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Foto do escritorPhD. Roberto Simões

SOMOS MUITOS


Yoga, o que é isso? Difícil responder, pois são muitos seus significados, práticas, ordens espirituais de uma mesma tradição; e não há uma só tradição ou forma de yogar, mas somos muitos.


O parampara define bem o sistema errático (errante ou rizomático) de transmissão do conhecimento yoguico, seja espiritual, artístico ou educacional. O saber yoguico é absorvido (e não transmitido). Talvez, mais do que isso, inventado de forma viva e não estrutural e hierarquizado, como muitos pensam por associar yoga ao aparelho-de-captura dominante hoje em dia, a cultura hindu. Claro que no Yoga existem líderes carismáticos e seus circuitos de consagração, mas é aberto, pois pulsa da|com à Terra, nunca em metafísicas.


O ensinamento de mestre para o discípulo (parampara) é assimétrico e não de cima para baixo, da direita para esquerda, do passado para o presente. Quando um discípulo (após anos de sadhana) é reconhecido por uma tradição|escola como mestre|guru, isso acontece pelo seu carisma.


Carisma é uma qualidade pessoal considerada extracotidiana e em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, extracotidianos específicos, ou então se a toma como pessoa enviada por Deus, como exemplar e, portanto, como um líder (WEBER, 2000, p. 158, 159).

Um guru|mestre yogin autêntico, assim, não o é pela demonstração de suas habilidades físicas, intelectivas ou mágicas (siddhis), mas pela consagração dos inúmeros coletivos yoguicos que o legitimam como um yogin autêntico. E quanto mais distante o coletivo consagrador, maior sua força de instituir carisma.


Os circuitos de consagração social serão tanto mais eficazes, quanto maior a distancia social do objeto consagrado (BOURDIEU).

Matsyendra adquire e mantém seu carisma até hoje, pois consagrado por Shiva; Vivekananda por Ramakrishna, Iyengar e Jois por Krishnamacharya, Glória Ariera por Dayananda, Hermógenes por Chico Xavier e depois Sai Baba, e muitos outros yogins hoje, por Mark Zuckerberg e seu Tempo Instagram. Um yogin em processo (sadhaka), ou seja, ainda não consagrado pelos circuitos, incorpora (devora) o yoga, se torna ele, a sua tradição (e não ele à tradição). É um acontecimento metabólico dos ensinamentos e práticas: a tradição está ali (no corpo e mente dele e de seu guru). O corpo de ambos (no processo) digere e vão juntes, desterritorializando e desfazendo os códigos que significaram aquele sujeito (antes de uma casta X ou classe social periférica), tornando-o, novamente, um indivíduo: um ser descodificado. Todo yogin autêntico, é alguém que se transformou (seu corpo e consciência) de volta a um não-ser. Todo yogamento (processo ritual yoguico), é uma a-significação do eu-sujeito.


Todo yogin autêntico, é aquele que deixou de ser e passa a estar humano

E, quando este (antes neófito, agora aluno, e quem sabe um dia, guru) for iniciar outro corpo neófito assujeitado, este receberá a tradição digerida por aquele. Mais do que isso, o próprio guru, em diálogo com seus discípulos (sadhakas), se transformará também. Não tem ninguém aqui des-afectado. Pelo contrário, yogar é alargar sua superfície em afectar e ser afectado: o principal siddhi é o de fazer passar desejos. Este é o princípio do parampara, uma alquimia corporal conectiva, disjuntiva e conjuntiva que torna o rizoma yoguico múltiplo e tradicional. E o que se conserva (se repete) é o sistema digestório.

Sentimos que um certo corpo é afetado de muitas maneiras
Não sentimos nem percebemos nenhuma outra coisa singular além de corpos e dos modos de pensar (Axiomas 4 e 5: Ética de Espinosa)

Yogar autêntico é, portanto, um banquete, um processo ritual antropofágico, nunca uma prática pedagógica bancária, esse delírio em imaginar alguém depositando seu saber milenar na “cabeça|mente” de outro corpo de forma imaculada. Não, é tudo uma práxis, um procedimento e até uma estratégia (D&G, O Anti-Édipo, p.196). Pode parecer um jogo de palavras e, para os desatentos, um vale-tudo que se perde no relativismo dos yogins neoliberais, ou uma afronta moral aos yogins conservadores. Estamos falando de uma liberação dos fluxos que serão codificados e, lentamente, incorporados a tradição num corpo. E, sendo corpo, corre-se sempre o perigo de que as filiações e alianças deixem de ser provisórias.


