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Dr Roberto Simões

Um pouco de conhecimento sobre as ilusões indispensáveis da vida yogi


É muito comum yogis brasileiros confundirem o conceito de avidya (ignorância) com o de maya (ilusão). Eles não são a mesma coisa e nem excludentes, pelo contrário, podem ser interpretados como complementares. Sim, a vida é uma ilusão e por isso sofremos. Tanto aos cristãos quanto os yogis, o leigo (lit.ignorante) é aquele que vive a vida como se não houvesse nada mais além da realidade cotidiana. E este é ponto: ninguém deveria buscar a Verdade, mas compreender as ilusões que fazem sentido para a sua vida. Por isso, o yoga não almeja o fim da ilusão, mas o da ignorância. Em posse de vidya (lit.conhecimento cognitivo), o yogi obtém primeiro a convicção da existência de maya como inerente a vida e não a sua destruição. Alguém sem maya é um des-iludido: sem o poder criativo da vida. Leia o que o Tattvabodhah diz a respeito disso:

Atma (a Consciência), com o condicionamento de ignorância [avidya], é chamado jiva (o indivíduo).

Atma (a Consciência), com o condicionamento de maya (a ignorância total), é chamado Isvara [Deus]. (ARIERA, G. 2006. Tattvabodhah: o conhecimento da verdade. Rio de Janeiro: Vidya-Mandir Ed. p.97)

Em des-ilusão, ou seja, sem o poder de maya estão todos os homens e mulheres que perderam – ou nunca adquiriram? – o poder criativo que Isvara (ou algo similar) possui. Um depressivo vive sem maya, totalmente des-iludido. Ele carece de ilusões; chega-se até mesmo receitar “ilusões” em pílulas para ele, haja a vista os mecanismos de ação das vias serotoninérgicas – principal química dos anti-depressivos. A vida do depressivo se apresenta de imediato (como dizia Kiekergaard), ou seja, sem reflexão, sem conhecimento; em suma, em avidya (ignorância). Alguém em depressão estão tão consciente da brutalidade trágica da vida real que se apequena diante dela e se enraivece (os depressivos possuem uma carga de violência que não se externa mas se volta para si mesmo). É necessário coragem de um herói para buscar (alguns constroem, mas a grande massa segue mesmo) um sentido para a sua vida. Um depressivo é sem Graça (carente do “maravilhamento” da vida).

A vida neurótica, em contraparte, é recheada de ilusões, mas também ignorante. Tantas e diversas ilusões tomam conta de sua vida que o enredam em rituais cada vez mais elaborados que o impedem (e os outros ao seu entorno) de viver livremente. O neurótico, por exemplo, para conseguir vencer o peso cruel da realidade nua e crua pode chegar a lavar tantas vezes as suas mãos que as fazem sangrar, pode também utilizar três rolos de papel higiênico sempre que visita o toalete ou ainda pode se ver “obrigado” a refazer do início o trajeto do trabalho para casa, sempre que sentir “perder” as contas do número de postes de luz da rua.

Há, entretanto, neuroses que todos nós desenvolvemos ao longo da nossa existência mas que não são incapacitantes. Pelo contrário, nos trazem sentido e garantem uma vida feliz, saudável e para alguns, a imortalidade. E compreenda que não estou sendo cínico. Rituais como entrar com o pé direito, conferir as trancas da janela do apartamento no 22o andar antes de dormir todos os dias ou sair sempre pela mesma porta que entrou, são neuroses que não incapacitam ninguém de viver bem. Elas podem ter sido “adotadas” como repressores benfazejos para as mais profundas dores da alma e não há porque “removê-las”. São elas o que James Hillman denomina de “ficções que curam”. Dentre as ilusões saudáveis que produzimos ou adotamos há as “neuroses” mais sofisticadas, pois foram instituídas culturalmente e que nenhuma sociedade conseguiu até hoje eliminar, apenas substituir ou adaptar. Alguns sóciobiólogos chegam até a afirmar que seriam elas constituintes de heranças genéticas ancestrais que nos garantiriam a sobrevivência da espécie: são elas as religiões ou espiritualidades.

Comungar todo domingo na missa cristã, fechar o corpo entre os umbandistas, receber o passe mediúnico entre os espíritas ou realizar diariamente uma espécie de alongamentos misturados com cânticos a deuses de quatro braços ou cabeça de elefante não são exatamente comportamentos sem um grau elevado de maya, ilusão ou neurose. E, repito, não estou sendo cínico ou sarcástico! O intuito aqui não está em brincar com as crenças ou revelar destemperos, mas indicar que o yoga não visa o fim de maya, mas de avidya.

No caminho espiritual do yoga em vistas a liberação final (kaivalya), os yogis em posse de vidya (conhecimento) - obtidos por suas práticas introspectivas, leitura das escrituras, assim como diálogos com seus gurus - precisam adentrar no mistério de maya e não destruí-lo! Mas, todavia, é necessário que a ilusão adotada ou criada faça sentido a sua vida e forneça ao yogi e a sua comunidade (e isso é importantíssimo), respostas as mais profundas agruras da vida cotidiana.

A ignorância total é chamada Maya. Devido a ela, a pura Consciência torna-se a causa do Universo (Id.).

O conhecimento espiritual do yoga (vidya) está em compreender esse jogo cósmico (lila) entre maya e avidya e cair de joelhos (render-se, lit. redenção aos cristãos ou kaivalya entre os yogis) ao infindável da existência que ninguém consegue transmitir pela linguagem humana, por isso cunhou esse vislumbre da alma como Deus, Isvara ou Nirvana. Aos seres humanos foi preciso erigir uma conceituação nova, algo sem comparativos para nos libertar da realidade materialista chata (de achatada), pois Verdade mesmo é compreender que ela também é uma ilusão, uma brincadeira (lit.lila) d’Deus, mas que humilda aos homens e mulheres e fornece (essa ilusão divina) força para que consigamos levantar da cama todos os dias e não nos apequenarmos com a tragédia da vida.


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