.

Vinculada ao tabu, a negação da morte evidencia-se nas inseguranças e angústias frente à vida, e ressignifica-se de infinitas formas ditadas por diferenças intelectuais, sociais, religiosas, econômicas, psicológicas e etc. Por isso, é necessário compreender o fenômeno da morte com naturalidade e familiaridade, pois, só assim, o tabu, o preconceito e o mêdo que existem sobre esse tema serão exorcizados (FRANCO, 2008).

Na área médica, a morte sempre bateu à porta, e os cuidados paliativos ganharam notoriedade devido aos valores humanos e as concepções modernas empregadas ao tratamento da saúde, da qualidade de vida e de morte. No entanto, sabe-se que os valores religiosos/espirituais estão atrelados ao cotidiano de muitas pessoas e, ao contrário do que se imaginava, estes não morreram com o deus de Nietzsche, pois o lado espiritual não necessita da ciência ou da filosofia para elaborar e certificar as suas próprias respostas e soluções às vicissitudes da efêmera existência humana.

Inúmeros estudos têm apontado a relevância da equipe médica multidisciplinar valorizar e acompanhar os últimos momentos de vida de indivíduos sem possibilidades de cura. Este capítulo tem como objetivo alertar aos agentes de saúde pelo crivo da ciência, para o fato de incluir os aspectos religiosos/espirituais nos cuidados paliativos, apontando os benefícios de uma abordagem médica mais humana e sensível ao histórico de vida de quem se trata, seja ele um paciente, um familiar e/ou cuidador.

As respostas inatas do mêdo da morte e da dor

Em fisiologia é muito bem conhecida as reações bioquímicas inatas que acompanham o medo. Elas são denominadas de eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, resposta de luta-e-fuga ou simplesmente eixo do estresse. E qual a razão evolutiva desse mecanismo fisiológico existir ainda hoje? Sim, pois o que não serve, evolutivamente é eliminado da natureza humana. Para se tentar ilustrar, imagine os nossos patriarcas caminhando pelas savanas da África no início dos primeiros hominídeos, qualquer descuido ou desatenção morria-se por algum predador, desastre natural ou inanição. Dessa forma, sobreviveu apenas os mais aptos a responder de forma adequada as tragédias da vida e, como recompensa, ganharam esse “programa” encravado em sua carne, e o direito de transmitir os seus genes adiante, sendo os homens e as mulheres que habitam as sociedades modernas, os seus herdeiros.

Essa “preparação” evolutiva contra a eminência da morte e da dor capacitou a todos os pacatos cidadãos de qualquer cultura civilizada ou “primitiva”, a desencadear defesas naturais quando esse sentimento se instala, dilatando-se as pupilas dos olhos para uma visão mais acurada, deslocando-se o sangue dos órgãos internos e vísceras para os músculos esqueléticos (o que fornece mais energia para lutar ou correr), eriçando-se os pêlos do corpo para o aumento da sensibilidade ambiental, secretando-se pelas glândulas supra-renais o hormônio cortisol e outras substâncias bioquímicas com o intuito de elevar a frequência cardíaca e ventilatória, além de aumentar-se a oferta de glicose ao cérebro pela inibição insulínica, com a função de manter a consciência alerta e não correr-se o risco de desmaiar ou paralisar-se frente a um perigo eminente, mesmo que só imaginado ou simbólico.

Em uma clássica pesquisa realizada em 1934, ratos eram classificados como “espertos” ou “obtusos” dependendo da sua velocidade em vencer as saídas de um labirinto em busca de alimento (PINEL, 2005, p.70-71). A partir disso, se cruzavam as fêmeas e os machos “espertos” afim de se perpetuar uma linhagem mais “inteligente”, eliminando desta forma os ratos “obtusos”. Na verdade, depois de vários cruzamentos entre os “espertos”, descobriu-se que estes não eram mais “inteligentes” do que os outros, porém menos emotivos; as suas reações ao mêdo (podemos profetizar da morte por inanição) eram menos intensas, o que lhes asseguravam mais segurança e tranquilidade em “pensar” as possibilidades de fuga e, ao contrário destes, a linhagem dos “obtusos” não controlavam de forma tão eficaz quanto os seus amigos “espertos”, as respostas ao mêdo e demoravam-se mais no labirinto, o que levou os seus observadores a classificá-los de menos “inteligentes” ou menos adaptados ao labirinto.

As alterações fisiológicas desenvolvidas por milhões de anos de evolução frente ao mêdo, capacitaram os seres vivos a sair de forma inata de um estado de desatenção e letargia para o de atenção e lucidez em momentos específicos que antecedem a percepção eminente da morte, da dor ou da simbologia destas. Assim como os ratos (“espertos” ou “obtusos”) do experimento anterior, perder a consciência, não ter energia ou agir de forma inadequada no momento em que a vida corre perigo, é fatal para a sobrevivência de qualquer espécie animal no planeta. O que se diferencia neste momento, é o valor atribuído ao estímulo inicial (busca por uma saída do labirinto) que vai desencadear a intensidade da resposta emotiva frente ao perigo, sendo esta ação responsiva atrelada também aos fatores ambientais (PINEL, 2005, p.459-467).

