Perguntas não respondidas
Como adiantado no início da seção anterior, a área de investigação do yoga/meditação fora do âmbito terapêutico e “exegético” de suas escrituras ainda é escasso entre os cientistas da religião latino-americanos. Por isso mesmo, as questões se avolumam no aguardo de pesquisadores interessados na temática. Uma das questões mais prementes é o fato social do yoga/meditação não disseminar-se com tamanha força nas periferias das grandes metrópoles em que seus praticantes/professores se multiplicam. Seria pois a teologia do desapego e da não-violência não faz sentido àquela população; ou, por outro ponto de vista, a teologia da prosperidade dos evangélicos refreia o avanço de uma outra narrativa religiosa? Digo isso analisando alguns sites evangélicos, onde fica notório que seus atores sociais já perceberam o avanço do yoga/meditação como um novo “concorrente” que oferta novos bens de salvação, muitas vezes se antagonizando frente aos deles. Igualmente como também já é possível compreender tentativas de “evangelizar” o yoga e suas escrituras, como as aproximações do yoga/meditação com parábolas bíblicas ou de Jesus Cristo sendo um grande yogue.
Contudo, estas aproximações entre yoga e cristianismo não é algo novo e os próprios yogues indianos foram os primeiros a fazer tal procedimento ainda no final do séc.XIX, no período histórico indiano conhecido como “renascença indiana”, como o fez Ramakrishna, para citar apenas um exemplo. Mas esse hiato entre as populações economicamente menos favorecidas no Brasil (para afunilarmos nosso objeto) e os núcleos sociais mais abastados, acontece por quê? Seria uma ressonância dos primeiros yogues que transplantaram via instituições esotéricas como Maçonaria, Rosa Cruz, Martinismo e outras, reconhecidas socialmente pelo seu caráter elitista que hoje repetimos? Essa é uma hipótese que exigirá um novo fôlego de pesquisa, mas sem dúvidas, ainda continua sem uma resposta à altura de sua problemática.
Outra questão que me deparo desde o meu mestrado, e se mantém, é porquê a academia possui tanto relutância em investigar o yoga/meditação como um novo fenômeno religioso em desenvolvimento? Qual o motivo dos cientistas que se debruçam em investigar o yoga/meditação dedicarem-se, quase que exclusivamente, na tradução/interpretação de escrituras em sânscrito ou nas repercussões biomédicas de suas práticas psicofísicas sem qualquer diálogo na sociedade? Por quê são tão escassos aprofundamentos religiosos e suas influências sociais, políticas, econômicas e antropológicas do yoga/meditação? Será que os cientistas envolvidos (ou que poderiam ser) estão de tal forma absortos em seus achados científicos que se fecham a dialogar com outros campos? Ou, somos nós das ciências da religião que não conseguimos enxergar o yoga como algo já desvinculado do hinduísmo e da nova era? Outra pergunta hipótese que levanto esperando novas pesquisas, este quase total desinteresse poderia residir numa espécie de “conversão” de acadêmicos aos princípios do yoga que os impedem de uma visão mais isenta do seu objeto de pesquisa/devoção?
Essas e outras são perguntas legítimas, mesmo que inconvenientes, de se realizar. Pois uma coisa é fato, o yoga/meditação vem exercendo um certo fascínio entre cientistas biomédicos e sanscritistas (ver Herbert Benson, Kabat-Zin, George Feuerstein e outros) e amnésia/desinteresse entre cientistas da religião (e de humanidades em geral). Seria, talvez, pois convertidos ao yoga, estes não podem se declarar “devotos desta fé”, assim como entre alguns cientistas-cristãos que precisam ficar se explicando que os dogmas bíblicos não interferem no resultados de suas pesquisas? Mesmo carente de maiores dados, são provocações legítimas de se averiguar.
Novos problemas
Mesmo (ou em decorrência disso) sendo uma pesquisa pioneira, pensar sobre yoga/meditação como um novo fenômeno religioso no Brasil gera muitas questões a serem respondidas. O primeiro novo problema que se apresenta aqui está envolto na questão do ensino religioso nas escolas. É sabido que o yoga/meditação vem conquistando cada vez mais espaço entre escolas públicas e privadas como “técnica para relaxamento” e/ou “aumento de performance”; entretanto, quando o debate sobre a religiosidade do yoga se aprofundar, a fina película que recobre o yoga/meditação como secular e laico se romperá. Quando isso ocorrer, o delicado assunto da teologia do desapego yoguico e o seu proselitismo via o “cientificismo” que o domina atualmente, acenderá discussões mais acaloradas entre pais e a sociedade sobre seu papel na formação das crianças. Não é coincidência as diversas tentativas de volver o yoga/meditação cada vez mais afastado da sua (óbvia) espiritualidade e aproximá-lo da ciência biomédica e filosofia (empírica e não metafísica?), assim como entre os espíritas kardecistas no Brasil.
