Não acredito em religiosidades nascidas incólumes ao contexto histórico em que floresceram. Todos nós somos frutos de nossa história e o que erigimos com o nome de cultura também é marcado pela vida de outros. Com o Yoga, espiritualidade nascida na Índia e atualmente integrante das sociedades do mundo inteiro, não poderia ser diferente e passando por diversas ressignificações ao longo de sua história.
O xamanismo dravídico, hipoteticamente, antes da invasão ariana, é bastante documentado como fundamento de um Yoga autóctone. Depois, temos a religião samkhya influenciando na construção dos sutras de Patanjali marca o seu período clássico, comentado e discutido de acadêmicos a cursos de formação ioguica pelo planeta. Além disso, temos a alquimia dos muçulmanos, o budismo, o tantra e o vedanta advaita na idade média indiana, bastante evidentes nos textos ioguicos deste período (Pradipika e Gheranda, por exemplo).
Modernamente, não há dúvida que a ciência ocidental (biomedicina, a anatomia e a fisiologia principalmente), os cristãos (pense na colonização britânica na Índia), o ocultismo de Blavatsky, a cultura do treinamento desportivo e as religiões denominadas como Nova Era formaram o contexto que fomentou o Yoga que conhecemos hoje. Assim, de Ramakrishna, passando por Vivekananda, Kuvalayananda, Sivananda, Yogananda, Yogendra, Krishnamacharya, Iyengar, Pattabhi Jois dentre outros tão importantes quanto, possuem em seus livros marcas destas influências.
O encontro do Yoga com os laboratórios de fisiologia ocidentais, por exemplo, marcou forte na ressignificação simbólica de suas práticas e doutrinas, muito mais para a magia e a mística dos tempos medievais indianos, para um reducionismo que transformou as práticas ioguicas notadamente por seu valor de libertação das agruras do mundo (kaivalya) para de técnicas de diminuição do estresse, ansiedade, depressão e remissão de doenças orgânicas e alinhamentos ortopédicos. Será que o Asthanga Yoga proposto por Patanjali ainda dá conta de “libertar” os homens e mulheres modernos do séc.XXI ou estamos falando de, assim como o fizemos com o tai-chi e a acupuntura, de reduzir o Yoga a mais uma terapia de cura?
A minha hipótese é que o Yoga vive um grande paradoxo, pois ao mesmo tempo em que a modernidade o “desencanta” reduzindo-o a técnicas de cura - o que permitiu ser aceito pela medicina ocidental e aplicado em larga escala em hospitais e pronto-socorros do SUS por exemplo, “valida” e reencanta os seus adeptos com intuito espirituais em busca de sentidos as suas vidas. Interessante, é que mesmo estes - os iogues em busca de mais "espiritualidade" e não apenas de diminuição de cortisol - consideram o Yoga como “científico”, portanto, eles pensam, diferente das religiões tradicionais. Esse pensamento permite aos iogues modernos fugirem do rótulo de religião para as suas práticas e doutrinas escondendo-se com o nome de “espiritualidade” em nítida ingenuidade quanto ao papel e ao valor que o iogues teriam se não tivessem medo de assumir o caráter soteriológico do Yoga realmente.
Houve uma ressignificação na doutrina clássica e medieval do Yoga no seu encontro com a ciência ocidental. É só ler os principais iogues modernos e nos deparamos com aproximações da fisiologia ocidental com a sutil/mágica/mística de outrora. Isso denota a busca por parte dos iogues modernos em legitimar as suas crenças religiosas, desacreditadas pelas sociedades seculares desde a invasão britânica em terras indianas, pelo conhecimento tido como “superior” da ciência. Está claro a todos que os iogues ainda fazem o papel de "colonizados" pelo pensamento dominante da ciência sobre o da religião? Estamos ainda, como na Renascença Indiana, buscando dar respostas sobre a legitimidade religiosa do Yoga frente aos outros que nunca pisaram em um mat. Devemos compreender que a religião e a ciência são duas formas de conhecer o mundo e uma não anula a outra ou a supera por maior valor intrínseco de “Verdade”. O Yoga visto pelo viés exclusivo da ciência perde a sua força de transformação da realidade, empobrece a busca dos seus adeptos na elaboração individual de um mito criador que dê sentido a sua vida. Isso não significa (ser religioso) que necessitemos de um mundo transcendente para viver, mas de que podemos almejar com base na doutrina e prática religiosa do Yoga uma transcendência na imanência, mas isso é assunto para outras meditações.