O que são os yogis no Brasil, profissionalmente falando? Professores, terapeutas ou guias espirituais? São estas, perguntas legítimas de se fazer. E ela não é retórica; há realmente uma vácuo, um silêncio sobre o assunto. A resposta em geral é vaga, pois demonstra que não sabem ou pior, temem saber. Bem, vamos buscar dialogar sobre a questão nas próximas linhas.
Se o yogi for, profissionalmente categorizado como professor, ele ensina o quê especificamente? Uma filosofia prática que visa dar sentido a vida das pessoas com a promessa de uma vida boa por meio de um ritual corporal e uma filosofia indiana? Essa é a resposta que um bom professor (ou aluno antigo) lhe responde de bate-pronto. Mas depois de 5 segundos de reflexão, você percebe o quão vasta ela se torna. Uma prática regular de yoga, aquela que você paga 150-400,00/mês por 2-3x/sem envolve 60-90% de posturas físicas e, se tiver sorte, 10% entre relaxamento e meditação, que também não deixam de ser físicas. As aulas “filosóficas” mesmo, apenas em workshops, satsangs, encontros extraclasse e durante a fala do seu professor no meio da aula, mas durante os asanas. Em outras palavras, no momento em que não há diálogo, apenas o monólogo dele.
Dessa forma é lícito afirmar que a formação desse professor de yoga deve envolver bastante de anatomia, biomecânica, fisiologia, assim como pedagogia na montagem das aulas para não lesionar o aluno. Sem contar também que, como docente, deve ter recebido noções básicas de primeiros socorros e cuidado consigo e o corpo do seus alunos. Isso, pois nem entrei no mérito de tentar entender o que especificamente significa a denominação “filosofia-prática” - como se houvesse filosofia que não fosse prática (lit. de uso comum por todos). Se, por prática, querem se referir que utiliza-se o corpo; bem, a filosofia (também espiritual) dos evangélicos e muito mais dos umbandistas, também são práticas e se utilizam bastante do corpo também. Assim, qual a diferença entre Yoga, Neopentecostalismo e Umbanda sob esta perspectiva? Ah, estas religiões estão pautadas em dogmas e o Yoga é livre disso! Ótimo, então na próxima aula do seu professor tente alterar o sutra 2.3 de Patanjali - escrituras "sagrada" aos yogis de todos os tempos (ao menos a partir do séc.II aC) - e você vai perceber prontamente que ali não se mexe, pois os textos yoguicos são "perfeitos em si-mesmos"; ou seja, dogmáticos.
Se, mesmo assim você bater na tecla no yogi ser professor, o órgão/aliança/instituição/método/escola que o fiscaliza deve estar vinculado ao Ministério da Educação. Mas não estão! Ah, mas isso já foi resolvido quando incluíram o Yoga sob o mesmo dossel das Artes Marciais: práticas físicas mas com fundamento filosófico-espiritual que os sustentam. Acreditem, a Capoeira e o Jiu-Jitsu são bem mais organizadas do que o Yoga.
Veja, você não pode indagar o texto de tendencioso ou algo desse tipo; estamos especulando possibilidades e pensando de forma lógica. Amo o yoga!
Mas, tudo bem, vamos continuar pensando os yogis como professores, igual aos das artes marciais: quem capacita e forma os professores de yoga brasileiros? Qualquer um, muito diferente do Judô por exemplo. Tenta abrir um Do Jo (espaço de ensino prático e filosófico de judô) na sua cidade para você ver o que é de faixa-preta chegando para denunciar um impostor sem registro nas suas Federações e Confederações. Ninguém fiscaliza o conteúdo das disciplinas ministradas ou há algum tipo de conselho que chancela os "profissionais" do yoga no mercado brasileiro? Não. Existe um consenso velado entre os professores de yoga brasileiros (e aqueles que os formam), que os próprios consumidores das práticas de yoga (o aluno no português mais claro) possuem discernimento para eleger uma boa escola e professor de yoga. A mesma lógica do lado negro do mercantilismo; entretanto, o marketing parece arrastar mais do que exemplos - ao menos no primeiro momento (mesmo que ele dure 20 anos).