As respostas aquiridas do medo da morte e da dor

Desde que se nasce, o sistema nervoso desenvolve-se a partir das interações com as experiências advindas do ambiente/cultura. Todos os atuais pensamentos, sentimentos, memórias, crenças e demais tendências comportamentais que se adquire são determinados por padrões únicos dos neurônios. Assim, os padrões de atividade neuronal interagem com a percepção da situação atual (ambiente/cultura) forjando comportamentos. A probabilidade de que os genes transmitam para as gerações futuras a sua herança depende do sucesso do comportamento do indivíduo. Neste esquema, vive-se tanto influenciando o nível das experiências atuais quanto das gerações futuras que receberão os genes destes (PINEL, 2005, p.48-69; ACHTERBERG, 1996; CARVALHO, 1994a, p.103-118, 1994b, p.161-172; CAUDILL, 1998, p.48-66; EPSTEIN, 1990; FIGUEIRÓ, 1999, p.140-158; FREUD, 1975, p.165-237; KOVÁCS, 1999, p.318-337; LANG, 2000, p.1486-1490; MARTY, 1993; MAYOL, 1992; MELLO FILHO, 1997, p.1-19; MONTAGU, 1988; PIMENTA, 1999, p.31; ROSEN, 1994; SIEGEL, 1989; SIMOTON, SIMONTON, CREIGHTON, 1987; TUCKER, 1999).

Os seres vivos então, não são unicamente biológicos, são seres bioculturais, filhos tanto da fisiologia/genética herdada quanto da cultura/ambiente adquirida, e de forma equânime. Por mais tentador que seja, todas as tentativas de verificação de o quanto somos biológicos e o quanto somos culturais se mostraram infrutíferas (PINEL, 2005, p. 48-50). É como tentar descobrir o quanto da música vem da flauta ou do artista. O medo da morte nasce “instalado” no corpo, mas os signos que o revestirão dependerão dos fatores culturais.

Portanto, cada indivíduo desenvolve mecanismos próprios de controlar os seus anseios, as suas dúvidas e os seus medos afim de experimentar uma vida mais plena, confortável e adaptada ao meio em que vive. Isso pode vir a se concretizar elaborando-se um sentido, um projeto ou uma proposta de vida de cunho religioso, por exemplo. O medo, visto por este prisma, nunca é extinto, mas controlado, ressignificado ou afastado da realidade pela proposta de vida adotada.

O significado e a percepção da dor e da morte são ao mesmo tempo únicos e universais pois estão, como tudo na vida, vinculados diretamente ao mundo interno do indivíduo. Segundo SAUNDERS (1991), o conceito de Dor Total, elaborado por ele em 1967, inclui, dessa forma, além do sofrimento físico, o psíquico, o social, o espiritual, o mental e o financeiro do ser humano, abrangendo também o sofrimento dos familiares e da equipe médico–hospitalar, que cuida do indivíduo em seus últimos dias de vida. Segundo o mesmo autor, a Dor Espiritual especificamente, refere-se a falta de sentido na vida e na morte, ao medo do pós-morte, às culpas perante Deus, a busca de fé e do conforto espiritual. E, sob o ponto de vista cognitivo, a dor também vincula-se ao seu significado, às estratégias que se estabelece para lutar contra às atitudes e crenças acerca dela e dos seus tratamentos, às preferências e escolhas de cuidados, assim como os processos de pensamento e a autopercepção. E, sob a dimensão sócio-cultural, refere-se à herança etno-cultural, atitudes e crenças da família, filiação religiosa, apoio dos parentes e de outras pessoas importantes, relações interpessoais e o envolvimento em atividades, brincadeiras, escola e trabalho (HEISTER, 1995, p.557-572). Respostas fáceis e populares frente a morte, pode subestimar o tema e nos afastar da complexa, delicada e profunda teia de significados que permeiam a elaboração da espiritualidade humana.

Segundo a psicóloga da religião Clarissa de Franco (2008), investigando por meio de entrevistas e relato dos sonhos de sepultadores da cidade de São Paulo, constatou-se que os homens e as mulheres que são pagos pelo Estado para livrar a sociedade de lidar com os elementos mais obscuros da morte, sonhavam com pessoas que se suicidavam, com as mortes não naturais, com a própria morte, com assombrações, com a tentativa de avisar parentes das suas próprias mortes (quase como se eles mesmos fossem os mensageiros da notícia); ou seja, “sonham e sentem uma realidade imaginária da morte repleta de elementos persecutórios e indigestos” (p.185).

Neste sentido, levando-se em conta o mêdo da morte, do pós-morte e da dor nos cuidados paliativos, e sob uma perspectiva complexa que inclui a fisiologia e a cultura dos indivíduos, e não somente a doença destes, muitas pesquisas tem recomendado a inclusão em cursos de medicina, enfermagem e outros na área de saúde, o estudo sobre os aspectos espirituais em seus currículos (BRADY et al, 1999; BURTON, 1998; FRYBACK & REINERT, 1999; GIOIELLA, BERKMAN, ROBINSON, 1998; KÜBLER – ROSS, 1998; MILLER, 1997; MOOD JR, 1989; MYTKO & KNIGHT, 1999; PUCHALSKI & LARSON, 1998; SAUNDERS, 1991; THOMSEN, 1998).

O espírito da morte na religião

Vive-se, portanto, em um mundo em que o medo impera. Mas o medo, pode também ser também considerado uma das molas propulsoras tanto da evolução, como se viu, quanto da espiritualidade humana (FRANCO, 2008). Nas mais diversas tradições religiosas esse sentimento também se mostra de forma evidente. No Hinduísmo, por exemplo, o mêdo da morte é considerado um dos responsáveis pelo sofrimento humano. O próprio Shiva, deus tutelar do Yoga e pertencente da trindade hinduísta, ao lado de Vishnu e Brahma, se veste com cinzas dos mortos e dança sobre um anão que representa a ignorância, como demonstração simbólica e idealizada que se deve vencer a morte para livrar-se do ciclo de reencarnações, portanto, das agruras do mundo terreno, ideal soteorológico desta religião.

