O Yoga é uma invenção humana que não se deixa capturar. Sim, sim, você e eu, provavelmente, fomos capturados por um yogar X ou Y. Eu, por exemplo, fui "formado" pela tradição de Kaivalyadhama, uma formatação que tem como lema, ser um "yoga científico", outra invenção. Mas nem o hinduísmo, o budismo, o cristianismo ou o Yoga são revelados, mas inventados. Cada um deles, por sua vez, produziu centenas de outros processos desviantes: theravada, soto-zen, mahayana e etc, compõem toda cultura budista.
O hinduísmo e o próprio "oriental", é uma criação europeia
Os cristãos, por exemplo, desenvolveram, ao longo de 2 mil anos, múltiplas variações de si mesmos: apostólicos, calvinistas, presbiterianos, os infinitos cultos ao pentecostes, e outras, tudo invenção humana. E com o Yoga não difere, temos os aghoris, kapalikas, nagas, nathas, iyengueiros, kundalini-yogins, acro-yogins, anandas-marga, awaken-lover's... Não caberia aqui tantas diferenciações que existem hoje, existiram e irão ser "existidas".
Todas essas invenções culturais espirituais e suas dobras produzem mais tensões no campo. Nenhuma tentativa de unificação trouxe paz; na bem da verdade, a busca pela harmonia espiritual produziu inúmeras guerras-santas e mortes.
O fim das invenções espirituais (resolvida por uma só igreja, seita ou culto) é a morte prematura de vidas pulsantes - mesmo o ateísmo ou agnosticismo, são matizes espiritais possíveis de se estar. Vivemos em caosmoses!
Esse campo de batalha é lindo, pois o fim da guerra, como bem explica o Gita, é um delírio de covardes, que pressupõem transcendentes e absolutos como fim revelados por indivíduos especiais, escolhidos ou messiânicos. Dessa delirante falta de imaginação de possíveis realidades coexistindo, surgem as castas, as classes e raças, num ordenamento vindo de fora para dentro, esquecendo-se completamente de nossa habilidade humana de vidas coletivas conviverem com o diferente, com o espanto.
Deixamos de nos admirar com o novo, de novo. Todes yogins (e outres xamãs, bruxas, pajés e feiticeiros) pertencem à sociedades guerreiras que, marcados pela terra, lutam contra toda e qualquer tipo de colonização de corpos e, ato contínuo, pensamentos. Yogins autênticos são como quilombolas, caboclos e canudenses resistindo e inventando seus próprios modos de vida coletiva.
Vidas fascistas são o oposto disso. Se organizam em torno de corpos dóceis, domesticados e adestrados a não desejarem luta, mas resignarem-se por trás de karmas, dharmas, símbolos e livros. Vidas vigiadas e punidas por qualquer desvio da régua imaginária com seu centro fincado em outro mundo.
Há toda uma economia cármica e meritocrática que orbita no corpo de déspotas e acumuladores de coisas - povos da mercadoria e cultuadores de cargas
A outra forma de organização social é a primitiva, comunista e selvagem. A cultura inventada por esses povos é nomádica e não-consensual, mas bonsensual. Seus líderes não são "representantes do povo", mas guardiães dos costumes e hábitos, constantemente postos à prova e reinventados frente as contradições inerentes da vida. Outra função do líder é manter-se em guerra constante (estar à espreita) às tentativas de fusão cultural, ou seja, da uniformização das nações - o que seria o fim das invenções e da singularidade humanas. Essas nações guerreiras, selvagens e nômades podem até se unirem para um fim comum e temporário: construção de uma roça, festividades religiosas, reuniões conciliatórias, casamentos, mas sobretudo, contra outra nação paranóica ou neurótica que passa a desejar expandir sua cultura para outros povos - ao invés de culto ao diferente, passa a desejar o delírio de um déspota. Todos os yogins em nomadismo lutam contra expansões imperialistas e capitalíticas.
Os europeus, quando chegaram na costa das Américas em fins de 1400, por quase 100 anos foram vistos como mais um povo chegando pelas bandas de cá. Foram bem aceitos em sua cultura, curados de suas feridas, dado banho neles, apresentados a fartura de alimentos e pluralidade de costumes. Nunca um tapajó ou guarani, por exemplo, pensou em transformá-los em iguais a eles.
As culturas selvagens, nômades e guerreiras abraçam a diversidade e não as excluem, pois dependem delas para explusar de dentro de si, o desejo pelo acúmulo e a hegemonia de um só desejar. Se festeja a diferença!