Outro problema, de certa forma atrelado ao anterior, é a inclusão do yoga/meditação nos postos de saúde brasileiros pelo Sistema Único de Saúde como terapia integrativa complementar e alternativa. Sendo o yoga uma religião, a “meditação yoguica” poderia ser ministrada por agentes de saúde? Será que o aumento dialógico sobre a religiosidade yoguica/meditativa e o fato do culto politeísta que o acompanha, assim como as “rezas” (mantras) numa língua distante (sânscrito) se coadunará em harmonia com as crenças dos usuários do SUS (grande parte evangélicos)? Ou, muito mais provável, o Ministério da Saúde no Brasil seja compelido a remanejar alguns vocabulários do yoga (como os próprios yogues indianos o fizeram século passado), assim como suprimir outros tantos elementos míticos do yoga, da mesma forma que o faz com o ayurveda (a tradicional medicina indiana), já incorporada nos postos de saúde brasileiros)?
Hoje em dia o yoga/meditação, basicamente, tem difundido as suas práticas e soteriologia em espaços privados conhecidos como “escolas de yoga/meditação” ou “estúdios de yoga/meditação”. Entretanto, é totalmente plausível, pela ótica da ciência da religião, compreende-los como igrejas ou instituições religiosas yoguicas. Nestas igrejas yoguicas, muito mais do que em parques da cidade ou espaços mais plurais, como nas inúmeras unidades do SESC por exemplo, se aprofundam a leitura e interpretação das escrituras filosóficas do yoga, suas práticas psicorporais conquistam contornos muito mais “espirituais”. É bastante comum se presenciar em salas de yoga/meditação, incensos sendo queimados, sons indianos, vendas de produtos do meio do yoga/meditação, além de oferecimento de retiros yoguicos/meditativos, peregrinações/viagens a locais sagrados e os mais diversos cursos e workshops - sendo alguns destes (retiros) para “formar novos professores de yoga/meditação”. São verdadeiros núcleos proselitistas dos valores pregados pela religião yoga em desenvolvimento. Sendo assim, mais como uma provocação minha, essas instituições yoguicas (Iyengar Yoga, Kaivalyadhama Institute, 3HO Foundation do Kundalini Yoga, Awaken Love, dentre tantas outras) não deveriam estar autorizadas pela sociedade como espaços religiosos, sob a tutela da legislação federal, como qualquer outro local de culto no Brasil? Esse é um debate público que existirá em alguns anos no Brasil. Seja pois, campos sociais religiosos (que já ocorre entre os evangélicos) perceberão a concorrência ou, pelos próprios yogues reivindicarem seu próprio espaço de fala como uma legítima religião na sociedade (algo menos provável, ao menos assistindo o panorama hoje, 2019).
A última problemática que surgiu no meu processo de pesquisa de pós-doutoramento é o mote das fontes de legitimação do yoga. Pela primeira vez, na história do yoga, um não-indiano sincretiza o yoga com uma religião nativa e recebe legitimação por yogues na própria Índia. Esse é o caso do brasileiro Janderson Oliveira, o Sri Prem Baba, um “fardado” da Igreja do Santo Daime que em sonho tem a “miração” do seu mestre indiano (que ele não conhecia até então). Em visita à Índia se reconhecem, e a partir desse (re)encontro nasce o Awaken Love, uma instituição religiosa yoguica brasileira, mas legitimada na Índia - inclusive com a abertura de um ashram (nome em sânscrito para igreja yoguica) naquele país. Outro fato inédito, está na introdução do culto yoguico, além de asanas, pranayamas, mantras e demais elementos da cultura hinduísta, a beberagem da ayahuasca entre os yogues indianos pelo brasileiro Sri Prem Baba. A pergunta que fica ainda a ser investigada é qual o desfecho desse processo de retorno do yoga pós-transplantação a sua matriz original? São questões, como todas as anteriores, que aguardam cientistas da religião analisarem em seus desdobramentos.
Por fim, uma questão que me acompanha desde o mestrado e ainda não consegui estruturar, se estabelece no pano-de-fundo de todo o meu trabalho de pesquisa: pensar a Fisiologia da Religião como uma subdisciplina da Biologia da Religião. Berger e Luckman (2012) explicam que todo processo de apreensão humana da realidade objetiva, ao contrário de outros animais, não possui um “caráter biologicamente fixo de sua relação com o ambiente” (p.68). Dessa forma, nossos comportamentos (e isso inclui os religiosos) tece uma íntima relação com o funcionamento do nosso corpo e o ambiente. E aqui, a possibilidade de uma Fisiologia da Religião existir, uma subdisciplina entre a Sociologia e a Psicologia da Religião, pois entre os cientistas da religião há certa dicotomia na concepção humana destes, especificamente, no conceito de “natureza humana” (BERGER & LUCKMAN, 2012, nota 7, p.70).