Entramos aqui em um modelo econômico sem regras aonde vence o que se apresenta (se vende no mercado) com o melhor custo-benefício e estratégias de marketing de si-mesmo. Não sei, mas talvez esse modelo de venda de bens de salvação não seja o melhor para escolha de práticas corporais e “filosóficas”, pois mesmo as péssimas universidades particulares brasileiras possuem certas regras a obedecer: como se vincular ao MEC, possuir um número mínimo de mestres e doutores, além de submeter seus currículos a órgãos fiscalizadores que verificam se há uma quantidade mínima de horas/aulas e seu conteúdo programático é coerente com a profissão que estão formando.
Bem, mas os yogis não podem ser categorizados como simples professores como os que ensinam trigonometria, capoeira ou história medieval, pois eles são terapeutas. Ótimo, achamos! Os yogis são terapeutas, algo totalmente plausível de se pensar: eles cuidam por meio do corpo a alma, o espírito e a mente dos seus alunos, agora, pacientes. É lógico pensar dessa forma, enquadrá-lo nas mesmas regras de outras terapêuticas espirituais no Brasil, como o terapeuta ayurveda e o acupunturista por exemplo.
Mas há algum um órgão com profissionais da área médica legitimados por uma comunidade especialista em yogaterapia a julgar o novo profissional a entrar no mercado? Além disso, estabelecem, como no caso docente anterior, as disciplinas e carga horária mínima para formar esse terapeuta especialista em yoga, assim como há em Ayurveda e Acupuntura? É, não.
As formações em yoga no Brasil não possuem o perfil de curso de terapia (até que algumas tem esse foco, mas são poucas e mesmo estas, não possuem ninguém da área médica que ministre as aulas ou algum órgão fiscalize seus formandos). E mais, o profissional da área de saúde por direito que pode se utilizar do yoga como técnica terapêutica mesmo é o médico ayurveda e o profissional de educação física com capacitação em yoga, sejamos sinceros.
Uma formação na medicina ayurveda abrange bem mais do que identificar os chackras e saber seu dosha quase como horóscopo. E um profissional de educação física ruim, teve mais aulas em anatomia, biomecânica, fisiologia e saúde do que a grande maioria dos yogis que ministram aulas regulares em ashrams e studios por aí.
Mas não, o yogi não é nem um professor no sentido de docência (que é um contrassenso, mas vamos lá) e nem um terapeuta, mas um guia espiritual. O yoga então pode ser percebido aqui como uma espiritualidade, ou seja, um complexo sistema de ideias que proporcionam sentido de vida a quem o segue a partir de narrativas cósmicas. Perfeito, maravilha, encontramos! Os alunos-pacientes e agora discípulos-devotos visam, mais do que fortalecer os corpos ou curar-se de males do corpo (físico, psíquico ou energético) e do espírito (pois concordamos que essa é a tarefa do terapeuta ayurveda), ascender em graus de maior clareza espiritual em busca do autoconhecimento. Entretanto, caracterizando o yoga como Espiritualidade (muitas vezes terapêutica, assim como o Espiritismo) seria ético cobrar por seus serviços, dado o seu cunho agora de certa forma, Divino? A discussão pode nos conduzir a um sim, porque não? Haja vista que umbandistas, evangélicos e candomblecistas também o fazem em troca de seus serviços espirituais.
Mas esse é um viés que os yogis brasileiros certamente não irão gostar muito de serem caracterizados, pois abrirá um pretexto social que os direcionaria para outro mercado, o religioso. E aí meus amigos, o yoga precisaria concorrer com outras propostas espirituais tão interessantes e com muito mais tradição do que ele no país. E aí talvez esteja a razão da indefinição prorrogada por qual mercado os yogis trabalham? Docente, terapêutico ou espiritual?
Neste momento, yogis mais radicais podem delirar e esbravejar que o yoga é tudo isso e nada ao mesmo tempo. Que o yoga é atemporal e inclassificável, ou ainda cair naquela retórica antiga que afirma: não me interessa essa discussão, pois eu faço o “meu yoga” – algo como customizar várias crenças e amarrar com outro desvario ótimo: “na Índia, o yoga é um sistema perfeito em si-mesmo com milênios de existência e passado de geração para geração de mestre para discípulo”, e quando este se empolga, finaliza com outra pérola das retóricas yoguicas: “sou um representante direito da linhagem espiritual/religiosa (aí ele cita uma sequência de nomes em sânscrito – uma língua morta mas venerada por esses radicais) e, que portanto, foge a qualquer pretensa pseudocategorização ocidental”.