A colonização e a uniformização dos mesmos gostos, arquiteturas, desejos e estéticas de existência surgem apenas em corpos que desaprenderam a fazer fluir tesões nos desarranjos tensionais pulsáteis - analfabetos corporais, não sabem mais como fazer passar coisas diferentes. Os povos sedentários percebem|sentem tudo o que é diferente deles, como errado, imoral, sujo, corporal, emocional e irracional. É uma total incompetência em lidar com o espanto, o esquisito, o corpo que sente e percebe o outro: propriocepção negativa. Vivem por 2 afectos: o medo e a esperança.
Toda a cultura humana se torna visível pelo "choque cultural" que produz ao estrangeiro.
Quando outro corpo (forasteiro ou outsider) se espanta, automaticamente, concretiza uma invenção para entendê-la.
Não é imaginação (esse delírio, pois não embasada em dados materiais da realidade), mas criatividade, pois se inventa parâmetros vitais àquela outra realidade na sua própria. E isso ocorre depois de sucessivas experimentações. Mas se inventa, não para aniquilar o outro, cooptá-lo; o que se deseja mesmo é comê-lo vivo, com respeito e honra em tê-lo agora, totalmente transubstanciado no e pelo próprio corpo. Eu não me converto ao outro (ou o forço ser nós), o transformo, alquimicamente, como parte de mim também.
Os guaranis rezavam o Pai-Nosso na praia com Pe. Anchieta de manhã, e participavam do banquete ritual de um tupinambá capturado em guerra à noite.
Todos os yogins sem motriz indiana, aqueles da geração posterior aos modernos, são inventores de um novo yogar, do mesmo modo, que os yogins indianos modernos e pré-modernos (como os sadhus hoje, que perambulam pelas ruas da Índia), reinventam seus yogares também. Estamos, todos os yogins saudáveis e curados, em guerra constante. Nossa singularidade coletiva (e não individualismo) depende disso. Uma guerra em honra do próprio Yoga.
Roy Wagner fala dos antropólogos reversos, aqueles nativos que também fazem seu trabalho de campo, pois sofrem seus próprios choques culturais, e inventam, igualmente, uma cultura para o antropólogo acadêmico e profissional. Não seriam estes os yogins posturais modernos desde Vivekananda que, estimulados por seus gurus, levaram seus yogas inventados às terras dos colonizadores? Antes deles o destruírem por completo, reinventam-se mais uma vez. Ao mesmo tempo em que Vivekananda transforma seu próprio jeito de yogar neste processo de campo, protege a sua tradição, atualizando-a em seu corpo, na inventação de um novo yogar.
Yogins e seus yogares bhakti, jnana, hatha, mantra e raja; yogins e seus yogares antigos, "clássicos", medievais, modernos e contemporâneos; yogins e seus yogares sedentários, nômades, capitalistas ou "lojistas"; yogins e seus yogares aghoris, nagas, nathas, kapalikas, "tantras" e kamphatas... todos aqui, são invenções yoguicas humanas.
A tradição yoguica não se deixa domesticar
Se a cultura humana é criativa, inventando, como no "ocidente", tantas formas de yogar, então a cultura indiana também têm de sê-lo (SAID, O Orientalismo).
Em recente pesquisa se demonstrou que a maioria dos yogins indianos ascetas contemporâneos, iniciados por ordens religiosas do século X-XVII, portanto, com mais de 500 anos de tradição, não têm o hábito de ler ou seguir a doutrina das escrituras "tradicionalmente" yoguicas, como Yoga-Sutras, Pradipika, Gheranda e outras (BEVILACQUA, sem data. Let's the sadhu talk). É a cultura yoguica postural moderna (essa nova tradição em andamento), gestada na própria cartografia indiana, que inventa esse habitus e escolhe Patanjali-Yoga como seu método preferido. Isso foi uma escolha dos modernos, pois a cultura yoguica medieval dos sadhus contemporâneos na Índia continua oral, na verdade, diria, corporal.
Cada yogin asceta errante indiano hoje, atualiza sua tradição no corpo - a cada prática, uma experimentação
E a cada experimentação de um tapasya, um corpo yogin é produzido pelos afectos de sua ordem espiritual, de outras que ele encontra, do corpo do seu guru que ele presta seva e de todo entorno social, político, psicológico e religioso que o atravessa. É uma alquimia corporal viva que mantém o yoga atualizado, portanto, autêntico e afastado de qualquer delírio metafísico.
