Victor Turner nos alerta ser bastante comum que os aspectos cognitivos adquiridos nos espaços liminares (samadhi) sejam simbolizados pela fisiologia humana como “modelo para ideias e processos sociais, cósmicos e religiosos”. Essas metáforas corporais, continua o autor, são “uma variante de um tema iniciático amplamente difundido: o de que o corpo humano é um “microcosmo do universo” (TURNER, 2005 p.153).
O corpo é encarado como uma espécie de modelo simbólico para a comunicação de gnosis, do conhecimento místico sobre a natureza das coisas e de como vieram a ser o que são (Ibid.).
O que o iogue moderno busca com a libertação (kaivalya), pode não estar em um mundo celestial - como os cristãos - mas transformar a si-mesmo e a sua própria realidade (social). Dito de outra forma, para os iogues modernos, que renunciaram viver afastados da sociedade, kaivalya e samsara (o mundo "real") coexistem na mesma realidade, mas numa geografia suprassensível diferente (USARSKI, 2007, p.190).
Samsara, considerado o mundo como normalmente experienciamos (JOHNSON, 2010, p.286), continua sendo a geografia espiritual geradora do sofrimento, portanto, aonde nossos corpos se contaminariam com os “venenos” dos klesas (apego, aversão, medo da morte e orgulhos, todos "filhos" da ignorância). Como alienado do que o faz sofrer (klesa ignorância), o iogue sabe que sofre, mas não sabe por quê.
A ideia de kaivalya a partir da fase moderna do ioga - que desenvolve-se nos centros urbanos das grandes cidades ocidentais – tece um novo diálogo com samsara, logo, com o outro também. Deste modo, o iogue moderno - contrariamente ao iogue medieval – precisou transformar a sua ética espiritual para obter maior alteridade espiritual em um “novo” samsara que se apresentava no ocidente. O iogue moderno abandona a vida errante nas florestas e ashrams e inicia a "iluminação" em sociedade e não fora dela. Afirmamos isso, baseando-se na passagem do ioga medieval para o moderno, quando estes abandonam seus votos de asceta renunciante e adquire um caráter de iogue atuante no mundo (SARBACKER, 2008, p.173-177).
O pesquisador Sarbacker associa a experiência advinda das práticas ioguicas com a aquisição dos iogues de certo "poder numinoso" ou estado de divindade. Segundo ele, essa divindade adquirida, poderia estar sendo associada com beleza física e um corpo sem doenças, mas também na conquista de maior discernimento sobre si-mesmo (ou viveka) na contemporaneidade (Ibid., p.177). O autor explica que essa alteridade ou distinção espiritual frente ao meio social em que vive pode estar desenvolvendo a ideia de que os rituais corporais ioguicos proporcionem ao iogue certa convicção ou fé (do latim confides) - disposição, vontade, motivação – da necessidade de transformação real do mundo em que vive e não apenas, como no ioga antigo da Índia, uma liberação espiritual em vida. Essa mudança pode ser assistida no discurso de justiça social, direitos humanos e sustentabilidade planetária que permeia as novas narrativas da religiosidade ioguica contemporânea (JAIN, 2010, p.95-129).
As deidades do ioga são representações tangíveis do numinoso poder do ioga, a representação simbólica do poder e “alteridade” (antiestrutura) através do qual o praticante de ioga se esforça a alcançar. (...) Estas [deidades, como Shiva, Krsna e etc.] contribuem na criação de um ambiente que simbolicamente represente uma realidade alternativa ou idealizada [nova geografia religiosa] que o praticante espera entrar ou fazer parte através da prática (SARBACKER, 2008, p.177).
Trabalhos recentes no Brasil corroboram com Sarbacker e Jain quando expõem relatos de indivíduos que depois de um curso de formação em ioga, mudam drasticamente os seus estilos de vida:
Eu não conhecia nada do Yoga. Eu não fazia idéia de toda a filosofia que tinha por trás. Sabia o que todo mundo sabe, que a pessoa fica mais calma que alonga, asanas né? Eu tinha tido um problema no joelho muito sério, e tinha ficado um ano praticamente mancando. E aí superei essa fase. Teve muito de psicológico nesse meu problema do joelho, né? Eu jogava muita frustração e ele não conseguia melhorar. Resolvi que, não, tudo bem, está certo, tem coisas erradas na minha vida e eu resolvi arrumar.
E eu vejo muito nesse sentido como se realmente várias técnicas e várias maneiras de você conduzir um estilo de vida voltado para o autoconhecimento e que consegue integrar realmente as várias facetas da vida. Desde a sua vida conjugal, sua vida profissional. A sua vida com relação com o teu corpo, com relação a tudo. Mas acima de tudo é esse grande objetivo do autoconhecimento no sentido da libertação mesmo, de moksa [equivalente a kaivalya]. No momento quando eu via o Yoga ainda como uma técnica, ou seja, ali eu vou praticar Yoga e você toma contato com certas coisas, entra em certos tipos de pontos de vista com relação as coisas e depois você entra em outras práticas de trabalho e vê que tudo motiva para a prática de Yoga. Hoje para mim o Yoga é um estilo de vida, uma maneira de ver o mundo e consequentemente a gente mesmo. Mas no início não era. Como eu falei eu tinha um interesse desde o início que era uma questão física (NUNES, 2008).