Segundo o cientista da religião Robert C. FULLER (2008, p.25-50), as visões apocalípticas presentes em algumas escrituras religiosas podem estar vinculadas também ao sentimento do mêdo. Ele argumenta em seu livro Spirituality in the flesh, que a crença em Deus ou deuses pode vir como uma forma de aplacarmos nossos mêdos e ansiedades (p.32). E, especificamente nas escrituras do Cristianismo, como as Bestas descritas em Daniel e Satanás em João, podem ser interpretadas como símbolos evidentes do mêdo, do ódio e da raiva contra o “Mal”, que vai se transformando ao longo da história cristã como se sabe, desde aos próprios judeus, aos romanos, depois as bruxas, aos magos, aos pagãos, ao sexo e etc. Em contrapartida, este mesmo mêdo do Mal e da morte pode ter proporcionado mais coesão social entre os cristãos, que sentiam-se mais seguros a cada prática, milagre consagrado e Graça alcançada por meio da sua espiritualidade.

Tanto na cultura indígena, quanto na africana e cristã, bases da religiosidade brasileira, o medo da morte pode acarretar outros tantos secundários, como o de assombrações e o do olhar punitivo de Deus. Isso faz uma comunidade inteira unir-se à possíveis aliados, como visto na grande diversidade de santos, orixás, médicos espirituais e magos para se protegerem (p.133).

O que pensar da morte?

A sobrevivência da consciência e da individualidade do ser, findada a vida, é comumente evocada durante os momentos de perda de um ente querido. Por mais cética que seja a pessoa, a morte de um filho, de um grande amigo ou de um parente próximo costuma ser suficientemente perturbadora para suscitar alguns questionamentos que se encontravam encubados no sítio de suas eternas dúvidas. Na realidade, poucas são as pessoas que gostam de falar sobre a morte e, comumente, o comportamento frente a esse problema é, na maioria das vezes, furtivo e dissimulado. Todavia, a morte sempre foi considerada pela religião, filosofia, ciência e crença popular como algo inerente à condição humana.

Para a ciência moderna, excetuando-se os raríssimos casos de alguns cientistas, o posicionamento tem sido há muito tempo pautado no ceticismo e na negação da continuidade da vida após a morte. Nada, entretanto, provou a ciência como área do saber. A resposta definitiva ainda não nos foi concedida. O pouco que se sabe é que vivemos uma fugaz existência no plano físico, um pequeno período de consciência individual entre o nascimento e a morte. Todavia, mesmo que este ensaio almeje tratar de ciência, nada nos impede de elucidar algumas suposições sobre a presente questão.

Em primeiro lugar, podemos afirmar que nada existe depois da morte. A vida é um agregado de aminoácidos que se combinam, e que gradualmente nos concedem nossa individualidade. Findada a fase orgânica, nada permanece. Nossa consciência não existia antes do nascimento, e com a morte, termina tudo.

A segunda possibilidade vem do conhecimento religioso/espiritual. Certas pessoas crêem em certezas que a razão científica não consegue demonstrar, é o que muitos denominam de dogmas. Talvez um dos mais famosos seja aquele que nos incita a acreditar que a consciência se inicia no nascimento ou na concepção. Vive-se uma curta existência terrena e, depois disso, somos julgados pelo Criador ou algo parecido. Caso tenha-se seguido os preceitos morais e éticos estabelecidos por uma comunidade ou líder religioso/espiritual, recebe-se como recompensa a “glória do Senhor”, a “paz eterna”, as “delícias do céu resplandecente” e etc. Caso contrário, pagaremos por isso, seja em um “local” de transição metafísico como o purgatório, para a toda eternidade no inferno, dentre tantos outros exemplos possíveis, como na cama de um hospital como local de expiação dos pecados cometidos em vida.

A terceira hipótese nos dá a chance de afirmar que não faz nenhum sentido nos preocuparmos com tais questões, uma vez que não sabemos de nada do que se passou antes do nascimento, e muito menos o que se sucederá depois da morte.

E, por fim, a quarta possibilidade considera que a nossa consciência, de alguma forma, ainda exista depois da morte, e supõe-se que a mesma já existia antes do nascimento. Tal possibilidade ainda é somente uma hipótese científica e filosófica, mas uma certeza religiosa/espiritual para muitos indivíduos (pacientes, cuidadores, amigos, parentes e agentes de saúde). E para que ela seja verdadeira, não precisamos necessariamente do suporte de nenhuma instituição religiosa ou científica. Não existe, a princípio, nenhuma necessidade de se vincular essa proposição a alguma forma de conhecimento, seja ela qual for, pois como se sabe, pensar sobre a morte sempre foi um assunto caro a todos os indivíduos, e muitos consideram a origem da religião com o início dos primeiros sepultamentos humanos.

Analisemos, pois, as nossas possibilidades. A primeira alternativa tem que ser contemplada, pois este é o posicionamento oficial da forma de conhecer o mundo mais recente, a ciência, e o que não nos falta são argumentos para justificá-la.