De modo bem simplista podemos afirmar, baseado nos autores, que a construção social da realidade humana é impossível em isolamento, ou seja, não há uma fisiologia ou psicologia inata que nos construa humanos, somos na interação do que sentimos (objetivo) e percebemos (subjetivo). Em suma, um corpo só (e seu funcionamento/fisiologia) é pouco aos homens e mulheres sociais; os humanos oscilam, complementa Berger e Luckman, entre “ser um corpo e ter um corpo, equilíbrio que tem de ser corrigido de vez em quando” (Ibid., p.72). No último capítulo de A construção social da realidade de Berger e Luckman, Organismo e identidade, os autores estabelecem as bases da dialética entre organismo/natureza e sociedade. Aqui (e ao longo de todo o livro) fica nítido que há certa pulsão instintiva/animal que, sozinha (sem os Outros), torna a vida humana um caos (próxima a de qualquer outro animal).
Mas a vida em sociedade é uma condição, continua os autores, uma necessidade para nos tornarmos humanos (primeira e segunda socialização). Esta ambivalência, entre a natureza/instinto e a repressão social, é o que nos caracteriza e produz uma infinitude de vidas singulares. De forma mais rude, há um corpo que nos empurra para a vida, ao mesmo tempo que todos os outros corpos lutam para impor, igualmente, os seus próprios desejos/pulsões. Dessa tensão, surgem os diversos modos de existir em sociedade, com suas próprias maneiras de regular o caos eminente. A religião é sem dúvidas uma das mais antigas maneiras de organizar corpos/mentes, ou seja, homens e mulheres num mesmo espaço geográfico. Durante as fases de socialização, onde a religião exibe sua força, é necessário explicar os nossos mais íntimos anseios. Assim como ensinamos a um bebê que ele deve (e como, jeito) dormir, marchar, olhar, comer e se comportar a mesa na presença de estranhos, igualmente aprendemos (socialização) como organizar nossos sentimentos e direcioná-los. Todo esse processo é também fisiológico.
Assim como desenvolvemos um paladar para algumas comidas e aversão a outras, ou seja, o funcionamento do organismo se modifica. Buscando ser mais prático, acreditar no fluir de prana pelo nosso corpo e sentir, objetivamente a realidade prânica, após a vocalização do “som sagrado Om” numa prática de Yoga/meditação, acontece, necessariamente, durante um longo processo de socialização religiosa, onde de nada importa memorizar os conceitos de prana nos sutras do Gheranda Samhita, mas vivenciar essa experiência por longo tempo. Neste processo de socialização do corpo se adquire a habilidade de perceber uma nova fisiologia, uma fisiologia religiosa/espiritual. Assim como um cristão sente a presença real do espírito santo e, para isso, é necessário um longo processo de atenção no próprio corpo, você se abrirá (ou não) a uma percepção corporal que transcenda o mundo ordinário/profano e se abra ao conhecimento extraordinário/sagrado(?). Para toda essa socialização fazer sentido é preciso um outro corpo para acomodar novos significados. Daí nasceria o início de uma sistematização de uma Fisiologia da Religião que se ocupasse a compreender não só os símbolos do corpo, mas uma nova (des)construção de corpos dando sentido último a todos os sentimentos que vão fornecer o sentido de pertença comunitária, e nada melhor que o corpo para tornar real a subjetividade humana: se eu sinto no meu corpo, esse “algo” não pode ser negado.
Vamos hipotetizar que numa sociedade primitiva qualquer, um selvagem é acometido por um profundo sentimento de tristeza e “diagnosticado” como possessão de espíritos malignos por um feiticeiro autorizado. Em outra hipotética sociedade, a civilizada, a psicanálise escolhe por depressão a esse mesmo sentimento (corporal, obviamente). O que diferencia a profunda tristeza entre o selvagem e o civilizado é a compreensão diferenciada da fisiologia de ambos (mesmos) corpos/orgânicos. A fisiologia erigida pelo feiticeiro pode comportar ervas para agir nas energias telúricas do selvagem para curá-lo; enquanto o psicanalista vai atuar com a palavra para aliviar o sofrimento do civilizado. Entretanto, ambas erigiram uma fisiologia que transcende o orgânico para a mesma dor existencial que acomete os dois humanos. As diferenças entre ambas construções interpretativas são óbvias e não cabe aqui discuti-las (mesmo porque Levi-Strauss já o fez). Todavia, o que há em comum nas duas narrativas de cura acima? As construções sociais da realidade selvagem e civilizada precisaram criar um novo corpo. Com um novo corpo, uma nova fisiologia vem atrelada para explicar de forma objetiva uma realidade subjetiva que, se não fosse possível interpretá-la, destruiria ambos indivíduos.
Uma possível Fisiologia da Religião aqui, embrionariamente, exposta permeou minhas pesquisas de pós-doutoramento, mas não consegui, mesmo porque meu objetivo principal não nasceu desta necessidade, pelo contrário, veio surgindo ao longo do processo de elaboração do trabalho, portanto, como um novo problema a ser estudado.