Bem, aqui entramos em uma quarta categorização que denomino de esquizofrênica, pois se não sabem o que são ou se autodenominam Tudo (e as vezes, sempre de forma enigmática, também o Nada, o Silêncio e o Vazio), reflete o total desvario e falta de conexão com a realidade e a sociedade brasileira. Esse comportamento é típico de seitas fanáticas de religiosos ultra-ortodoxos; o que nos permite concluir que estes - o clã dos yogis esquizofrênicos – formam uma nova seita religiosa em formação no Brasil.
O desavisado ainda pergunta, rindo de nervoso: Por quê “nova” seita religiosa ou espiritual se o yoga é milenar? Pois o Brasil não é a Índia, assim como não foi a África e as religiões Afros quando transplantadas para o Brasil; estas se modificaram e fizeram nascer a Umbanda e o Candomblé por exemplo. Recentemente, com a maior imigração haitiana no norte do país, a religião Vodu vem erigindo novos sincretismos com o cristianismo por exemplo. Quero dizer com isso, que é um processo natural os sincretismos e as contendas entre as seitas antigas ortodoxas e as novas heterodoxas, haja vista o Budismo e as dezenas de ramificações e transformações sofridas.
O yoga na Índia sempre foi um darsana hinduísta, ou seja, uma “perspectiva” filosófica-religiosa do Hinduísmo. O Budismo, por exemplo, por ser uma religião ateísta (mesmo nascendo das mãos de um indiano hinduísta) foi expulsa do país, mas o yoga não, pois sempre obedeceu aos sacerdotes brâmanes (ou modificados por estes para "encaixar" o yoga em suas narrativas religiosas). Assim, os yogis indianos fazem parte da cultura religiosa hinduísta. É impossível comparar o nosso yoga latino-americano erigido desde sua chegada aqui por volta de 1900 pelas mãos de cristãos, militares e adeptos de ordens ocultistas secretas com o indiano, ou até mesmo de outros países. A popularização mundial do yoga a partir do século XIX por Vivekananda e outros o transformou e, por consequência, os yogis também.
Mesmo que você yogi latino-americano tenha estudado exclusivamente com mestres yogis indianos por 60 anos em uma caverna isolada de um templo shivaista, quando vier ao Brasil ensinar o que aprendeu, o fará transformando e adaptando sua espiritualidade a cultura brasileira. Se não o fizer, ou morrerá convosco o conhecimento herdado de sua linhagem ancestral indiana, ou será tão hermética e eclética que apenas uma pequena elite de "escolhidos" receberá seus ensinamentos (o que não impedirá que estes não o transformarão, assim como ocorreu com o Budismo). Não dá mais para sustentar que o yogi é Tudo pois, ou é muita soberba, sarcasmo ou ignorância mesmo.
E por último, mas não menos importante. Faço essas observações acima, não no intuito de maldizer o yoga ou os yogis. Não busco, descrer o yoga, pelo contrário, penso como um yogi: se a grande busca espiritual yoguica é o fim da Ignorância, que se inicie pela mais evidente. Se escrevo essas parcas linhas é pelo amor que nutro à cultura yoga. O que desprezo é o silêncio que o microuniverso yoguico brasileiro está mergulhado há algumas décadas. Preferia o tempo em que os yogis no Brasil deixavam claro as suas ideologias sem medo de serem expostos (ou perderem alunos-dinheiro), e reservavam a quietude para as suas próprias práticas meditativas.
Notas do autor: Formado há mais de 15 anos em yoga, leciona em cursos de formação de yoga no Brasil e Portugal, além de algumas incursões em práticas de linhagens e métodos diferentes de yoga. Além disso, é profissional de educação física que ministrou durante muito tempo aulas regulares de yoga e, nos últimos 10 anos, dedica-se ao estudo acadêmico do yoga na área da Ciência da Religião.