A segunda perspectiva, ao menos para os objetivos do presente capítulo, não deve absolutamente ser abandonada, pois é fruto do conhecimento espiritual que cresceu com todas as religiões erigidas por nós, e mesmo que não se concorde com ela, pois em geral necessitam-se da fé para ser validada, esta forma de conceber o mundo faz parte da cosmologia da maioria das vidas deste planeta.

A terceira possibilidade também deve ser considerada, é a posição dos agnósticos. E mesmo que o tema nos acompanhe desde a pré-história, muitos vivem melhor sem se preocupar com estas questões.

A quarta visão é meramente hipotética. Não existem argumentos laboratoriais muito incisivos que a apóiem. Contudo, pode-se encontrar uma vasta quantidade de depoimentos de pessoas que tiveram a chance de experienciar fatos que são, no mínimo, intrigantes, como nos inúmeros trabalhos que relatam as famosas experiências de quase-morte (MOOD, 1989). Este fatos, todavia, não são facilmente adaptados às formas investigativas da ciência moderna, e isso muitas vezes coloca tais sujeitos em algumas condições ingratas, sendo eles tratados como alienados, irrealistas, entusiastas fanáticos, místicos sem senso de discernimento etc. Não obstante, é possível encontrar bases que suportem as perspectivas levantadas, pois todas apresentam defensores honestos, inteligentes e que merecem ser ouvidos e respeitados.

Ciência da Religião

Somente entre os fundamentalistas é que há consternação no intercâmbio de conhecimentos (ciência e religião), pois entre os teólogos, os místicos, os demais espiritualistas modernos e os cientistas, só há interesse e conhecimento sendo construído.

A meta da ciência [assim como da Religião] é o melhoramento da vida do ser humano na Terra e, para ele, essa meta seria alcançada por meio de fatos com observação organizada e derivando de teorias a partir daí (Bacon apud CHALMERS, 2009, p.19).

Assim como assistimos hoje a medicina moderna ser influenciada por outras racionalidades médicas, presenciamos do mesmo modo a fisiologia moderna analisar os aspectos funcionais, tanto na saúde quanto na fenomenologia da espiritualidade humana. Observa-se então que, em um mundo cosmopolita como o que se vive hoje, tem ocorrido uma sadia troca de informações entre pensamentos diferentes. Isto não significa que não haja tensões, elas existem e devem sempre existir. Thomas Kuhn (1998) ressaltou que, ao longo da história da ciência realizaram-se investigações e, muitas vezes, o que se observava não se adequava ao paradigma vigente, produziam paradoxos e ambivalências, o que dava origem a uma nova forma de paradigma. O novo paradigma se configurava quando, no vigente, a comunidade científica abandonava simultaneamente os livros e os artigos que instituíam o antigo, deixando de considerá-los como objetos adequados para um exame minucioso pela ótica científica (p.145-173).

Segundo os cientistas da religião Stark & Bainbridge (2008), em toda organização religiosa os seus especialistas (ou líderes) estão sempre atentos para produzirem e trocarem compensadores com suposições sobrenaturais, pelo que, mesmo que se busque secularizar o problema da morte, tornando-as científicas e profanas, longe dos textos de cunho espirituais, sempre haverá uma lacuna a ser preenchida. Portanto, não há investigação científica empírica que consiga preencher os aspectos simbólicos que as religiões erigiram.

Muitas das práticas de cura espirituais têm sido objeto de pesquisa em laboratórios e em centros acadêmicos de diversas universidades do mundo (ver FULLER, 2008). Estas, em geral, consideradas por muito tempo, menores do ponto de vista intelectual, atingem contemporaneamente, também o caráter de terapêuticas por parte de um ramo da medicina chamada de Integrativa e Complementar (ALTER, 2004, p.32-72). Esta tem acolhido os mais diversos tratamentos, antes “alternativos”, como a meditação, a oração, a acupuntura, o Johrei, o Reiki e as técnicas do Yoga, além de atos que envolvem, no seio de suas pesquisas e aplicações clínicas, beberagens e fumos com plantas de poder como a ayahuasca, a maconha e a mescalina (Koupilová, Herink & Hrdina, 1991; LEVIN, 1996; Wardell & Engebretson. 2001; NAITO et.al., 2003; PELAEZ, 2004).

Termos como perispírito, chackras, chi e energia reikiana podem não significar nada para o cientista padrão, mas para um profissional da área da saúde, que dialoga tanto com a fisiologia quanto com as crenças dos seus pacientes, pois os compreende como seres bioculturais, esse diálogo faz toda a diferença.

As experiências espirituais e a saúde que advém destas práticas são consequências e não o fim em si-mesmas. Quem se contorce e respira com práticas psicofísicas estranhas à nossa cultura, como as do Yoga, se prostra em oração por horas numa Igreja, ou realiza cinco genuflexões por dia em direção a Meca, como os muçulmanos, não o fazem para melhorar a sua capacidade cardiorrespiratória, a flexibilidade dos extensores dos seus músculos da coxa ou para se prevenir da lombalgia, nem tampouco para se beneficiar com sensações de “bem-estar” devido à secreção de alguns hormônios, como algumas pesquisas já conseguem averiguar (DANUCALOV & SIMOES, 2009). Mesmo que isto venha a acontecer, estes homens e mulheres desempenham tais atos há milênios com a intenção e atenção ao divino (Deus, Ishvara, Brahma, Alá, Oxossi), em busca de respostas às vicissitudes de suas vidas, da sua morte e à obtenção do autoconhecimento.

