O caminho de estabelecimento do ioga brasileiro passou por fases distintas. Desde 1950 mais ou menos, e é marcado por disputas internas entre iogues mais permissivos a sincretismos com o objetivo de popularizar a filosofia e prática religiosa do ioga (os iogues-híbridos), e outros mais ortodoxos e “puristas” que buscam o sectarismo da prática e de sua filosofia numa posição de preservação da “essência” do ioga (os iogues-tradicionalistas).
Essa disputa originou uma estrutura religiosa regulatória “invisível” e não-institucionalizada, responsável por manter, produzir e aniquilar elementos soteriológicos e bens de salvação/ética do ioga brasileiro. Os klesas e suas novas configurações, com certeza, passam pelas mãos desses líderes, que comandam esse "mecanismo religioso regulatório não-institucional" (ainda), por isso sai a campo em minha tese de doutorado para entrevistar alguns desses líderes e conhecer o que eles compreendem como as causas do Mal-klesa e/ou se a teoria ética dos klesas clássicos ainda traz sentido para o sofrimento dos iogues brasileiros.
Ja escrevi alguns posts sobre a minha discussão dos klesas, por isso venho versar um pouco mais sobre esse "mecanismo religioso regulatório". Ele é parecido com o conceito de campo de Pierre Bourdieu, mas como ainda embrionário no país, achei melhor não envolver o cientista francês aqui, descrevendo-o melhor primeiro. Outros pesquisadores podem associá-lo ou não a Bourdieu futuramente. Por enquanto, me contento com o termo denominado (estrutura religiosa ioguica brasileira em formação) acima mesmo; é mais humilde e menos pretensioso.
Esse mecanismo regulatório funcionaria a partir do conceito de rede advindo da Nova Era, mas que no ioga brasileiro foi se solidificando e tornando os envolvidos menos “errantes” e convertendo os “clientes” em devotos-discípulos, muitas vezes virtuais ou de encontros periódicos. Portanto, sem uma vida em comunidade em torno do mestre necessariamente - apesar de ser possível e bastante comum também, o que incorre, nesse caso, em uma estrutura religiosa bem mais evidente e condizente com o conceito de Igreja mesmo.
Essa rede da religiosidade nova era que era plástica e fluida, no ioga moderno brasileiro, solidifica-se em uma tríade que, além de sustentar o seu líder financeiramente, possibilita a difusão de sua doutrina a partir de: 1) curso de formação para professores de ioga, 2) viagens e retiros periódicos a lugares sagrados guiadas pelo próprio líder e seus devotos mais próximos (em geral a Índia, mas hoje também se vê para Nepal, Peru e Japão,) e 3) cursos, palestras, filmes e encontros musicais (satsangs), com função proselitista na difusão dos ideais ioguicos desse líder sobre o ioga (hoje inicia-se também a venda de cursos on-line, o que proporcionará maior visibilidade da ideologia religiosa desse líder). Essa tríade, mantida pela sociedade, possibilita ao seu líder-referência, a exemplo de um padre ou pastor, dedicar a sua vida exclusivamente na difusão de seu trabalho religioso e de fé nos princípios salvíficos/éticos do ioga. A "Igreja", como instituição "visível" que conhecemos dos católicos ou judeus, no ioga, é "invisível", mas existe e possui os mesmos objetivos: produzir e manter sua cosmovisão espiritual. E se existe, é pois possui quem os sustente. É você que paga a mensalidade da sua escola de ioga por aulas semanais, cursos, palestras, dvd's e etc.
O que no “circuito ou rede Nova Era”, era fluido e sem contornos espirituais definidos, pois havia (e ainda há) de vendas de incensos, cristais, aulas de ioga e filosofia de Atlântida, foi se configurando uma estrutura religiosa ioguica não-institucional que fortalece os laços de uma comunidade em processo ainda, mas em torno de seu líder. As antigas demonstrações de posturas de ioga em locais públicos e cursos undergrounds da "filosofia" do ioga, se transformou. Alguns devotos fazem 2-3 cursos de formação com o mesmo líder para "reciclar” o conhecimento e viajam anualmente a Índia com o seu líder-guia, algo que no fundo, simboliza o reforço da fé nos princípios do ioga de seu líder. Assim, cada líder possui hoje o seu próprio grupo de seguidores que renovam a sua fé e mantém a “sangha” (ideologia) do líder, ou do guru do seu líder, o que dá no mesmo.
Quando um devoto rompe com a sua sangha, pode buscar outra ou, após um período de isolamento, resolve que é o momento de erigir a sua própria “sangha” ou grupo religioso-espiritual ioguico. O inicio desse novo grupo, invariavelmente, passa pela produção de um novo e próprio curso de formação, o que significa literalmente, erigir a sua própria visão da Verdade do ioga, seja mais híbrida ou mais tradicionalista. Essa fase é bastante tensa, pois os líderes já estabelecidos são atrozes na aniquilação de seus oponentes. Haja vista a excomunhão de Cristóvão de Oliveira e a disputa de um ex-discípulo do Mestre DeRose e Jois que se converte a um líder ioguico indiano, depois contesta a legitimidade espiritual das tradições por qual passou. Ou ainda a clássica e eterna contenda brasileira entre Hermógenes versus DeRose (ou vice-versa).