A questão da alteridade espiritual desenvolvida no iogue, pode o capacitar positivamente a perceber um mundo melhor para se viver, um mundo em que os klesas cessem de agir e o mal-estar e sofrimento desapareçam. As práticas de ioga desenvolveria (ou deveria) no iogue moderno a certeza (equivalente a fé), como “aquisição” de certa “divindade” que os rituais lhe proporcionam:
Os estúdios [salas modernas onde é praticado o ioga] tornam-se uma morada para o divino, um espaço numinoso que está mais perto do mundo ideal que os iogues se esforçam para criar ou viver (SARBACKER, 2008, p.177).
O Prof. Hermógenes nos ajuda a compreender essa certeza espiritual distintiva de um outro mundo a partir do ioga; mas neste, não em outro. Em sua obra Yoga, um caminho para Deus, esclarece:
Que tem Yoga com tudo isso?
Yoga é exatamente a viagem dos que, intoxicados de divertimento, acordado pelas abençoadas pancadas das vicissitudes, saudosos da “casa do Pai”, já decisivamente convertidos, tornaram-se aspirantes ao Eterno.
Yoga é o caminho e o caminhar que conduzem a Deus.
Você, ainda estranhado, poderia perguntar: “Como pode uma ginástica fazer tanto?!”
Yoga não é ginástica. Nenhuma ginástica, só, é Yoga. Há uma ginástica muito inteligente chamada Hatha Yoga que ajuda o caminhante, dando-lhe adequadas condições físicas e psicológicas para que vença as obstruções e as fadigas do caminhar. Mas é apenas um aspecto particular de todo um nobre sistema que, alquimicamente, leva a alma a Deus (HERMÓGENES, 2005, p.30-32).
Se o que mais nos afasta de Deus e nos vincula ao mundo é nosso imperfeito amar, é a nossa incapacidade para o verdadeiro amor, nosso caminhar tem de ser não contra o mundo, mas a favor de Deus. Será a universalização e divinização de nosso amor que poderá cortar as amarras de servidão e dar-nos, na unificação com o Deus que amemos, a libertação salvadora (Ibid., p.20).
É errôneo pensar que o yoguin, pelo fato de ter despertado e visto o falso valor do que é mundano, deva abandonar a sociedade, a convivência, e partir para uma floresta, para a beira de um rio ou para uma caverna na montanha. Nada disso. Agora, desperto e armado de discernimento, mais do que antes, pode e deve participar, e de forma mais fecunda (Ibid., p.184).
As narrativas poéticas de Hermógenes nos conduzem a julgar que ele mesmo tenha atingido essa alteridade espiritual que lhe dava esta fé inabalável do poder do ioga como “caminho para Deus” ou “libertação libertadora”, argumentados por Sarbacker.
Os processos rituais do ioga, para cura ou “crescimento pessoal” tem estabelecido dialética com a saúde, como já apontamos. No entanto, a cura (no sentido de illness ou restaurativa) não deve estar centrada na renúncia do mundo como outrora. A cura restaurativa do ioga (em contraposição a cura alopática) se direciona a um novo kaivalya dessa perspectiva. A ética espiritual ioguica moderna abrange uma transformação na forma e no mundo propriamente dito em que se vive. A libertação final, kaivalya, logo, pode residir na modificação do próprio “samsara” em mundo melhor que se inicia sempre com um corpo purificado.
O Brasil, na perspectiva cosmológica do yoga, pode ser encarado como o Samsara a ser transcendido pelos yogis brasileiros. A luta dos veganos para os maus tratos dos animais, a da preservação das matas que todos os yogis empreendem, a menor quantidade de medicação ingerida, o uso de bikes ao invés da poluição causada pelos veículos automotivos e demais tópicos sociais em que os yogis no Brasil (e no mundo, mas me dirijo aqui a nós por questão ideológica mesmo) se engajam são reflexos de um desejo de mudança social.
Um yogi brâmane antigo como Patanjali ou Hatha-yogi medieval como Matsyendra não pensavam em Samsara como desejo de mudança social. Mas de fim do sofrimento existencial. A estrutura social em castas indiana não foi sequer tocada por eles em nenhuma de suas escrituras. Isso vai ocorrer entre os budistas (tanto que eles não foram incluídos como darsana hinduísta). A crítica dos Hathas da linhagem Natha estava mais no desvirtuamento ético dos brâmanes, como se lê em passagens do Gheranda Samhita, sobre a simples execução mecânica de suas fórmulas mágicas rituais e não obediência à moral contida nelas, como a importância do corpo. Algo resgatado pelos Nathas e da filosofia de Shankara.
Assim, quando afirmo que o Brasil é Samsara, desejo chamar a atenção para o entrelaçamento social, político e religioso/espiritual que o Yoga e os yogis fazem parte e são indissociáveis. Por trás do “Yoga para dor nas costas” está a crítica à medicina convencional cientificista; por trás do “Yoga aumento da agilidade mental” está cidadãos perdidos em busca de sentido para a vida, e por trás do “Yoga para ansiedade e depressão” está uma parcela da sociedade brasileira cansada e alienada de si-mesma espiritualmente.