Assim, sempre que se busca uma definição para religião vai-se à raiz da palavra que vem do vocábulo latino religio que significa “escrúpulo”, “consciência”, “lealdade” e, no mundo pré-cristão, significava um “comportamento marcado pela rigidez e pela precisão”, em geral de um rito. Segundo alguns textos que examinaram a etimologia de religio, ela pode ter sido derivada de relinquere, que significa lit. deixar, abandonar. A palavra religio ainda pode ser ligada a religare , ou ligar-se novamente, ou reeleger, prestar atenção aos detalhes, como que interrompendo o cotidiano, o profano e abrindo um intervalo ao divino e ao sagrado (FILORAMANO & PRANDI, 2007, p.253-259).

A religião então, etimologicamente, pode ser analisada como que “interrompendo o cotidiano” (regligare), assim como “ligando o devoto novamente” (religare) à sua essência imortal, Si-Mesmo ou Espírito e/ou, ainda, focando a sua atenção ao presente (relegere), base dos atos de qualquer tradição espiritual; e, se pensarmos na atenção que estas exigem que os seus adeptos dediquem ao cumprimento de certas tarefas no cotidiano, como seguir certas normas éticas e morais, abdicar do tempo livre “profano” a momentos de introspecção e etc, pode-se dimensionar o quanto da consciência, do tempo e da vida deve ser dedicada à sua crença espiritual.

É claro que quando se fala de religião e espiritualidade, se refere a um fenômeno bastante difundindo no mundo todo. Assim, é muito comum ainda confundir organização religiosa e espiritual com o conceito de religião propriamente dito. Existe uma tendência para se associar a Inquisição, fruto da mentalidade de um grupo de cristãos que dirigiam a Igreja Católica Medieval com o altruísmo de Jesus Cristo, assim como todas as escrituras do Islã aos “homens-bombas”, por exemplo, o que seria o mesmo que considerar os biólogos darwinistas da Universidade de São Paulo como os representantes de todo escopo da biologia científica mundial.

Existem inúmeras tentativas de classificação dos termos espiritualidade, religiosidade e religião e, como quase tudo na ciência, não há consensos absolutos. Viemos até agora considerando religião como sinônimo de espiritual, mas pode não o ser. De acordo com Harold Georg Koenig, psiquiatra da Universidade de Duke e autor de um guia sobre religião, espiritualidade e saúde (KOENIG; McCOLLOUGH & LARSON, 2001. p.17-23), apesar de serem palavras diferentes, podem ter uma relação entre os seus predicados. Koenig e os seus colegas entendem que, particularmente nos Estados Unidos, existe uma polarização entre a religiosidade e a espiritualidade. Muitos acreditam que a religiosidade se relaciona com uma representação formal eclesiástica, que é um conjunto de normas doutrinais de uma religião institucionalmente estabelecida; enquanto que a espiritualidade esteja vinculada a considerações mais universais, de uma expressão emocional divina, assistemática e individual da comunhão com o sobrenatural. Segundo esses acadêmicos, mas corroborado por outros cientistas da religião (HILL et.al., 2000; HILL & PARGAMENT, 2003), a espiritualidade é uma busca pessoal por respostas do significado da vida e da morte, que podem ser sobrenaturais ou não.

Já a religião é um sistema organizado por crenças, práticas, rituais e símbolos, erigidos com o intuito de auxiliar o ser humano a conhecer a si-mesmo, ao transcendente, ao sobrenatural, ao Divino, a Deus, aos deuses ou às divindades. Pargament e os seus colegas observam nas suas análises sobre a psicologia da religião, que o conceito da religiosidade pode repousar na busca do sentido pelo sobrenatural, incluindo as expressões religiosas singulares dos humanos erigidas por e para eles mesmos, como as vistas nas demonstrações tradicionais de fé, na participação em instituições e festas religiosas estabelecidas, nas ações políticas e sociais, bem como nos atos pessoais desapegados e de compaixão vinculados ao sagrado (PARGAMENT, 1997, p.21-33; HILL & PARGAMENT, 2003). A religiosidade, portanto, pode configurar-se no modo em como o indivíduo interpreta e ressignifica o conjunto dos símbolos, das crenças, das práticas e das experiências sobrenaturais apresentadas a ele pela sua cultura, numa busca pelo sentido das vicissitudes da sua existência (como a dor e a morte, por exemplo).

Zehavit Gross (2005), professor da Bar Ilan University's School of Education em Ramat Gan, Israel, nos esclarece, ainda, que a relação contemporânea entre a espiritualidade e a religiosidade pode se apresentar de três formas distintas: 1) a espiritualidade como parte integral da religiosidade humana; 2) a religiosidade e a espiritualidade como sendo sinônimos; e 3) a espiritualidade independente do conceito de religiosidade, quando esta não está vinculada ao sobrenatural, ao metafísico ou ao transcendente (p.424-425). Assim, quando alguém funda a sua espiritualidade num complexo organizado por preceitos éticos e morais, sustentado por um sistema de atos específicos, comungado por um grupo e centrado nas experiências advindas das práticas ditas “sagradas” ou espirituais, pode se apresentar este sistema como religião, mesmo não tendo um poder central constituído.