No Brasil, atualmente, com a perda da hegemonia por mais de 40 anos do hibridismo ioguico de Hermógenes, a ala mais “tradicionalista” tem levantado a voz no Brasil. Hoje, a vertente tradicionalista brasileira advém dos discípulos da vedantista Gloria Arieira e não mais dos devotos do Swásthya Yôga d'DeRose. O ioga brasileiro passa por uma fase de transição por causa do declínio de Hermógenes e a "saída" d'DeRose do ioga. Uma nova geração de líderes vem chegando ao microuniverso ioguico brasileiro, e serão eles que legitimarão o que pode ou não ser considerado ioga no país. No entanto, dois pontos não se alterarão: 1) construirão uma base forte fundada na tríade curso de formação, viagens-retiros e produção de produtos de venda de suas ideias; 2) adotarão um discurso mais híbrido ou mais tradicionalista; e 3) os seus discursos doutrinários serão contestados pelos atuais líderes.
O caminho mais fácil para se consolidar como um novo líder-referência, portanto, é se afiliar a algum grupo (sangha) com um líder bem estabelecido, ganhar notoriedade, e depois romper com ele apontando irregularidades ou posicionamentos discordantes e erigir um discurso contrário ao dele; ou continuar afiliado, mas ir mudando seus posicionamentos filosóficos, práticos e/ou religiosos, não de forma abrupta como o anterior, mas suavemente.
De qualquer forma, receberá criticas, pois ninguém que está no poder gosta de ser questionado ou perder discípulos. Assim, você cursa uma formação de ioga no Brasil, saiba de antemão a que grupo se está afiliando e se os ideais espirituais da sua formação concatenam com os seus, pois do contrário será excomungado de sua comunidade e terá que iniciar o seu trajeto espiritual do zero a partir de outro líder. Acha exagero? Faça um teste na próxima aula da formação e levante 3 posicionamentos: 1) Quem quer comer carne comigo?; 2) Acho que Patanjali se enganou no item 5 do seu asthanga, pois segundo a ciência o estado de prathyahara vem depois de dharana e dhyana e não antes; 3) Acho um destempero quem mistura os princípios espirituais do ioga com os dos cristãos. As reações mais radicais, como não falarem mais com você ou dispararem um discurso rasgado de aniquilação das suas questões, virão dos tradicionalistas, que se consideram (e sem ironia, são mesmos) os responsáveis pelo "resgate da essência do ioga" (igual o que DeRose o fazia em seus tempos áureos, pois não há algo mais "purista" do que declarar que o seu ioga é pré-védico). Agora, se o tratarem com a cordialidade de quem tenta explicar para uma criança do jardim-da-infância que ainda não entendeu nada até agora, certeza, são os iogue advindos da permissividade hibridista, que lhe trarão uma versão universalista e em dialética saúde e salvação.
E se você acha que pode sair por ai dando aulas sem afiliação religiosa tradicionalista ou hibridista, cuidado, você poderá ser acusado de ensinar um "método ou prática" que não conduzirá ninguém ao samadhi, pois o seu ioga está destituído de proposta espiritual legitimada. Ah, mas se riu com escárnio de superioridade porque o seu ioga/meditação vem da "ciência" de cientistas-gurus como Fritjof Capra, Amit Goswami e outros, saiba que eles possuem igualmente discursos religiosos, mas regados por elementos cientificistas. Não se convenceu? Convide seu cientista-guru para o próximo congresso cientifico da área dele (que não for organizado por ele mesmo ou seu grupo) e peça para ele (seu mestre) apresentar as ideias de seu último livro para colegas acadêmicos e anote as críticas.
A ideia aqui apresentada não está em desmerecer discursos ioguicos nenhum, mas apresenta-los sem as máscaras que o encobrem. A intenção reside em levar compreensão (já que o klesa-mãe é a Ignorância) o que o ioga representa realmente no contexto social brasileiro: um novo fenômeno religioso em andamento. E se religião para você possui peso menor, vá estudar, pois saiba que essa retórica é a mesma que a religião carregava da ciência há alguns séculos atrás, portanto, o seu escárnio superior advém da religião cristã medieval e não da ciência. Na verdade, a ciência é absolutamente humilde e não se interessa em dar respostas a Deus, não por ele não existir ou ser insignificante, mas porque a ciência não consegue investigá-lo e relega isso aos teólogos e filósofos.
Ambas, no entanto, são apenas explicações diferentes, erigidas pelos homens e mulheres ao longo da história e pertencentes a uma sociedade específica, mas em busca de dar fim as suas mais profundas angústias do ser humano, seja um cientista, filósofo, artista, religioso ou você que não sabe o que é ainda, como eu.