Quando um yogin em processo de yogamento com seu guru, ambos, cozem tradições em vossos corpos, e há, aí, um risco real de uma nova ordem se estabelecer. Ao invés da repetição simples do mesmo, pode nascer a diferença: ambos de transformam costurando alianças e filiações outras. Todo yogar autêntico funciona na razão da repetição e da diferença. Os confrontos e quebras decorrem daí, até que a inconstante estabilidade da alma selvagem yoguica, enfim, retome seu rumo natural de repetir e diferir.



É similar ao sistema de parentesco onde os casamentos (as filiações e alianças yoguicas entre guru-discípulo) estão abertas, não são nem monogâmicas ou definitivas. Quando um preto-velho vem trabalhar no seu cavalo, ele, enquanto atende seu socius (sangha ou comunidade) com passes e aconselhamentos, atualiza a tradição no corpo do médium. Do mesmo modo que num ritual daimista, enquanto corpos cantam, miram e bailam no hinário (toda lua cheia e nova), acontece a transmissão da tradição em atualizações: um padrinho pode receber a inspiração de um novo hinário e mirações se repetem e diferenciam corpos.


Toda tradição espiritual, assim, libera, corta e produz fluxos. Codificações de fluxos que filiam membros novos na tradição, descodifcações de fluxos outros, rompem linhagens e abrem novas linhas-de-fuga, criando ordens e até tradições. Veja o exemplo do yogin Sidarta Gautama que, iniciado por uma ordem espiritual hatha-yoguica, desiste de seu sadhana, direcionando seu tapas numa nova direção: nasce daí o Budismo. Quantas linhas de umbanda existem, formas de yogar e consagrar ayahuasca? Até a Igreja Católica produziu teologias diferentes. Nem na mais lisérgica viagem de Marx e Engels, imaginariam que padres latino-americanos poderiam, inspirados n'O Capital, fundarem a Teologia da Libertação. O protestantismo é outro corte de fluxo católico que abriu novas conexões espirituais, coadunadas com o capitalismo, funda a Teologia da Prosperidade (leia M.Weber em, A ética protestante e o espírito do capitalismo).


Mas não perde o fio. Para que essas dobras possam ocorrer, alguém (um pretendente a yogin, p.e.) precisa, antes, ser aceito por um guru (e o coletivo espiritual) de uma tradição; não há um yogin autodidata (lobo solitário, rishi em revelação sozinho): pode até criar uma linha-de-fuga yoguica, mas esta precisa ganhar materialidade para se tornar real; até lá, é só um delírio. Mais simples, uma forma de yoga não nasce do nada, por inspiração individual, "revelada" do além-físico. Somos seres coletivos e viventes na imanência, o metafísico (as ideias) vem depois.


O corpo yogin nômade (este sadhaka sendo iniciado) repousa adjacente à produção do socius (da tradição yoguica). Todo yogin autêntico, se assenta numa ou várias tradições, aquele que ainda não se assentou sobre ela, não pode ser (estar) consagrado ou fazer valer seu carisma. Não é que se sinta deslocado ou sentimento de não-pertencimento, ele precisa metabolizar, comê-la demoradamente, fazer passar fluxos, liberar desejos e apreendê-los (em si), sentir, perceber. Há muita pré-reflexão antes de qualquer yogar revisitar a consciência reflexiva. E há vários processos de iniciação, outros tantos jeitos de yogar e processos de yogamentos.


Mas não se perde, há hoje, três grandes iniciações yoguicas e yogamentos: (1) Conservadora, (2) Nômade e (3) Capitalística; e todas, sem exceção, pertencem ao mesmo sistema de parentesco (filiações e alianças). Yogas indianos podem possuir filiações hindus, sikhis, jainistas, budistas, tântricas, e estabelecer alianças daimistas, maoris, da alquimia e mística sufi, da pajelança ianomâmi e, mesmo com a política nacionalista de Gandhi ou do Moodi. Saber em quais filiações e alianças se está inserido (ou inserindo-se), contemporaneamente, já não é mais tão claro quanto no período pré-capitalista. A recém-tradição yoguica capitalística borrou os limites dos aldeamentos. Somos, hoje (cá ou lá), yogins contemporâneos. Cabe a você descobrir quais códigos lhe foram inseridos, se eles ainda fazer passar algo. Toda tradição de yoga conservadora, produz afectos de medo e esperança; a capitalística, constrói o afecto da falta e plenitude; e as tradições nômades, o desejo pela diferença e incompletude.


Yogar não é só praticar e pronto, é só desfrutar. Não, é também, e sobretudo, apreender o que se passa, é estar à espreita do que estão fazendo passar no seu corpo, ato contínuo, as ideias que seu corpo erigindo na mente.


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