Como viemos argumentando até aqui, somos frutos da biologia e da cultura. Assim, a religião, sob o ponto de vista científico não poderia surgir de outra forma. Ela interage no indivíduo de forma inseparável da sua neurofisiologia, da sua psiquê, da sociedade em que se está inserido e das construções semânticas (visões de mundo ou cosmologias) que se faz ao longo da vida (GEERTZ,2010). A teoria geral da religião, proposta por Rodney Stark e William Sims Bainbridge (2008), busca hipoteticamente alguns axiomas sobre os seres humanos para então propor uma teoria da religião. Uns dos seus sete axiomas nos diz que todos os seres humanos buscam o que eles percebem como recompensas, e evitam tudo o que percebem ser custos às suas vidas. Todos os seus atos são orientados por um “sistema de processamento de informações complexo, porém finito”, que identifica problemas e busca soluções, sendo que algumas dessas recompensas desejadas são limitadas e outras sobrenaturais.

Entre as proposições derivadas destes axiomas que interessam aqui, são as que mostram que recompensas e custos são complementares: “uma recompensa perdida ou não obtida equivale a um custo, e um custo evitado equivale a uma recompensa”. Para solucionar problemas, buscam-se explicações que “são recompensas com algum grau de generalidade”, sendo que os compensadores mais gerais “podem ser sustentados somente por explicações sobrenaturais” (como o da vida eterna, a existência do “Nosso Lar”, da lei do Karma e etc.). Portanto, a religião é uma forma de cultura e os seres humanos mantêm “a cultura que parece ser mais recompensadora” para eles, tendendo a eleger deuses, geografias religiosas dentre outras, como as fontes sobrenaturais de recompensas e custos (como as explicações sobrenaturais elaboradas pelas tradições religiosas para a morte e a pós-morte, por exemplo).

Os autores visam sustentar que as soluções que buscam acabar com as vicissitudes da vida são frequentemente novas, pois como se sabe os seres humanos ao longo das suas existências enfrentam circunstâncias que nunca experimentaram antes. Para isso criam, mantêm e trocam compensadores com base no sobrenatural, a fim de sustentarem as explicações que inventam na busca por recompensas raras, ou seja, recompensas que não podem ser verificadas pelo conhecimento científico (Ibid., p.35-70), como o kaivalya no Yoga, o nirvana no Budismo ou a bem-aventurança para os cristãos. Todavia, não se criam soluções como deuses, o conceito de céu, inferno, purgatório, Hades e práticas de cura de forma aleatória, elas sempre obedecem a uma lógica, uma familiaridade. E, por isso, muitas vezes os seres humanos ressignificam essas soluções constantemente. Daí, surgem interpretações sobre os mesmos textos sagrados infinitamente, criando-se novos rituais, novas seitas, novos cultos e novas religiões.

Entre as definições derivadas dessas proposições, os autores perceberam que para se solucionar um problema realmente é necessário inventar meios de alcançar a recompensa desejada, como a da imortalidade, livrar-se do ciclo de reencanações, ir para o céu. Assim, não deve-se estranhar ao se ver práticas religiosas, como dedicar horas em jejum, participar de retiros espirituais, receber a extrema-unção, ser ouvido por um sacerdote para eliminar os pecados, praticar meditação, peregrinar em locais sagrados, ter tido uma vida casta e etc. É preciso escolher entre as muitas ofertas aquela com a maior chance de sucesso dentre tantas informações disponíveis, mantendo por longo tempo os esforços para que a recompensa escolhida seja obtida. Dentro desta teoria, a religião é definida como um “sistemas de compensadores gerais baseados em suposições sobrenaturais”, e as organizações religiosas como “empreendimentos sociais cujo propósito principal é criar, manter e trocar compensadores gerais com base sobrenatural” (Ibid., p.421-432).

Cada devoto ou religioso, então, busca a sua melhor forma de compreender os compensadores sobre a morte disponíveis com base na organização religiosa que se submete, ou que a sua cultura o determina a seguir.

As respostas espirituais para o medo da morte e da dor

Dentre as grandes narrativas religiosas que se conhece hoje, nenhuma delas advertem aos seus adeptos que estes, quando findarem a sua existência física aqui neste planeta, morrerão definitivamente e que não há nada do “outro lado”. Enfim, nunca a morte é definitiva nas explicações religiosas. Gostemos ou não, sejamos crentes, ateus ou agnósticos, não podemos negar, sob o ponto de vista de um agente da área de saúde, seja um enfermeiro, médico, assistente social ou um psicólogo, que haverá sempre a influência da religião/espiritualidade encravado no íntimo de cada um dos seus pacientes. A própria negação desta, comum às sociedades laicas, pode ser considerada evidência da existência viva da espiritualidade, pois ninguém nega algo que não exista para ele.

E aqui, não nos referimos à tolerância e, muito menos construímos um discurso de conversão a dado pensamento religioso. O núcleo do presente texto está em evidenciar o respeito e a compreensão à religiosidade, à crença e aos dogmas que constituem o ser humano que vive os seus últimos momentos de existência “terrena” com a família, amigos e a equipe médica que o acompanha.

Diferentes culturas edificam diferentes crenças sobre a vida, o momento da morte e da pós-morte. Pensando em buscar elementos comparativos, o investigador MILLER (1997) colheu dados à respeito das relações espirituais sobre a morte em diferentes culturas de todo o mundo ao longo de oito anos, e ao analisar esses dados percebeu que, apesar de todas as diferenças, havia quatro estágios bem definidos que se relacionavam com a morte, como o “Espaço de Espera”, o da “Fase de Julgamento”, o do “Reino das Possibilidades” e do “Retorno ou Renascimento”.

