O atharva veda é um monstro. Recheado de encantamentos, maldições e curas mágicas, nasce de yogins-xamãs e não dos yogins-sacerdotes. Enquanto os textos revelados (srutis) são gestados por filiações reprodutivas de uma elite profissional em escolas assépticas, o quarto veda gesta-se de filiações incestuosas com doulas no rio, por isso “olhada com desprezo pelos brahmanes”.
Entre os anos de 1800-1500 a.C. ocorre o declínio da cultura matrilinear Harappa/Mohenjo-Daro por profundas alterações climáticas e geológicas que afetaram o continente indiano, diluindo toda uma caosmótica xamanidade urbana - a geofilosofia favoreceu o sedentarismo de alguns brâmanes. Mas aqueles yogins-xamãs não morreram, se mudaram da urbe em direção às florestas. Sua natureza, no entanto, mantém-se viva ainda hoje, sobretudo em yogares de culto à terra, aos animais e divindades dançarinas - demônios|daimon ou espectros - seriam eles os sidhantas, aqueles aliados de yogins de encruza e crematórios?
Estes yogins-xamãs, os formuladores da magia atharvica são os dasas, anaryas ou drávidas; “aqueles selvagens, bárbaros, demônios e|ou infiéis”, em suma, todes corpos não-arianos: inimigos, monstros, contagiosos, poderosos, por isso temidos.
Narcisos acham feio todos aqueles que não são seus espelhos.
Arya passou a ter uma então uma conotação de distinção social entre brahmanes, enquanto que anarya designou todos os que ficaram fora do estatuto religioso brahmanico, incluindo aqueles que foram apelidados de demônios e se dedicaram a práticas mágicas.
Os “outros” são os não-védicos (dasas ou anaryas), enfim, os pertencentes a diferentes ordenadores de realidade; são indisciplinados. Não se perde aqui no rolê tiozão.
A estrutura da cultura mudou pouco de lá para cá. Foram os corpos, metamorfoseados pela alquimia dos encontros, que se transformam pensando novas ideias. Sim, as formas talvez cambiais, mas as forças continuam as mesmas: de um lado os que se imaginam donos dapohatoda, e do outro, os demais corpos entre. Se atente a simbologia do atharva que está no Vedas; mesmo como “capítulo menor”, impregna uma escritura perfeita em si-mesma. Ação subversiva.
São gestos que gestam a intensidade dos periféricos xamaneiros yogins de outrora vivendo hoje (e sempre contemporâneos) no peito de todes dançarinos rituais: de Durga a Shiva, Ariadne a Dionísio e Lou Salomé com Nietzsche… Todes yonis e lingas em savasanas vivos.
Yogas monstruosos que aterrorizam o sono delirantemente imaculado dos ascetas guardiães das essências que imaginam viver (avidya na sua mais perfeita tessitura de maya). Mas mesmo com toda a organização de corpos, letras e hinos, nada conseguiu dar conta do contágio das carnes se encontrando sob luas cheias orgiásticas que insistem em devorar cordões brancos, nomadizando yogares selvagens que não se deixam domesticar por instituições.
Sobre o que você estava falando mesmo?
Sobre filiações pouco intensivas de yoguicas epidianas védicas buscando castrar a magia de corpos em relações potentes multiplicadores de yogares-outres.
Se yogas vivem hoje são graças a corpos em voos místicos jaguares, macacos, peixes… Afinal não foi assim que nasceu os Nathas, mãe do Hathas? Um peixe ouvindo Shiva ensinar Yoga à sua esposa (ou foi o oposto, por isso ela dormiu, em tédio do aluno Shiva distraído?) num rio indiano (seria iraniano ou egípcio?). Esse mesmo peixe atento e pleno aos encantos yoguicos metamorfoseia-se em homem, ensinando a Goraksa, esse com jeito e cara de vaca. Ambos budistas e Shiva|Durga, uma velha bruxa da floresta, por isso andrógina?
Os poderosos aqui são os que nada temem, não precisam de castas para se distinguir, pois sabem da singularidade natural de todes. As poderosas aqui são yogins|daimons de parentesco incestuoso sem temer misturas, hibridismos, pois nem pai ou mãe sabe quem são (ou seriam todes?). Os yogins-xamãs-anaryas, aqueles de pensamento selvagem que renegam com orgulho qualquer filiação aryana, contagiam e miscigenam yogares com tambores, baixos elétricos e sintetizadores em festivais de yoga pelo mundo; eles pitam enquanto entoam o sagrado mantra OM em rodas de samba e hinários por aí.
Saravá seu Zé e Padilha, salve os loucos e mestre Irineu: eles sabem amar de verdade o yogar nosso de cada dia.
Por vezes alimentos não são digeridos, pode ser que não tenham sido afetados pelo fogo no tempo necessário, pode ser que tenham sido engolidos em vez de mastigados, pode ser que sejam demasiado robustos para serem decompostos por falta de potência ígnea, pode ser que ... aconteceu. Um desses alimentos é atharva, cuja linguagem corre por fora do sânscrito védico e remete para raízes da língua que muites sacerdotes gostariam de esquecer. Desde ter uma boa colheita a fechar o corpo contra cobras, encontramos por lá várias formas para encantar o corpo e a vida. Fica o convite para todes yogues canibais, temperem a prática com um pouco de atharva e vejam os sabores que surgem.