Por mais que possa parecer a nós, corpos colonos da Europa cristã, que kaivalya ou moksa sejam conceitos metafísicos, há sempre a possibilidade de se inventar outra perspectiva sobre. O rio Ganges é natural, mas é sagrado, ou seja, aquelas águas reais que escorrem dos Himalaias (outra geografia viva, real, material e consagrada), atravessam corpos humanos reais (e naturais), formados por 2 modos d'Deus ou Natureza (corpo|prakrti e "alma"|purusa) que se banham e absorvem milênios de cultura viva invandindo seus corpos em experimentações reais e divinas. A Natureza|Deus|Isvara é encantada e Natural tanto quanto as árvores, os rios, as pedras e os animais amazônicos aos povos da floresta. Não há metafísica alguma percorrendo os corpos em experimentação yoguica - não seria por isso que desprezam os livros e mantém a tradição corpORAL ? Assim como os xapiris (os encantados para os povos da floresta) são convidados a viverem no peito da pajelança ianomâmi, o saber de um preto-velho ou de um yogin estão ali, incorporados no babalorixá e no sadhu. Nada aqui é imaginação ou metáfora.
Entenda isso de uma vez, samadhi não é uma ideia abstrata, mas uma experimentação corpórea. Kundalini não é um algo interpretado como uma serpente enrolada na base da coluna, ela mora ali, está assentada no seu corpo agora; do mesmo modo como os xapiris o estão no corpo dos xamãs, e os santos na cabeça de todo iniciado afrobrasileiro. Não é qualquer corpo que percebe isso, só o que soube se preparar para experimentar, um iniciado que cumpriu suas obrigações e participou de um processo ritual. São anos de preparo desse corpo para sentir passar prana. Há um programa (sadhana) com propósito firme (sankalpa), formado por uma série bem específica de realizações espirituais (tapasya).
Desse modo, um yogin-antropólogo que se recuse a aceitar a universalidade da mediação, que "reduz o significado à crença, dogma à certeza, será levado à armadilha de ter que acreditar ou nos significados nativos, ou nos seus próprios", perde a inventividade cultural que se processa nele (WAGNER, p.66). Todo "choque cultural", portanto, nos força a objetificar e a buscar compreensão. A compreensão (ou discernimento, lit. viveka) só ocorre nas relações mediadas, ou seja, em dialética material e histórica. A principal ferramenta yoguica, esta que muitas vezes se confunde com o próprio ato yoguico (práxis), o yogar, a meditação, portanto, é aprender a experimentar seu corpo mediando o mundo corporalmente - e haveria outro lugar para isso acontecer?
Se todo ser humano é "o xamã de seus significados" (WAGNER, p.72), o yogin Goraksa, o yogin Sidarta, o yogin Patanjali, o yogin Iyengar e todes outros tantos yogins autênticos são corpos cozidos no fogo do yoga, gestando seus próprios significados. Mas esses significados precisam ser compartilhados em seus coletivos, tradições, ordens espirituais e outros desvios para serem aceitos naquele yoga, ou criar uma nova linha-de-fuga e tentar se estabelecer numa nova cultura. Quem autoriza algo ser ou não yoga legítimo ou autêntico, é o grupo, o povo, a nação, os nativos daquela cartografia ou aldeamento, comunidade.
Por exemplo, quando o yoga ganha corpo em territórios dominados pelos déspotas adoradores do livro Vedas, automaticamente, aqueles yogins nus, com longos dreadlocks, maconheiros e cultuadores do inconstante Shiva, causam espanto. Foi um choque cultural aos brâmanes (tanto quanto aos padres mais tarde) que, rapidamente, ressignificaram tudo em 196 sutras - contidos no Yoga-Sutras. Agora, está tudo bem, yoga é só mais uma perspectiva (darsana) aceita pelo bramanismo - Iyengar e outros antes e depois dele, fizeram algo similar, aproximando Jesus a um dos maiores yogins na Terra, quando adentram a seara cristã com seus yogamentos.
Mas inventar o darsana-yoga (ou transformar Jesus num sidhanta) não foi a aniquilação daqueles yogins cabeludos e esquisitões, mas um "trabalho de campo" do "antropólogo" Patanjali, Iyengar, Hermógenes e outres). Quando um corpo preto e periférica, vivente nas franjas do povo da mercadoria, estruturalmente racista, experimenta o darsana-yoga, faz o mesmo caminho guerreiro, nômade e selvagem de nossos ancestrais de resistência: o devora vivo e inventa mais um jeito singular de sarrar o yoga.
O yoga é posto em movimento por corpos curiosos explorando possibilidades desejantes da vida vivida.
Como tem sido a sua experiência com os yogares? Tem sido guerreiro e destemida ou covarde, ressentida e resignado pelo medo e a esperança? Militar não é "desvio do foco" metafísico que te fizeram se assujeitar para se sentir aceite, mas estar yogin. Yoga vive em corpos, não em livros, gurus ou tradições, mas em experimentações de resistência e luta. E não sou eu "achando" isso, está no próprio mito fundador do Yoga com Arjuna e Krishna, ou Shiva e Durga e seus filhos Skanda (deus da Guerra) e Ganesha (exú-mirim, abridor de caminhos com o machado de Xangô), mas também em todes os corpos vivos e de almas inconstantemente selvagens.
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