No estágio da Espera, o que morreu têm a oportunidade de diminuir a sua dor como um dos grandes benefícios desse período. O corpo físico do sujeito vai se desfazendo, se despindo das suas vestes mortais. Em geral este “local” é calmo e apresentado como transição do mundo material para o espiritual.

No estágio do Julgamento, a vida do indivíduo será avaliada e o seu destino será decidido em decorrência disso. Dependendo da crença religiosa os métodos de julgamento diferem em quatro tipos. O primeiro é a do “Registro Contábil”, onde será avaliado os pecados e os bons atos por Deus, deuses, anjos e etc, e o resultado decidirá as suas benesses ou dividendos. O segundo é o complexo método “Cármico”, onde ao contrário do anterior, que há uma soma meritória, o julgamento cármico não ocorrerá no final da vida em si, mas no próprio desenrolar da existência de forma infinita e altamente inter-relacionada. O terceiro método de julgamento é o “Evolutivo”, onde todos os atos em vida serão recordados, revividos e sentidos. Não há nesta visão um “Juiz Supremo” que avalie as ações dos seres humanos, mas o próprio espírito será o fiel da balança. O espírito então avaliará o quanto das suas intenções se colocaram ou não, em harmonia pela evolução da “Consciência Universal”. O quarto tipo de julgamento é o do “Desafio”, e consiste em uma combinação do método cármico e o evolutivo. O budismo tibetano, modelo religioso que representa este método, afirma que o estado de consciência do indivíduo no momento da sua morte é o fator mais importante neste estágio, além da forma como o seu espírito viveu a sua existência, pois determinará o destino e como o “viajante” irá lidar com os seus próximos desafios após a morte. Estes desafios são denominados de Bardo e constituem a fase intermediária entre as encarnações. São utilizadas práticas meditativas e leituras do Livro Tibetano dos Mortos aos indivíduos no leito de morte e aos que já morreram.

No estágio do Reino das Possibilidades, o espírito do pós-morte recebe a sua “sentença” da fase anterior, e se descortina o seu destino. O que parece diferenciar o mundo da vida para o da pós-morte neste estágio é a visão mais idealizada deste, pois na maioria das narrativas religiosas, segundo o autor, há elementos muito parecidos. Como exemplo, temos o dos espíritas brasileiros que descrevem esse estágio com hospitais, escolas e frentes de trabalho como os da vida terrena. Podemos ainda citar o inferno ou purgatório, que tomam diferentes formas dependendo da crença religiosa que se tenha fé. No entanto, os espíritos humanos são sempre guiados por anjos, guardiões e companheiros (como parentes, amigos e até animais de estimação já falecidos, no caso principalmente de crianças).

No último estágio, o do Retorno, além das doutrinas que crêem na reencarnação, no retorno do espírito eterno para uma nova vida na Terra ou em outros planetas, há outras que determinam que findada a vida terrena o espírito fixa-se em determinadas geografias religiosas, que dependerão da sentença determinada no segundo estágio.

Dentro das possibilidades listadas e investigadas acima, mesmo considerando a redução excessiva realizada pelo autor, podemos supor que independente da doutrina religiosa que se professe, cuidar de uma boa morte em pacientes terminais é passível de ser incluída nos estudos e em intervenções práticas por agentes de saúde e cuidadores. Além disso, nos esclarece as possíveis interpretações religiosas simbólicas e as suas repercussões psíquicas, fisiológicas e visões de mundo que os indivíduos carregam dentro de si interferindo em sua saúde e na sua doença.

A inclusão da espiritualidade nos cuidados para uma boa morte

O conceito moderno de “Saúde”, definido pela Organização Mundial de Saúde (1958), não se restringe mais a mera ausência de doenças ou enfermidades, mas a um estado de bem estar físico, mental e social. Dessa forma, o termo Qualidade de Vida define todos aspectos de bem-estar do paciente, incluindo também a saúde espiritual (ELIAS, 2001, p.24). Para abranger todo o escopo das dores psíquicas (culpas frente as perdas) e espirituais (culpas com relação à Deus ou algo similar) dos pacientes, se faz necessário hoje considerar também as expressões religiosas destes, pois como se viu, estas exercem papel crucial nas formação integral (bio-psico-sócio-cultural e semântica) de um indivíduo, seja ele crente ou não. PIMENTA & PORTNOI (1999) nos explicam que:

As religiões moldam a percepção que um indivíduo tem de si mesmo e também sua resposta à dor. A fé religiosa pode ajudar muito na tolerância à dor, mas pode, também, levar o indivíduo a interpretar a dor como punição e procurar em preces e rituais, o perdão para possíveis erros... Se a dor for vista como punição divina, os indivíduos tentarão experimentá–la sem queixas a fim de que se transforme numa forma de expiação para aliviar sentimentos de culpa. Se a dor interpretada como consequências de transgressões morais, procurarão a cura por penitências, jejuns ou preces. Se for atribuída à malevolência de terceiros (feitiçaria ou encantamentos), tentarão alívio de maneira indireta, por meio de rituais ou exorcismo. (p.159-173)

A médica KÜBLER–ROSS (1998) nos esclarece que para resgatar a culpa que acompanha as dores psíquicas e espirituais de seus pacientes terminais, mostra que o sofrimento pelo qual eles passam pode não ser fruto da punição divina, mas apenas uma experiência difícil que pode os fortalecer ainda mais. A preparação para uma boa morte, assim, deve levar em consideração também o fator religioso e espiritual, além da diminuição, o máximo que possível da dor, nos esclarece a autora. A psicóloga ELIAS (2001) relata uma série de casos de pacientes que, após vivenciarem tanto experiências de quase morte quanto durante o processo de cuidados paliativos, transformaram os seus valores e passaram a acreditar muitos mais na fraternidade e no amor incondicional, perdendo o mêdo da morte e o ressignificando para uma boa vida. No entanto, para que isso acontecesse, estes indivíduos precisaram de alguém que soubesse ouvir e compreender as experiências que eles passaram para ajudá-los de forma eficaz.

A autora conclui, depois de acompanhar quatro pacientes que aceitaram ser cuidados por seu método para uma boa morte, que o sentimento de angústia pela perda da disposição pela vida, o de culpa frente ao sofrimento dos familiares, e o medo da morte e do pós-morte foram os fatos em comum vistos para as dores psíquicas e espirituais. Para a autora, a dor espiritual (medo da morte e pós-morte) prevaleceu sobre a dor psíquica, e a construção do conceito de espiritualidade foi o aspecto mais relevante para a ressignificação da dor simbólica da morte, e no período final dos cuidados paliativos até o óbito. A investigação curiosamente conclui, questionando-se sobre a dor espiritual (relatada no período final da fase fora de possibilidade de cura), se não estaria ela também presente nos inúmeros momentos simbólicos de morte e pós-morte que nos acompanham por toda a vida (ELIAS, 2001, p.257-258).

Em outro estudo de pesquisa de campo qualitativo, a pesquisadora aponta a relevância positiva em se discutir e esclarecer sobre a morte entre também os cuidadores-familiares, especificamente de crianças/adolescentes com câncer, para que se esclareça a eles que esse é um fenômeno que faz parte do cotidiano da vida (COSTA, 2010).

Se, diante da possibilidade de uma morte iminente, o indivíduo tiver a oportunidade de conversar sobre ela, a riqueza desses momentos vai segui-lo para toda a eternidade. Por isso, seguindo os exemplos dos tibetanos [budismo], enfatizamos a importância de que, se possível, na hora da morte, o indivíduo possa ter consciência sobre ela e o morrer, ou seja, de morrer em estado mental aberto, tanto quanto possível, abandonando sentimentos ruins e mágoas adquiridas ao longo da existência. Quanto maior for o nível de autoconhecimento do ser humano, maior será o nível de consciência sobre si mesmo, sobre as possibilidades de lidar com novas situações, desafios e novas perspectivas perante o desconhecido (COSTA, 2010, p.87-88).

Em um outro artigo publicado por pesquisadoras da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia, revisou-se 47 trabalhos científicos entre 2000 e 2006 sobre os principais temas ou concepções dos cuidados paliativos. Em todos os trabalhos levantados pelas autoras, o processo de cuidar é prioritário ao processo de tratar, e dentre estes, cinco campos ou concepções interdependentes emergiram dos textos.

Dentre as concepções discutidas nesta revisão, o dimensionamento do tratamento esteve pautado na busca pela qualidade de vida, já que não mais existe a possibilidade de cura. Desta forma, o suporte espiritual e o apoio no processo de luto, tanto à família quanto ao paciente, é de suma importância nestes momentos finais. Conceitos como compaixão, humildade, honestidade e valorização da vida devem englobar os cuidados paliativos. Adotando estas medidas, percebe-se no levantamento realizado, que o respeito e a compreensão do indivíduo como um “ser social, portador de valores, crenças e necessidades individuais”, e à uma espiritualidade que valoriza a vida com um propósito, se tornaram o fator decisivo para uma boa morte (SILVA & SUDIGURSKY, 2008).

Dentro das questões éticas, cinco princípios se mostram essenciais para nortear a medicina paliativa: dizer sempre a verdade para o paciente e a família, adotar medidas terapêuticas úteis, possibilitar que os efeitos positivos sejam maiores do que os negativos, prever complicações e aconselhar a família, ser solidário sempre, dentre outros. Grosso modo, percebe-se sempre a busca pela a promoção da humanização nos últimos momentos de vida do paciente e da família. Questões de natureza existencial, como percepções sobre propósito da vida, são também recorrentes e são onde as crenças e valores espirituais podem e vão influenciar fortemente o vivenciar do processo de morte e morrer. O alívio do sofrimento espiritual, não somente durante a doença como também no apoio ao luto, deve integrar a filosofia dos cuidados paliativos, conclui a revisão (Ibid.).

Conclusão

A posição “neutra” nos cuidados médicos, ou seja, que não considera a cultura do indivíduo, pode ser prejudicial não somente aos pacientes terminais que recebem cuidados paliativos para uma boa morte, mas à todos os seres humanos que convivem com esse comportamento, e parece estender-se à algumas equipes médicas multidisciplinares que não consideram a espiritualidade humana em seus trabalhos e leitos de hospitais. Para a grande maioria das pessoas, posicionamentos materialistas são difíceis de serem aceitos, mesmo com todas as evidências científicas (ou a falta delas). Até com exuberantes provas de que os genes, o nosso sistema nervoso e a cultura são, de fato, os responsáveis pela origem de nossa individualidade e finitude, o problema da morte ainda intriga a quase totalidade dos seres humanos. Assim, todo e qualquer membro de uma equipe médica responsável pelos cuidados nos últimos momentos de vida de um ser humano deve, ao menos, considerar que a vida e a morte pode (e vai sempre) ser compreendida de formas diferentes dentro de cada um de nós.

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